domingo, 18 de dezembro de 2022

Para ser o “Deus-connosco”, o Verbo encarnou no seio de Maria

 

A liturgia do 4.º domingo do Advento, no Ano A, garante-nos que Jesus é o “Deus-connosco” (Imanu El), que veio e vem ao encontro dos homens a oferecer a salvação.

Na 1.ª leitura (Is 7,10-14), o profeta Isaías anuncia que Javé é o Deus que não abandona o Povo e quer trilhar, de mãos dadas com ele, o caminho da história. Por isso, é n’Ele que devemos colocar a nossa esperança.

Em 734 a.C., Acaz subiu ao trono de Judá (a norte, o reino de Israel era formado por dez tribos, com a capital na Samaria; a sul, o reino de Judá era formado por duas tribos, com a capital em Jerusalém). Judá gozava de prosperidade económica e de tranquilidade política. Porém, as campanhas militares de Tiglat-Pileser III, rei da Assíria, lançam o alvoroço nos países da zona e anunciam tempos complicados para os pequenos reinos da terra de Canaã.

As coisas complicam-se quando Pecah, rei de Israel, tenta a coligação antiassíria para resistir às investidas imperialistas de Tiglat-Pileser III. O rei quer que a coligação integre a Síria e Judá, mas Acaz recusa-se a embarcar na aventura. Então Pecah, rei de Israel, e Rezin, da Síria, lançam as suas tropas contra Judá. Acaz, assustado, decide pedir a ajuda dos assírios para resistir aos invasores. Isaías não concorda: para ele, a única esperança e segurança com que Judá deve contar é Javé, o seu Deus, e confiar a segurança da nação a potências e a exércitos estrangeiros é abandonar Deus e expor o país a dependências que trazem sofrimento e opressão. Porém, Acaz insiste no pedido de ajuda da Assíria. E o profeta dirige-se ao rei a solicitar-lhe que, se não crê nas suas recomendações, peça a Deus um sinal para saber o que Deus quer e o que é melhor para o Povo. Acaz, com a decisão tomada, recusa pedir a Deus um sinal, alegando que não pôde tentar a Deus. Todavia, Isaías deixa a Acaz um sinal de Deus, que é: a jovem (em hebraico: ha-‘almah) conceberá e dará à luz um filho e o seu nome será Deus connosco (em hebraico: Imanu El).

Certamente, o profeta refere-se à gravidez da jovem esposa do rei (Abia, filha de Zacarias. A designação “a jovem” aparece em certos textos de Ugarit para designar a esposa do rei) e ao posterior nascimento do filho Ezequias, que ocupou o trono de Judá quando Acaz morreu.

O nascimento dessa criança garantia a continuidade da descendência de David e um futuro para Judá, apesar do ataque dos inimigos (Pecah e Rezin). A criança é, pois, o sinal de que Deus está connosco, cuida do Povo e lhe oferece um futuro de esperança. A versão grega dos Setenta utilizou o termo parthénos (virgem) para traduzir o hebraico almah (jovem). E pelo menos desde o séc. II a.C., parte da tradição judaica viu neste nascimento uma referência ao Messias, que nasceria de uma virgem. E a tradição cristã aplicou o oráculo a Jesus; e Maria, sua mãe, é a virgem nomeada no texto grego de Is 7,14 – a arca do Futuro, o grande sinal de Esperança para a Igreja.

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O Evangelho (Mt 1,18-24) apresenta Jesus como a incarnação viva desse “Deus connosco”, que vem ao encontro dos homens e vive como e com eles para lhes apresentar e oferecer a salvação. E contém o convite a acolher Jesus, de braços abertos, e a deixar-se transformar por Ele.

O trecho em apreço pertence ao “Evangelho da Infância” na versão de Mateus. O “Evangelho da Infância” pertence ao género literário da homologese, catequese destinada a proclamar certas realidades salvíficas. Desenvolve-se em narrativa e recorre às técnicas do midrash haggádico (técnica de leitura e de interpretação do texto sagrado usada pelos rabbis da época), usando e misturando tipologias, ou seja, factos e pessoas do Antigo Testamento (AT) que encontram correspondência em factos e pessoas do Novo Testamento (NT) e aparições apocalípticas para fazer avançar a narração e para explicitar determinada catequese sobre Jesus.

E, para se perceber o pano de fundo da narração, importa conhecer a situação de Maria e de José no quadro dos costumes epocais. Os hebreus consideravam o compromisso matrimonial em duas etapas: a primeira, em que os noivos se prometiam um ao outro (os esponsais); e o compromisso definitivo (as cerimónias do matrimónio). Entre os esponsais e o matrimónio, passava um tempo, durante o qual qualquer uma das partes podia voltar atrás, embora sofrendo uma penalidade. Durante os esponsais, os noivos não viviam em comum, mas o compromisso tinha um caráter estável, de modo que, surgindo um filho, era considerado filho legítimo de ambos. A Lei mosaica considerava a infidelidade da prometida como ofensa similar da infidelidade da esposa (vd Dt 22,23-27). E a união dos prometidos só podia dissolver-se com a fórmula jurídica do divórcio.

Ora, segundo o trecho evangélico em referência, José e Maria estavam na situação de prometidos: ainda não tinham celebrado o matrimónio, mas já tinham celebrado os esponsais.

José apercebeu-se de que Maria ficara grávida na fase dos esponsais. Como não era o pai da criança que vinha a caminho e porque era homem justo, resolveu abandonar Maria, em segredo. Porém, o anjo do Senhor apareceu-lhe em sonhos e esclareceu o mistério: “Aquele que vai nascer é fruto do Espírito Santo.”

O anúncio do anjo a José segue o esquema dos relatos do AT, em que se anuncia o nascimento de uma personagem importante: o anúncio vem rodeado de sinais divinos (o anjo do Senhor, o sonho), que provocam medo e espanto; o mensageiro divino anuncia o nome e a missão da criança que vai nascer; dá-se um sinal confirmativo do anúncio (o cumprimento das Escrituras). A função do anúncio é vincular a personagem, desde o nascimento, ao desígnio divino. Este esquema estereotipado é, aliás, usado por Lucas para descrever o nascimento do Batista (cf Lc 1,5-25).

Por isso, no episódio evangélico, temos uma catequese sobre Jesus (apresentada com recurso a esquemas literários, conhecidos dos escritores bíblicos). Procura-se mostrar que Jesus vem de Deus, que a sua origem é divina (“Maria encontra-se grávida por virtude do Espírito Santo”). Procura-se ensinar qual será a sua missão: o nome que Lhe é atribuído mostra que Ele vem de Deus para os homens (Jesus significa: O Senhor salva). Também se diz que Ele é o Messias de Deus, da descendência de David, que os profetas anunciaram. A referência ao seu nascimento de uma virgem, mais do que a afirmação do dogma da virgindade de Maria, é a afirmação de que Jesus é o Messias anunciado pelos profetas (nomeadamente no texto de Is 7,14) e enviado por Deus para restaurar o reino de David.

José desempenha um papel muito interessante. O anjo dirige-se-lhe como filho de David e pede-lhe que receba Maria e que ponha um nome à criança. A imposição do nome é o rito pelo qual um pai recebe uma criança como filho. Assim, Jesus passa a fazer parte da família de David e a ser a esperança para a restauração do reino ideal de paz e de felicidade pelo qual todo o Povo ansiava. Pela obediência de José, realizam-se os planos e as promessas de Deus ao seu Povo.

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A 2.ª leitura (Rm 1,1-7) sugere que, do encontro com Jesus, deve resultar o testemunho, ou seja, tendo recebido a Boa Nova da salvação, os seguidores de Jesus devem levá-la a todos os homens e fazer com que ela se torne a realidade libertadora em todos os tempos e lugares.

O trecho da Carta aos Romanos, em apreço, integra a introdução. Sabendo que é uma comunidade não fundada por ele, Paulo adota singulares precauções para não melindrar os cristãos de Roma. Apresenta-se e define a missão que Deus lhe confiou. Paulo define-se como servo de Jesus Cristo, como apóstolo por chamamento divino e como eleito para anunciar o Evangelho.

Ser “servo de Jesus Cristo” significa ter posto a vida, incondicionalmente, ao serviço de Jesus Cristo. Não há qualquer conotação com escravidão (contradiria a consciência de Paulo sobre a liberdade cristã), mas a entrega amorosa a Cristo. Assim, Paulo define o sentido da sua atividade missionária: é serviço a Cristo e ao seu projeto libertador em prol dos homens.

Ser “apóstolo por chamamento divino” é ser testemunha fiel de Jesus e da sua mensagem. Na verdade, Deus chamou-o a dar esse testemunho. E Paulo, consciente desse facto, está disposto a enfrentar todas as dificuldades, a fim de ser fiel a esse chamamento.

Ter sido “escolhido para o Evangelho” implica ter consciência de ser, desde sempre (inclusive, antes do nascimento), eleito por Deus para a tarefa de levar a Boa Nova da libertação aos homens de toda a terra. Paulo nasceu para anunciar o Evangelho e para ser testemunha da salvação que Deus oferece aos homens.

Na tríplice condição que define Paulo, centra-se o anúncio do Evangelho. Na ótica de Paulo, o Evangelho é o anúncio da libertação em Deus, que se tornou presente e viva no mundo por Jesus, o Messias, com vista à salvação de todos os homens. Não se trata de uma coleção de textos mortos ou de uma doutrina bem ou mal articulada, mas da proclamação viva, ativa, transformadora, capaz de gerar vida nova e liberdade plena nos que a escutam e a acolhem. Paulo sente que toda a sua vida está ao serviço deste desígnio e que a sua missão é levá-lo a todos. E o texto encerra uma primitiva fórmula, em que o Apóstolo afirma a sua fé em Jesus Cristo, nascido da descendência de David, mas constituído Filho de Deus pelo Espírito que santifica; o seu poder manifestou-se na ressurreição – a prova inequívoca da sua filiação divina.

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Sendo o Jesus esperado o “Deus que vem ao encontro dos homens, para lhes oferecer a salvação, o Natal que se aproxima deve ser o encontro de cada um de nós com este Deus; e esse encontro só será possível se tivermos o coração disponível para O acolher e para abraçar a salvação que Ele traz. Com frequência, o Natal é a festa pagã do consumismo, das prendas obrigatórias, da refeição melhorada, das tradições familiares a respeitar, mesmo quando não significam nada. Por isso, é de questionar que Natal estamos a preparar: o da celebração pagã da diversão e do consumismo ou o do verdadeiro encontro com o Deus libertador e com a família dos seus filhos, que vive e testemunha a fraternidade e a boa relação com a natureza criada?

A figura de Maria é incontornável para quem prepara o Natal: está sempre disponível para escutar o apelo de Deus e responde-lhe com o “sim” da disponibilidade total, que possibilita a presença salvadora de Deus no mundo. É importante pensar como está a disponibilidade de cada crente e da Igreja como comunidade.

E outra personalidade que nos interpela nesta quadra é José, o homem que Deus envolve nos seus planos – que lhe parecem misteriosos e inacessíveis – mas que tudo aceita, numa obediência total a Deus. Como está a nossa disponibilidade para acolher o projeto de Deus, mesmo quando ele desorganiza os projetos pessoais? O Deus-connosco merece tudo.

2022.12.18 – Louro de Carvalho

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