quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Operação “Miríade”, não ato isolado nem só militar, está longe do fim

 

Um misto de comoção e indignação pairou na opinião pública em novembro de 2021, por via da rede de 11 militares que foi apanhada no tráfico de diamantes, ouro, droga e mercúrio, a partir da missão da 2.ª FDN (Força Nacional Destacada) no âmbito da MINUSCA na República Centro-africana (RCA). O facto mancha o prestígio e a imagem das Forças Armadas Portuguesas (FAP), o que seria reparável em parte, se a Justiça funcionasse rápida, imparcial e de forma exemplar. 

E, dada a sucessão de casos dos últimos tempos nas FAP, é de questionar se o legislador constituinte fez bem em restringir a existência de tribunais militares ao tempo de guerra. Com efeito, crimes estritamente militares, puníveis ao abrigo do Código de Justiça Militar (CJM), se fossem julgados no foro militar, teriam justiça mais célere, eficaz e pesada (a moldura penal é quase sempre maior que no Código Penal) que nos tribunais comuns, que acumulam processos sobre processos.

Nos intervalos das complicadas intervenções no terreno, os militares, em situações excecionais e em número reduzido, iam descomprimir à piscina do Ledger Plaza Bangui, hotel de 5 estrelas, “qual oásis de conforto” na capital da RCA e “o único sítio onde o pó vermelho da terra, fininho, não se cola à pele, ao cabelo, a todo o lado” – como diziam Hugo Franco e Raquel Moleiro.

Na tarde de 24 de janeiro de 2018, Paulo Nazaré, que, tendo concluído o 128.º curso de comandos, integrou a 2.ª FND, entre outubro de 2017 e março de 2018, passou por lá. E, estando em convívio com os camaradas, uma mulher chamou-o do varandim do quarto com vista da piscina, mas não se sabe do que falaram então, nem nas conversas subsequentes – cena replicada com vários militares que ali estiveram. E os boatos fizeram ligação amorosa entre ambos, que passou por serviços de segurança privada em viagens pelo mundo e constituiu o início da ligação do comando a tráfico de diamantes e a branquea­mento de capitais, a tráfico de ouro e droga, a fraude informática, a moeda falsa, entre uma multiplicidade de crimes, que deram o nome de “Miríade” à operação da Polícia Judiciária (PJ) para deter o líder, com o seu braço-direito, e desmantelar a rede internacional que criou, com atividade em Portugal, Brasil, Angola, Dubai e Bélgica.

Aquando do regresso do contingente, a dita mulher viajou para Lisboa (onde ficou cerca de dois meses), vindo as redes sociais a atestar com imagens a sua passagem pela capital, “numa galeria de fotografias de diamantes, lapidados e em bruto, minas escavadas na lama, pepitas de ouro e mais viagens, de Paris ao Sudeste asiático”, bem como “dedicatórias no mural de Paulo”.

Paulo Nazaré, a viver em Camarate, começou a aparecer bem vestido, de fato, Mercedes preto novo, bem na vida. Depois, abandonou o Exército para estudar gemologia e lapidação numa cidade europeia. Fez uma única missão na RCA, o bastante para muitos contactos com membros das FAP e com indivíduos de várias áreas de negócio que foram úteis nos anos seguintes em Portugal e, sobretudo, percebeu in loco a quase ausente vigilância aos voos militares, quer à bagagem quer aos ocupantes.

A “Máfia”, como Paulo Nazaré lhe chama em conversa intercetada pela PJ, foi criada em três anos. Entre os elementos, grande parte dos quais foi constituída arguida pelo Ministério Público (MP), os investigadores identificaram 66 pessoas: cinco militares no ativo e seis ex-militares, dois advogados, dois elementos da Guarda Nacional Republicana (GNR), um agente da Polícia de Segurança Pública (PSP), três bancários, um segurança e dezenas de “mulas” titulares de contas bancárias. Foi atribuída uma função específica a cada um e os grupos organizavam-se por crimes: contrabando de pedras e metais preciosos, branqueamento (transferências e pagamentos fictícios), tráfico de droga, acessos ilegítimos a contas e burlas informáticas, contrafação e passagem de moeda falsa, transações em bitcoins e o que mais surgisse, como o contrabando de mercúrio proveniente da Guiné-Bissau (referido numa escuta). O despacho de indiciação pormenoriza burlas informáticas com mensagens e e-mails fraudulentos de instituições bancárias, como o Novo Banco ou o Millennium BCP, pelas quais entravam em contas de particulares e retiravam milhares de euros. Só num dia, seis clientes ficaram sem mais de 20 mil euros.

Além das pessoas referidas, há cerca de 40 empresas envolvidas na rede. Em Portugal, Angola e Brasil, aceitavam a realização de contratos fictícios, de compra e venda ou prestação de serviços e o uso das suas contas para receber e transferir elevadas somas de dinheiro. São firmas de construção civil, grossistas de alimentação, um restaurante de sushi em Santa Iria da Azoia, um stand de automóveis em Loures, uma discoteca em Alcântara (Lisboa) e uma igreja evangélica em Rio de Mouro, cujo pastor ganhava 5% do dinheiro lavado nas contas do templo.

Os integrantes do núcleo duro, na sua maioria, militares e ex-militares, todos comandos (tropa da elite do Exército), sobressaindo: Stashko, colega de curso e de missão de Paulo Nazaré, a tirar o curso de guarda da GNR em Portalegre; Michael, agente da PSP no Comando Metropolitano de Lisboa; Sidney, vigilante na área do transporte de valores que pedia dicas a bancários para transações ilícitas; Silveira, mediador imobiliário; e Chantre, comando da velha guarda, com residência habitual em Angola. No ativo estavam três capitães, dois majores e um sargento, o que levou a megaoperação da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da PJ e do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, de 8 de novembro de 2021, a incluir o Regimento de Comandos nos 100 mandados de busca, de norte a sul do país. O dia terminou com 11 detenções e a semana com dois arguidos em prisão preventiva: Pedro Nazaré, o líder da rede, e Wilker Rodrigues, o seu braço-direito e elo de ligação essencial com o Brasil e o Reino Unido, que não quiseram responder às questões do juiz de instrução Carlos Alexandre.

Esta foi a primeira ação visível da investigação espoletada no início de 2020, graças à denúncia de Samuel, intérprete da MINUSCA na RCA, que trabalhava com o contingente português. Na 2.ª FND, serviu de intermediário ao primeiro negócio de tráfico de dia­mantes de Paulo Nazaré (oito pedras), de que receberia a comissão de 20%. Como o comando regressou a Portugal antes do término do negócio, a transação foi sido continuada, um ano depois, pelo capitão Marçal, quando este chegou à RCA na 5.ª FND, e concluída a 22 de agosto de 2019 num encontro com um comerciante local, acompanhado de Nazaré por videochamada, que assistiu, em direto, à pesagem dos diamantes e ao pagamento de dez mil euros. As pedras seriam trazidas pelo capitão Marçal num voo de sustentação das FAP, em setembro, mas Samuel não recebeu a sua parte. E entregou to esquema à Polícia Judiciária Militar (PJM). Porém, o major Marques, em fevereiro de 2020, denunciou outra situação. No despacho de indiciação consta que o capitão Santos, duplamente condecorado, entre 3 e 12 de setembro, na transição entre a 5.ª e a 6.ª FND, apresentou ao major um funcionário local duma ONG que lhe entregaria uma caixinha com uma peça de artesanato local, que ele deveria enviar para Portugal em voo militar. A transmissão realizou-se no parque de viaturas do contingente, mas o major arrependeu-se e revelou a operação de tráfico dos 10 diamantes (cinco em bruto e cinco lapidados), mas não se livrou de ser constituído arguido.

É ainda de referir que Paulo Nazaré, líder da rede de militares e ex-militares que traficou diamantes, ouro e droga proveniente da RCA, se dedicava ao contrabando de mercúrio. Segundo o despacho de indiciação, a 8 de fevereiro de 2021, os inspetores da UNCC da PJ presenciaram um encontro em que lhe entregou dinheiro no âmbito de uma operação de tráfico de mercúrio proveniente da Guiné-Bissau. Dias depois, o ex-comando viajou até à RCA para fazer negócio. Ora, o mercúrio é usado pelos garimpeiros ilegais para separar o ouro do solo, porque adere a este metal precioso, mas, envenenando os rios, ameaça a saúde da população. E as redes de tráfico de ouro, de pedras preciosas, de droga e de armas costumam negociar ilegalmente o mercúrio. 

***

Até 12 de dezembro, nove arguidos da Operação “Miríade” eram obrigados a apresentar-se periodicamente numa esquadra perto de casa, estavam impedidos de se ausentarem para o estrangeiro, suspensos das suas profissões e proibidos de comunicarem entre si. Mas um despacho da juíza de instrução Ana Maria Arnedo extinguiu estas medidas de coação “pelo decurso do prazo máximo da sua duração”. E, assim, ficam os arguidos a aguardar o resto do processo em total liberdade e sem restrições de movimentos ou contactos.

Carlos Cartageno, advogado de Paulo Nazaré, não comenta o caso em concreto, mas referiu que, nestes processos, com longos períodos de investigação, “esta decisão não surpreende”.

Como já foi referido, a rede era liderada por Paulo Nazaré, que foi detido, em novembro de 2021, por suspeitas de tráfico de diamantes da RCA para Portugal. O material vinha escondido em aviões militares para Lisboa. O MP suspeita que o jovem seria “líder da rede criminosa e mediador das operações” ilegais que passavam por outros países como Angola, Guiné-Bissau, Dubai, África do Sul, Brasil e Reino Unido, e cujo tráfico não se limitava aos diamantes. Havia suspeitas de negócios ilegais de ouro, droga e mercúrio, bem como esquemas complexos de branqueamento de capitais, phishing ou o uso de bitcoins. Um esquema tentacular e internacional.

Em agosto deste ano, o DIAP de Lisboa pediu a colaboração das autoridades alemãs para obter informação sobre a identidade do titular de duas contas bancárias num banco de Munique, em que terão sido realizadas, em março de 2020, quatro transferências bancárias suspeitas para Artur A., advogado e um dos principais arguidos da Operação “Miríade”.

Em carta enviada à EuroJust (agência europeia de cooperação judiciária), uma procuradora refere que a Decisão Europeia de Investigação (DEI) dirigida às autoridades alemãs é “urgente”, já que foi emitida no âmbito de “um inquérito declarado de excecional complexidade e com arguidos sujeitos a prisão preventiva, cujo prazo irá terminar a 17 de novembro de 2022”.

Artur A. é suspeito dos crimes de contrabando de diamantes em bruto, associação criminosa, branqueamento de capitais e fraude fiscal. As autoridades suspeitam que o advogado recebeu, entre 2019 e 2020, cerca de 300 mil euros de origem desconhecida. No final de 2020, o advogado falou ao telefone com Carlos, um empresário angolano que lhe prometeu enviar 50 milhões de euros, repartido em tranches semanais de 8,3 milhões de euros. Segundo o MP, Artur A., para esconder a origem ilegal do dinheiro, criou um esquema jurídico fictício, envolvendo empresas portuguesas e angolanas, que movimentou 27 milhões de euros do tal Carlos.

Paulo Nazaré e Wilker Rodrigues, presos no Estabelecimento Prisional de Lisboa desde novembro de 2021, foram libertados em maio deste ano, por os perigos estarem esbatidos.

A investigação UNCC da PJ e do DIAP de Lisboa não está concluída e envolve 66 arguidos, num caso declarado de especial complexidade no início de abril deste ano. Quousque tandem?

2022.12.14 – Louro de Carvalho

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