sábado, 17 de dezembro de 2022

Temos de nos congraçar com a natureza, pois não a podemos vencer

O Professor Filipe Duarte Santos, geofísico e investigador em ambiente e alterações climáticas, diz, Entrevista ao Diário de Notícias (DN) e à TSF, de 16 de dezembro, que urge preparar os cidadãos para os fenómenos extremos, que serão cada vez mais frequentes, lamenta a falta de literacia nas autarquias e avisa que “a tecnologia não resolve tudo”.
Apesar dos alertas, das previsões e dos avisos, as cheias na Grande Lisboa deixaram o costumeiro rasto de destruição e de prejuízo. E aos habituais e conhecidos responsáveis pelo fenómeno – falta de planeamento, desordenamento de território, prevenção insuficiente e, sobretudo, magreza de solução para problemas que sabemos que vão existir – juntam-se as alterações climáticas, a que o investigador na área das ciências do ambiente dá particular atenção.
O cientista observa que há capacidade de prever o tempo, mas não a escala muito pequena e com fiabilidade, embora tenha havido progressos nesse sentido. Sabe-se dizer se vai chover, fazem-se cálculos da quantidade de precipitação, dão-se alertas através de sistemas de radares e de modelos para ver o que se passará a duas ou três horas. Há países que o fazem de forma regular. Depois, há que estimar os impactos da precipitação intensa, sobretudo em intervalos de tempo curtos, num determinado território ou em zona urbana. Há maior vulnerabilidade em solos impermeabilizados com construções, perto das zonas costeiras, como em Lisboa, pois o nível médio global do mar está a subir. Subiu já cerca de 20 centímetros e, até ao fim do século, subirá cerca de 50/60 centímetros. E, se o evento extremo de precipitação coincidir com a maré alta, o escoamento de água é muito mais difícil. É, por isso, necessário ter em conta todos estes fatores no planeamento das cidades, na sua adaptação aos eventos de precipitação intensa, para criar maior resiliência.
Tudo aponta no sentido de os fenómenos de extremo calor, de seca severa e de cheias se repetirem com mais frequência. É um facto, do ângulo científico e da narrativa da ciência. Efetivamente, dão-se em todo o mundo eventos extremos: ondas de calor com temperaturas muito elevadas, gravosas nas regiões tropicais; e precipitação intensa. O ciclo hidrológico está mais acelerado, porque a temperatura é mais alta. Assim, há mais evaporação no oceano e a atmosfera contém mais vapor de água. Por isso, a precipitação tende a ser muito mais intensa. O mesmo se diga das manifestações de vento mais forte, como é o caso dos ciclones tropicais.
Questionado sobre se os modelos de previsão que temos em Portugal são capazes de antecipar com mais antecedência estes fenómenos extremos, para que nos possamos prevenir, o docente e investigador sustenta que a presença de uma grande pressão a oeste de Portugal, que provocou estes rios atmosféricos e se converteu em precipitação, era algo que se conhecia. Sabe-se isso “através de uma escala sinótica, a escala desta grande depressão que tem pressões muito baixas, e, depois, lança estas quantidades de precipitação”. Mas prever o que exatamente se passará numa determinada região já é mais difícil, mas há modelos que permitem estimar a quantidade de precipitação que ocorrerá e modelos combinados com a hidrologia que permitem prever como e em que sítios a água vai subir. E há mais coisas que se podem fazer. Por exemplo, as cidades podem ter sensores que permitam saber, em tempo real, como está a evoluir a subida da água no caso de precipitação muito intensa.  
Na sua análise da atitude da sociedade e dos poderes públicos para com os efeitos das alterações climáticas, diz que as pessoas, em situação de seca, não veem necessidade de adaptação, apenas esperam pela chuva; e, em inundações, não pensam na possibilidade de seca. Mas a atitude pode melhorar, se as pessoas considerarem aquilo com que estamos confrontados. O atinente ao ciclo da água está mais acelerado e os extremos são mais intensos, como explica a Física dos fluidos (a atmosfera é um fluido), uma das partes mais complexas da Física. E “estão a fazer-se progressos nesse sentido”. Porém, não basta a investigação, impõem-se as medidas no terreno.
Na Europa, há exemplos muito avançados de resiliência e de adaptação aos eventos extremos de precipitação. Por exemplo, na Holanda, a água das chuvas muito intensas é canalizada para locais em que não prejudique os bens materiais e as pessoas. Há parques de estacionamento, onde os carros são retirados com antecedência e as portas são abertas para a água, como há espaços ajardinados com uma zona mais baixa, impermeabilizada, que enche, ficando um lago provisório.
O especialista inscreve as cheias de Lisboa no quadro de um evento extremo e muito intenso e julga positivo haver só uma vítima humana, em comparação com o que se tem passado em muitas partes do mundo. Porém, avisa que temos de melhorar quanto aos danos materiais, o que passa pelo ordenamento e por dar espaço à água, ou seja, por criar zonas verdes em que a água se infiltre, e melhorar o ordenamento das cidades. Enfim, temos de nos adaptar ao novo clima.
Sendo Lisboa uma cidades com cheias cíclicas, não se podendo demolir edifícios e verificando-se que os solos estão impermeabilizados com o edificado, é preciso tomar medidas, como a utilização dos sensores já mencionados e a utilização de sistemas de alerta, colhendo os frutos da investigação que está a ser feita no mundo. Ao mesmo tempo, urge dar especial atenção às zonas vulneráveis que estão junto ao rio, pois, se o evento de precipitação extrema ocorre ao mesmo tempo da maré alta, “torna-se tudo muito mais gravoso”. E é preciso ter “um sistema de drenagem das águas pluviais”, que está planeado e que é feito por especialistas.
Para lá dos túneis de escoamento de que se fala há 20 anos e que vão ser construídos, o geofísico defende que é preciso sensibilizar as pessoas para estes problemas. Referindo que as lojas da rua do Coliseu tinham uns sistemas em que se encaixava uma placa para evitar que a entrada da água, frisa que as pessoas sabiam quais eram os sítios vulneráveis. E, embora este tipo de resposta já não faça sentido, é importante sermos todos sensíveis a isto e termos a perceção de que a tecnologia não resolve todos os problemas, pois estamos confrontados com um sistema climático que tem muito mais energia do que no passado e, no futuro, vamos ser confrontados com mais eventos deste tipo, não sendo possível anular as perdas e os danos materiais. Porém, evitá-los-emos em grande parte, se controlarmos as alterações climáticas. Caso contrário, as coisas serão piores. Todos podemos fazer algo para a transição energética, até porque a nossa dependência em termos de combustíveis fósseis está na origem do aumento da concentração dos gases com efeito de estufa que provocam as mudanças climáticas. Depois, há as questões da biodiversidade, da relação do homem com a natureza, da valorização dos ecossistemas, da proteção das florestas. Toda a relação humana com a natureza devia ter maior prioridade, porque só assim podemos construir um futuro mais sustentável e não tão agressivo para os vindouros.
Em relação ao edificado, progrediu-se muito desde 1967, ano de inundações dramáticas na zona de Vila Franca de Xira. Porém, a densidade do edificado é agora muito maior e, muitas vezes, o planeamento é feito sem considerar as mudanças climáticas. Temos de adaptar-nos a temperaturas mais elevadas, agressivas para significativa parte da população, a situações de seca e a situações de inundações. Para isso, é necessário um esforço de literacia sobre estes assuntos. Tem de haver, nas câmaras e nos seus serviços, técnicos preparados para este tipo de trabalho.
Considerando que Ribeiro Telles vinha dizendo que os solos estão a ser cada vez mais impermeabilizados, Duarte Santos, sustenta que há formas de intervir nesta área. Por exemplo, os parques de estacionamento não têm de ser completamente impermeáveis e há sítios onde nem se fazem totalmente impermeáveis. Nas zonas de grandes declives, onde se criam caudais violentos, é necessário redirecionar a água para um sítio onde não seja destrutiva. E mencionou o caso da Associação Portuguesa de Seguradores, que tem planos de adaptação às inundações, precisando “exatamente qual era o risco de inundação”. E, no atinente a projetos com municípios em que se capacitaram técnicos nesta área, sobressaem três: Loulé, Torres Vedras e Guimarães. Porém, há outros, como Cascais, que têm feito trabalhos bastante bons nesse sentido. Até há uma associação de municípios especificamente para a adaptação às alterações climáticas.
O académico não concorda com alguns especialistas que, na perceção de que, por mais que façamos, não poderemos resolver as cheias, sustentam a conformação com tal impossibilidade, “até porque as coisas não são estáticas e temos de estar permanentemente em adaptação”. É certo que o nosso conhecimento sobre o futuro do clima tem muitas incertezas (os climatologistas foram surpreendidos com o que se passou neste ano: em agosto, a Europa – exceto o oeste da Noruega e a parte ocidental da Escócia – esteve em seca). Todavia, a ciência faz um esforço por deter cenários climáticos cada vez mais fiáveis. Viveremos com estas situações, mas não conformados.
O problema é, sobretudo, a dependência dos combustíveis fósseis, que tem de diminuir drasticamente. Porém, após 27 conferências mundiais (COP) sobre o clima, as emissões de CO2, neste ano, são as mais altas, a par do ano de 2019. Em 2020, as emissões do setor dos combustíveis fósseis e das cimenteiras baixaram dos 5%, devido à covid, mas subiram logo.
O também coordenador do Livro Branco sobre o Estado do Ambiente em Portugal (de 1991) sustenta que a COP27 ficou aquém do esperado, pois importa termos em mente que o mundo evolui a duas velocidades. Há os países com muito bom nível de vida e prosperidade económica, que não chegam a ser 20% da população mundial; e há os que “ambicionam ter o mesmo modelo de mainstream economics e que ambicionam ter o mesmo padrão de vida”. Para esses terem maior desenvolvimento económico e prosperidade, têm de consumir muita energia. E, se aparece carvão muito barato, compram-no. Isto resolve-se se os países mais desenvolvidos auxiliarem os outros a fazerem a transição energética. Esse foi o lado positivo da COP27.
Quanto às alegadas falhas da Proteção Civil, o académico diz que é possível melhorar, pois as tecnologias existentes permitem maior fluidez de informação entre o IPMA e a Proteção Civil e entre a Proteção Civil e a população. Porém, a tecnologia ajuda, mas não resolve tudo.
O professor defende aulas de proteção civil nas escolas para que todos consigam autoproteger-se, pois tem de haver maior literacia científica, o que exige esforço. É preciso reconhecer que os estudantes têm de fazer esforço e temos de aprender a não lhes facilitar tudo. A implementação destes planos depende da Matemática e da Física. Por isso, há que dar capacitação científica aos estudantes e falar-lhes das alterações climáticas, mas não de forma aborrecida ou catastrofista.
Num mundo tão complexo, se não tivermos uma certa compreensão da ciência, será difícil interpretarmos o que se passa, pois não podemos controlar o clima.
Temos de ter uma relação harmoniosa com a natureza, pois não a podemos vencer.

2022.12.16 – Louro de Carvalho


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