domingo, 18 de dezembro de 2022

Papa em entrevista polítona: “governa-se com a cabeça”

 

A 17 de dezembro, o diário espanhol ABC publicou, por antecipação, dados de uma entrevista concedida pelo Papa Francisco e que foi publicada, na íntegra, no dia 18, sob a assinatura de Julian Quiros, diretor do periódico, e de Javier Martinez Brocal, vaticanista.

Entretanto, no dia da publicação integral da entrevista, a comunicação social, mesmo a vaticana, fixa-se na carta de eventual renúncia ao Pontificado entregue ao secretário de Estado, logo em 2013, ano da sua eleição para Bispo de Roma, válida para o caso de, por indicação médica, Francisco ficar impedido de exercer o Sumo Pontificado.

Sem desmerecer da notícia e da atitude papal de Francisco, entendo que a entrevista, pela sua abrangência de assuntos, merece uma atenção mais cuidada.

Desde logo, importa atender ao que foi publicado por antecipação. 

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À questão como está o joelho do Papa, a resposta foi que está caminhando e que a decisão certa foi a de não operar. Entre risos, anuiu que já está na idade em que alguém pode dizer a outra pessoa que “está com bom aspeto”. E a quem pensava que a cadeira de rodas imporia diminuição da agenda (que, afinal, triplicou), retorquiu com a sua proverbial maturidade: “Governa-se com a cabeça, não com o joelho.” É o que todos os governantes deviam saber e fazer – digo eu.  

Observa que, se a sua eleição papal, a 13 de março de 2013 (fará dez anos em 2023), apanhou todos de surpresa, também o surpreendeu a ele, que “tinha reservado meu bilhete de volta a Buenos Aires a tempo para o Domingo de Ramos”.

Não sabe se aprendeu ou não a ser Papa e diz que a história nos colhe onde nós estamos.

O que acha mais difícil em ser Papa “é não poder andar nas ruas, não poder sair”, já que, em Buenos Aires, era muito livre, usava o transporte público, pois “gostava de ver como as pessoas se moviam”. E, admitindo que “ainda vê muita gente”, sustenta que o contacto com as pessoas o recarrega, pelo que não cancelou “nem mesmo uma audiência de quarta-feira”. Porém, insiste em dizer que sente falta de sair, “porque agora o contacto é funcional”: vêm “para ver o Papa”, na sua função. Quando saía pela rua, em Buenos Aires, nem sabiam quem era o cardeal.

Concorda que, em Santa Marta, vê muitas pessoas, mas lamenta que muitos queiram tirar proveito disso e “fingir ser amigos do Papa para seus próprios interesses”. E, a este respeito, contou que, tendo vindo à Missa, há uns anos, um candidato argentino, tiraram aos dois uma fotografia fora da sacristia. E o Papa solicitou que não a usassem “politicamente”. Porém, apesar de lhe terem garantido toda a discrição, uma semana mais tarde, Buenos Aires foi atarantada com aquela foto, “adulterada para fazer parecer que se tratava de uma audiência pessoal”. E conclui: “Sim, às vezes, eles usam-me. Mas nós usamos Deus muito mais, então eu fico quieto e vou em frente.”

À dificuldade de ser calibrada toda a palavra que o Papa profere, reage: “Às vezes fazem-no com uma hermenêutica prévia ao que eu disse, para me levarem para onde eles querem que eu vá. ‘O Papa disse isto’. Sim, mas disse-o em determinado contexto. Se se retira do contexto, significa outra coisa.” E à verificação de que nenhum Papa jamais fez conferências de imprensa ou deu entrevistas, falando tão livremente, retorquiu: “Os tempos mudam.”

Por fim, o presente que pediria para este Natal era a “paz no mundo”. Lamenta as guerras todas que há no mundo. E são tantas. E adverte: “A da Ucrânia toca-nos mais de perto, mas pensemos também em Mianmar, no Iémen, na Síria, onde se combate há treze anos...”

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Em relação ao corpo da entrevista integral, é de destacar a revelação feita pelo próprio de que, em 2013, no início do Pontificado, há quase 10 anos, entregou ao cardeal Tarcisio Bertone, então secretário de Estado, uma carta em que declara renunciar, no caso de impedimentos graves e permanentes ligados à saúde (ou seja, “em caso de impedimento por razões médicas”) que o impossibilitassem de exercer o seu papel de Bispo de Roma e pastor da Igreja universal.

Nesta revelação, importa atender à atitude de cuidado, de simplicidade e de liberdade pessoal perante a responsabilidade de governar a Igreja universal com zelo e competência.

Não obstante, na conversa com Julián Quirós e Javier Martínez-Brocal, o Papa aborda numerosos tópicos sobre os acontecimentos atuais na Igreja e no mundo, inclusive a guerra na Ucrânia, de que o Pontífice diz não ver “um fim a curto prazo, porque é uma guerra mundial”, os casos de abusos sexuais de menores, o papel das mulheres na Cúria Romana, Lula da Silva e a questão da Catalunha, a renúncia de Bento XVI em 2013 e a sua própria eventual renúncia.

Sobre a carta de renúncia, Francisco revela: “Eu já assinei a minha renúncia. Foi quando Tarcisio Bertone era secretário de Estado. Assinei a renúncia e disse-lhe: ‘em caso de impedimento médico ou o que quer que seja, aqui está a minha renúncia. O senhor tem-a.’ Não sei a quem Bertone a deu, mas eu dei-lha quando ele era secretário de Estado.”

E à pergunta se queria que isso seja conhecido, respondeu que era por isso que lho estava a dizer. E lembrou que Paulo VI também deixou a sua demissão por escrito, no caso de um impedimento, e que provavelmente Pio XII também o terá feito. Aliás, sabe-se que Pio XII entregou a carta de renúncia para o caso em que as forças hitlerianas invadissem o Vaticano e aprisionassem o Pontífice. No dizer de Pio XII, “só levariam o cardeal Pacelli”.

Diz o Papa que é a primeira vez que faz esta revelação, mas que não é lícito alguém exigir a carta a Bertone, pois Francisco entregou-lha na qualidade de secretário de Estado, pelo que ele a terá passado ao seu sucessor na Secretaria de Estado.

Na entrevista não falta a reflexão sobre o conflito na Ucrânia, contra o qual o Papa inúmeras vezes se pronunciou. E, agora, afirma sem meios-termos: “O que está a acontecer na Ucrânia é aterrorizante. Há uma enorme crueldade. É muito sério...”. Não se vê “um fim a curto prazo”, pois, “trata-se de uma guerra mundial”, visto que “já há várias mãos envolvidas na guerra”. E pensa o Bispo de Roma que “uma guerra é travada quando um império começa a enfraquecer-se e quando há armas para usar, vender e testar”. Há, pois, “muitos interesses envolvidos”. O Pontífice faz o que pode, mas “não o ouvem”. E confirma que recebe e escuta a todos: “Agora Volodymir Zelensky enviou-me um dos seus conselheiros religiosos pela terceira vez. Estou em contacto, recebo, ajudo...”

O Papa move-se em sincronia com o trabalho diplomático da Santa Sé. E questionado porque é o Vaticano tão cauteloso a falar contra regimes totalitários como o de Ortega, na Nicarágua, ou o de Maduro, na Venezuela, responde: “A Santa Sé sempre procura salvar os povos. A sua arma é o diálogo e a diplomacia. A Santa Sé nunca sai por conta própria. É expulsa. Ela sempre procura salvar as relações diplomáticas e salvar o que pode ser salvo com paciência e diálogo.”

Não há, porém, qualquer diplomacia, da parte do Papa, para estigmatizar casos de abusos do clero: “é muito doloroso”, diz ele em referência aos encontros com as vítimas que marcaram o seu pontificado. São pessoas destruídas pelos que deveriam tê-las ajudado a amadurecer e a crescer. Mesmo que fosse apenas um caso… “É monstruoso que a pessoa que deveria levar a outra a Deus a destrua ao longo do caminho. E nenhuma negociação é possível sobre isso” – sustenta.

Quanto a um possível papel de ápice para uma mulher na Cúria Romana, Francisco diz ter em mente uma para um Dicastério que ficará vago dentro de dois anos. Com efeito, não há óbice a que uma mulher lidere um Dicastério onde um leigo pode ser prefeito. Só um Dicastério de natureza sacramental é que tem de ser presidido por um sacerdote ou por um bispo.

No atinente a futuros conclaves, Francisco amortece as polémicas de que os trabalhos dos futuros conclaves podem ser dificultados pela falta de conhecimento entre os cardeais que ele criou, que vêm de lugares diferentes e distantes. Poderia haver problemas “do ponto de vista humano”, mas “é o Espírito Santo que trabalha no Conclave”. E o Papa, sobre a proposta de um cardeal alemão, nos encontros de agosto sobre a Praedicate Evangelium, de que na eleição do novo Papa só participassem os cardeais que vivem em Roma, pergunta: “É esta a universalidade da Igreja?”

Do seu predecessor Bento XVI, diz que é “um santo” e “um homem de alta vida espiritual”. Visita-o com frequência e sente-se sempre “edificado” pelo seu olhar transparente. Tem um bom sentido de humor, está lúcido, muito vivo, fala suavemente, mas segue a conversa.

E, por outro lado, Francisco diz não ter intenção de definir o status jurídico do Papa emérito: “Tenho a sensação de que o Espírito Santo não tem interesse em que eu me ocupe dessas coisas.”

Sobre a Igreja na Alemanha, cujo processo sinodal despertou e ainda desperta várias reações, inclusive negativas, Francisco recorda a carta que escreveu em junho de 2019: “Eu escrevi-a sozinho. Levei um mês. Era uma carta como que para dizer: ‘Irmãos, reflitam sobre isto’.”

Bergoglio refere que está nos seus planos uma viagem a Marselha, para o Encontro Mediterrâneo, especificando que não é uma viagem à França e que a prioridade das suas viagens apostólicas é visitar os países menores da Europa. Interpelado sobre a questão da Catalunha, disse que “cada país deve encontrar o seu próprio caminho histórico para resolver estes problemas”, pois “não há uma solução única”. E cita os casos da Macedónia do Norte ou do Alto Adige, na Itália, com o seu próprio status. Quanto ao papel que a Igreja deve manter neste assunto, enfatiza: “O que a Igreja não pode é fazer propaganda para um lado ou para o outro, mas acompanhar o povo, para que ele possa encontrar uma solução definitiva.” E, na mesma linha, entende que um sacerdote não se deve intrometer na política, já que “o padre é um pastor”. Por isso, “deve ajudar as pessoas a fazerem boas escolhas: acompanhá-las”. Se um padre quer fazer política, deixe o sacerdócio e torne-se um político.

À pergunta sobre a releitura negativa do descobrimento da América, o Papa convida a interpretar um acontecimento histórico com a hermenêutica do tempo e não do momento atual. As pessoas foram mortas, houve exploração, mas os índios também se mataram uns aos outros. A atmosfera de guerra não foi exportada pelos espanhóis. E a conquista pertencia a todos.

Francisco distingue entre colonização e conquista. Não diz que a Espanha simplesmente “conquistou”: “É discutível, quanto quiserem, mas colonizou.” 

Outro caso que chamou a atenção do Papa é o do recém-eleito presidente do Brasil, Inácio Lula. É paradigmático, porque o julgamento do líder político (condenado por corrupção passiva, durante 580 dias na prisão, impedido de concorrer nas eleições presidenciais de 2018, até 2021, quando o Supremo Tribunal anulou todas as sentenças) começou com fake news. Estas “criaram uma atmosfera que favoreceu o julgamento”. O problema das notícias falsas de líderes políticos e sociais é sério. Podem destruir uma pessoa. O caso de Lula, segundo o Papa, não teve “um julgamento à altura”. É preciso cuidado com quem cria a atmosfera para um julgamento. Fazem-no através dos media para influenciar os que devem julgar e decidir. Um julgamento deve ser o mais limpo possível, com tribunais que não tenham outro interesse que manter limpa a justiça.

Por fim, uma menção ao Motu Proprio Ad Charisma tuendum, de julho, sobre o Opus Dei. “Alguns”, comenta o Papa, “disseram: ‘Finalmente o Papa bateu no Opus Dei...!’ Eu não bati em ninguém.” É só uma recolocação. Não é correto exagerar, nem os fazer de vítimas, nem os culpar. Francisco diz-se amigo do Opus Dei, que trabalha bem na Igreja e o bem que faz “é muito grande”.

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Uma entrevista que vale pelo seu tom multicolor.

2022.12.18 – Louro de Carvalho

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