sábado, 10 de dezembro de 2022

É ou não é necessário rever a Constituição?

 

Preferia ter certezas e não ficar na dúvida sobre o que pensar dos decisores políticos e da visão científica dos juristas da nossa praça.

Alguns constitucionalistas, como Jorge Miranda, e a provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, entendem que não é necessária uma revisão da Constituição da República Portuguesa (CRP), mas entendem que uma revisão cirúrgica da mesma possa “resolver alguns problemas”.

Jorge Miranda afasta qualquer alteração na organização do poder político, embora critique o comportamento do Tribunal Constitucional (TC), por não fazer a cooptação dos juízes quando expira o mandato dos cooptados. Porém, aceita alterações no quadro dos direitos fundamentais, como a preocupação ambiental, bem como o estabelecimento do direito de voto a partir dos 16 anos, tendo em conta, neste caso, a coerência com a possibilidade de haver a emancipação e o casamento a partir dessa idade. E, como outros constitucionalistas, entende que a CRP deverá esclarecer a questão dos metadados e o regime jurídico da emergência sanitária em caso de pandemia ou até de epidemia com graves riscos para a saúde pública.    

Já Maria Lúcia Amaral salientou, em entrevista à agência Lusa, que a CRP “tem sido estável”, pelo que, enquanto jurista, defende que “não era necessária uma revisão constitucional”, embora reconheça que este processo possa ser útil “para resolver alguns problemas”, que precisam de ser esclarecidos”, como é o caso dos metadados e o das medidas em estado de emergência, embora entenda que a revisão “não é necessária”. E justificou: “É bom que se esclareça. Passámos por uma pandemia, eu aí fui eco de muitas dessas dúvidas e tive uma política claramente definida. Havia muitas dúvidas em saber se as medidas que foram tomadas fora do estado de emergência tinham ou não suficiente respaldo na Constituição. Era bom que isso ficasse resolvido.”

Em maio de 2021, sustentou que Portugal precisava de uma nova lei que regulamente situações de emergência como a criada pela pandemia, sem os limites de vigência temporal impostos pelo estado de emergência constitucional, e que a sistemática renovação do estado de emergência confere um prazo de caducidade às decisões políticas que comprometem a adesão e a confiança dos cidadãos às medidas em questão. Agora, considerando que “não era necessária uma revisão constitucional”, aceita que a revisão possa avançar e sirva para esclarecer “situações em que estão em causa interesses públicos relevantíssimos”. A este respeito, declarou: “Penso, como jurista, que não era necessári[a] uma revisão constitucional, mas, se a maioria dos juristas entende que é necessária uma revisão constitucional, então que se esclareça a questão.”

Para a provedora de Justiça, a revisão deverá servir também para esclarecer a questão dos metadados, cuja polémica surgiu após o TC ter declarado inconstitucionais normas que determinavam que os fornecedores de serviços telefónicos e de internet deveriam conservar os dados relativos às comunicações dos clientes – como origem, destino, data e hora, tipo de equipamento e localização – durante um ano, para utilização em investigação criminal.

Maria Lúcia Amaral sustentou que, a haver revisão, esta seja “esclarecedora”, “pacificadora” e que “antecipe problemas futuros”. E desafiou que, se há dúvidas na comunidade sobre a falta de clareza constitucional faz sobre isto, “é bom que se esclareça”.

Era importante que os políticos e os juristas da praça esclarecessem se a revisão é ou não necessária. Não percebo como querem que se esclareçam as dúvidas e não é necessária a revisão.

Talvez a questão se esclareça auscultando os cidadãos, como se poderá ver pelos resultados de uma sondagem da Aximage para o DN, o JN e a TSF sobre o processo de revisão em curso.

A iniciativa do processo foi do Chega, mas a aritmética parlamentar dita que as mudanças serão as que forem consensualizadas entre o (Partido Socialista) PS e o Partido Social Democrata (PSD), pois só com o envolvimento destes dois partidos se chega à indispensável maioria de dois terços dos deputados. Assim, deverão passar as alterações que permitam o recurso aos metadados e aos confinamentos, já que ambos incluíram essas matérias na sua lista de prioridades.

Por seu turno, os eleitores estão disponíveis para permitir o acesso das polícias aos metadados em caso de crime grave e para possibilitar que haja pessoas confinadas sem ser necessário declarar o estado de emergência. Essas são as duas propostas com que os eleitores mais se identificam (de um total de seis com que foram confrontados).

Em particular, no atinente à “lei dos metadados”, 59% aceitam que a polícia use dados de tráfego e de localização das comunicações, seja em chamadas telefónicas, seja na navegação na Internet, se estiverem em causa suspeitas de crimes graves e se houver autorização judicial. O apoio à inclusão desta possibilidade na CRP é elevado entre os eleitores do PS e PSD. Se for aprovada, não se repetirá o veto do TC, como aconteceu em abril deste ano, para sobressalto do Ministério Público (MP). Também a proposta respeitante a confinamentos, das listas do PS e do PSD, prevê a possibilidade de restrição da liberdade de portadores de doença contagiosa (por exemplo, a covid), mesmo que o país não esteja em estado de emergência: 54% dos inquiridos concordam, sendo os eleitores socialistas e sociais-democratas os seus maiores defensores.

Há uma outra proposta de alteração que reúne um apoio maioritário dos portugueses (53% concordam), mas cuja hipótese de aprovação é menos clara. O PS propõe a inclusão da identidade de género como fator não-discriminatório (a par, por exemplo, da orientação sexual, da religião ou das convicções políticas) e é entre os eleitores socialistas que o apoio é maior (70%). Contudo, a medida não se encontra nas prioridades do PSD, sendo igualmente certo que os eleitores sociais-democratas não mostram tanto entusiasmo (apenas 45% concordam).

E, quando estão em causa alterações ao funcionamento do sistema político, a resistência é maior. De acordo com a sondagem, as propostas do PSD e do Bloco de Esquerda (BE) no sentido de alargar o voto dos 18 para os 16 anos não têm acolhimento: 28% dos eleitores estão de acordo, mas 47% discordam, incluindo os eleitores sociais-democratas (53%). O mesmo acontece com os mandatos do Presidente da República. Entre as prioridades do PSD para esta revisão, está a ideia de reduzir de dois mandatos para um, embora alargando a sua extensão de cinco para sete anos. A ideia não colhe entre os portugueses: 40% estão contra (entre os eleitores sociais-democratas são 42%) e apenas 32% apoiam essa mudança.

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Ouvidos sobre a matéria os líderes do PSD (Miguel Albuquerque e José Manuel Bolieiro) e os do PS (Sérgio Gonçalves e Vasco Cordeiro) das duas Regiões Autónomas, Madeira e Açores, verifica-se o seguinte:

Os líderes regionais do PSD (e presidentes dos governos das duas regiões autónomas) pretendem que os poderes autonómicos, incluindo o poder legislativo próprio, deixem de ser olhados pelo prisma de um “quase complexo” temor separatista e passem a ser vistos como oportunidade para ensaios de outras opções de governação e de outras soluções mais criativas e inovadoras de desenvolvimento. E julgam imperativa a clarificação dos aspetos relacionados com a gestão partilhada dos recursos naturais, nomeadamente o mar. Por isso, não pode subsistir a forma como o TC aprecia as matérias que lhe são presentes, quase fazendo crer que o modelo constitucional saído de 2004 é idêntico ao anterior, com forte condicionalismo e com leitura restritiva dos poderes autonómicos e dos seus graus de liberdade.

E, em concreto, propõem: a extinção do representante da República, com a transferência constitucional das respetivas competências para o Presidente da República; a clarificação das competências regionais quanto à gestão das zonas marítimas de cada Região Autónoma, no quadro da gestão conjunta e partilhada; a atribuição aos Estatutos Político-Administrativos dos Açores e da Madeira, de modo expresso, do estatuto de leis de valor reforçado; a execução da declaração do estado de emergência assegurada nas Regiões Autónomas pelo Governo Regional; o alargamento dos poderes legislativos e a substituição da designação de decretos legislativos regionais por “leis regionais”; a participação dos presidentes dos Governos Regionais em, pelo menos, duas reuniões anuais do Conselho de Ministros, para discussão de questões respeitantes às Regiões Autónomas; o reforço da participação dos representantes das Regiões Autónomas no processo de construção europeia, nomeadamente quanto à pronúncia sobre questões e decisões que lhes digam respeito e ao seu envolvimento nas instituições regionais e organismos do Estado na União Europeia e nas delegações nacionais envolvidas em processos de decisão europeia; e a possibilidade de os emigrantes votarem nas eleições regionais quando tenham dupla residência – numa Região Autónoma e no estrangeiro.

Referem que os dois arquipélagos reconhecem os constrangimentos colocados pela presente Constituição e estão alinhados na necessidade de possuir mais graus de liberdade para melhor responder aos legítimos anseios do mais de meio milhão de portugueses que vivem no Atlântico.

Por sua vez, os líderes regionais do PS, na oposição, também defendem: a extinção do cargo do representante da República, reatribuindo os seus poderes e competências aos órgãos regionais; o reforço das competências das Assembleias Legislativas Regionais, a necessidade de clarificação das competências das Regiões Autónomas na gestão do território marítimo; a participação dos presidentes dos Governos Regionais no Conselho de Ministros; a possibilidade de eleição de juízes para o TC indicados pelas Assembleias Legislativas; e o reforço dos poderes das Regiões Autónomas na gestão do mar. E o PS Açores ainda propõe: a extinção da proibição de partidos regionais; a eliminação da possibilidade de veto político na promulgação dos diplomas regionais; a atribuição ao Parlamento dos Açores do poder de eleger o presidente do Governo Regional; a criação de provedores setoriais regionais; e o estabelecimento do uso conjunto de símbolos regionais e da República nos respetivos territórios.

Porém, os líderes regionais do PS entendem que a revisão que inclua estas matérias teria de esperar a conclusão, nas respetivas Assembleias Legislativas, do trabalho das comissões eventuais de aprofundamento da autonomia. Por outro lado, o PS nacional, com assentimento das estruturas das regiões autónomas, optou por uma revisão atingente apenas aos direitos fundamentais.

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Por conseguinte, a revisão é necessária, pois há bastante matéria a rever, mas precisa de maiores reflexão e tempo para amadurecimento das propostas a apresentar, de modo que a CRP não olvide as questões fundamentais – tanto em direitos, liberdades e garantias, como na organização do poder político –, mas não seja muito extensa e não se sirva de minucioso programa de governo.

2022.12.10 – Louro de Carvalho

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