terça-feira, 6 de dezembro de 2022

É preciso restituir à política o estatuto de cidadania integral

 

A confiança preferencial dos Portugueses no Parlamento é uma das evidências do estudo Ética e Integridade na Política, da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), coordenado por Luís de Sousa e Suasana Coroado, apresentado na manhã do dia 5 de dezembro.

Os investigadores quiseram compreender a crescente preocupação dos cidadãos com o declínio dos padrões éticos na política, procurando responder a quatro questões interligadas: se os cidadãos e os políticos têm iguais expectativas sobre padrões éticos na política; em que medida os políticos estão cientes do risco reputacional associado à má conduta ética no desempenho; que medidas têm implementado a nível partidário, parlamentar e governamental para mitigar tal riscos; e se os cidadãos e os políticos avaliam, de modo igual, a eficácia das medidas de transparência e de integridade na política.

Na verdade, a qualidade da ética política, em democracia, depende, em muito, da relação entre os cidadãos e os seus representantes políticos. À luz deste pressuposto, os autores do estudo lançaram dois inquéritos interligados e complementares: um às elites (representantes políticos nacionais e locais) e outro à opinião pública. Os inquéritos foram implementados sem grande distanciamento temporal, o que faz do estudo uma referência na matéria.

A partir dos dados recolhidos, torna-se claro que a opinião pública não vê a corrupção política só nas condutas e nas práticas que violam a lei, mas também noutras condutas e práticas consideradas inaceitáveis no desempenho de cargos políticos e que minam a confiança dos cidadãos. A conduta dos políticos no exercício de funções é julgada conforme ou desviante com base em expectativas padronizadas da sociedade sobre o seu papel nas instituições políticas Por isso, importa avaliar se tais expectativas de decência e de civilidade mudaram e se a interpretação que governantes e governados delas fazem se tornou mais discrepante nos últimos anos.

Perante os dados coligidos conclui-se, em linha com estudos semelhantes noutras democracias europeias, que os portugueses revelam menos tolerância à corrupção do que os seus representantes eleitos, tanto a nível local como a nível nacional. Os cidadãos valorizam a honestidade como o princípio basilar de orientação da conduta dos titulares de cargos políticos nas instituições democráticas. E é aí que as interpretações divergem: enquanto os políticos tendem a reconhecer a lei como o único critério orientador da sua conduta, os cidadãos, por uma questão de honestidade, esperam mais. Ou seja, na ótica dos cidadãos, os políticos devem abster-se de relativizar ou de se envolver em práticas que, podendo ser legais stricto sensu, são eticamente impróprias. E o desrespeito por este princípio pode resultar na quebra de confiança.

Com efeito, numa democracia, a corrupção política avança sob muitos disfarces e com muitas desculpas. É recorrente falar-se em inevitabilidade, no pressuposto de que a política é assim, que um determinado político é corrupto, mas faz obra, ou que os eleitores farão o seu juízo em tempo de eleições. Casos há de políticos suspeitos, acusados e até condenados por corrupção política ou por crimes quase afins, como prevaricação ou abuso de poder, que voltaram a ser eleitos em atos eleitorais livres e democráticos.  

Em relação aos riscos reputacionais associados à corrupção política, não há grandes discrepâncias na forma como os deputados e os eleitos locais olham para os efeitos da corrupção política. Ambos os grupos estão igualmente preocupados com os danos que podem advir da sua má conduta, não obstante as diferenças de notoriedade e de responsabilidade associadas aos cargos em questão.

Os autores mapearam medidas autorregulatórias implementadas pelos partidos, parlamentos e governos na Europa, tendo recolhido e classificado informações institucionais em três dimensões regulatórias: fixação, fiscalização e execução das regras. No geral, descobriram que a regulação ética nos partidos, nos parlamentos e nos governos evoluiu positivamente a nível da fixação de normas (códigos de conduta, por exemplo), mas com melhorias marginais em relação à supervisão e à aplicação. Assim, apesar dos benefícios reputacionais a retirar de uma boa regulação da ética política, em particular num contexto de crescente pressão, os progressos obtidos são residuais.

A introdução de novos regulamentos éticos ou a modificação dos existentes exige, muitas vezes, a alteração de leis e de estatutos, o que implica alcançar algum grau de acordo entre os diferentes grupos (partidos, fações, grupos parlamentares) quanto ao modelo regulatório a adotar.

As reformas éticas têm sempre efeitos distributivos: alguns grupos apoiam a mudança, enquanto outros, preferindo o status quo, resistem à mudança. Não obstante, a elite política tende a manter-se coesa face à pressão externa em defesa de regulação ética mais eficaz, sempre que isso lhe prejudique diretamente os interesses ou o controlo que exerce sobre a aplicação e execução das normas. Porém, isso não significa que os políticos prefiram a autorregulação em detrimento da externalização da fiscalização das normas.

Por estratégia, os políticos podem sempre responder à pressão externa concordando com padrões mínimos, orientados mais para ganhos simbólicos de curto prazo do que para o compromisso com uma forma rigorosa e transparente de fazer política a longo prazo. Além disso, a supervisão externa não é, por si, garantia de independência e de imparcialidade. A robustez dos regimes regulatórios não é determinada apenas pelo grau de externalização. Hoje, a maioria dos regimes tende a combinar elementos externos e internos de regulação da ética política, quer sejam percecionados como eficazes, quer não o sejam.

O estudo em referência sugere que, nos países onde há bom histórico de aplicação de normas de conduta no interior das instituições, os políticos têm maior margem de manobra para evitarem reformas intrusivas, pelo menos enquanto a autorregulação não resultar em ineficiência e em impunidade. Onde a regulação da ética política é percecionada como ineficaz, independentemente do seu pendor interno ou externo, os agentes políticos estão mais expostos à pressão de fora para encetarem reformas e mais propensos a enveredar por ações simbólicas, aprovando regras pouco consistentes ou de difícil aplicação e com mecanismos de supervisão inócuos.

Há, pois, três tendências interligadas neste domínio: a formalização ou impulso para mais regras escritas; o proibicionismo ou impulso para a interdição de condutas; e a externalização ou impulso para a fiscalização e execução externa das regras em vigor.

Há uma forte crença, nas democracias europeias, de que, ao atribuir a responsabilidade de definir, fiscalizar e fazer cumprir os padrões éticos dos titulares de cargos políticos a órgãos externos (percecionados como sendo mais independentes), o sistema de regulação da ética política tornar-se-á menos politizado, mais eficaz e mais confiável aos olhos dos cidadãos.

Porém, tal pressuposto não está provado empiricamente. Tornou-se norma fazer crer aos cidadãos que o problema se resolve com a adoção de normas legais inconsistentes, de difícil aplicação e com supervisão externa superficial. A regulação da ética política é uma questão de valência, sendo que todos estarão a favor de cada vez mais leis para impedir condutas impróprias na política. Além de ser considerada a coisa certa a fazer numa democracia, este tipo de soluções é politicamente fácil de adotar, visto que grande parte dessas regras tem pouca ou nenhuma aplicabilidade e, portanto, há poucos custos associados.

Os dados indicam um determinado grau de concordância entre políticos e eleitores quanto a um leque específico de instrumentos de autorregulação. Os nossos políticos parecem recetivos à melhoria da autorregulação da ética política e os eleitores parecem dispostos a recompensar os esforços que os partidos venham a desenvolver nesse sentido. Talvez seja esta a luz ao fundo do túnel. Mas, para tal, é preciso que os esforços de (auto)regulação da ética na política atendam às expectativas dos cidadãos, seguindo uma estratégia eficaz para recuperar a confiança nos partidos e promover a transparência nos cargos públicos. De contrário, políticos e eleitores permanecerão presos a um movimento perpétuo de reformas simbólicas e de desilusão.

O estudo desenvolvido sob a égide da FFMS revela, em termos genéricos, que no início dos anos 2000, os Portugueses tinham mais confiança nas instituições políticas do que satisfação com a democracia; os partidos políticos são as organizações em que os Portugueses menos confiam (mediocridade nos quadros, ascensão rápida, incoerências no discurso, inconsequência entre ação e discurso, estrangulamento dos aparelhos partidários e demasiada proximidade dos interesses económicos); e o Parlamento é a instituição com maior crédito.

Se o Parlamento é tão credível, porque é ameaçado, volta e meia, pelo látego da dissolução?

Segundo o Eurobarómetro, entre 2001 2022, os níveis de confiança dos cidadãos na democracia foram de 54%, na União Europeia (UE), e 41%, em Portugal. A confiança no Parlamento de cada país foi de 34%, na UE, e de 36%, em Portugal. A confiança no Governo de cada Estado situou-se nos 32%, na UE, e nos 35%, em Portugal. E Portugal, no atinente ao nível de confiança nos partidos, encontra-se perto média europeia (17%), ultrapassando-a para o 20%.

Em termos evolutivos, os níveis de confiança nas instituições democráticas portuguesas estão a cair há 20 anos e atingiram os valores mais baixos nos governos de José Sócrates e de Passos Coelho, sendo que os níveis mais baixos de confiança se registaram em 2013, com Passos Coelho. Porém, já na primeira década do século, houve dois momentos em que os níveis de confiança nas instituições democráticas caíram 8% e 12%, respetivamente: 2006/7 e 2009/10, com José Sócrates. O ano com maior nível de confiança foi o de 2017 (no Governo de António Costa), com subidas de 17% e de 20% nos índices de credibilidade, respetivamente, no Governo e no Parlamento. Já os partidos nunca descolaram da média de 20% desconfiança dos cidadãos.

Segundo os autores investigadores, alguma da desconfiança dos cidadãos em relação aos partidos deve-se à opacidade do financiamento. Em 2017, dos entrevistados portugueses 85% acreditava que havia demasiada relação entre os partidos e os interesses económicos (a média da UE era de 79%). Por outro lado, apesar de algumas inovações estatutárias, o modus operandi dos partidos pouco mudou. Os cidadãos têm quase nula participação na escolha de candidatos, a representação parlamentar está monopolizada pelos partidos, o método de conversão dos votos em mandatos favorece os grandes partidos e, devido à dificuldade de recrutamento na sociedade civil, a governação está cada vez mais constituída por pessoas formadas nos partidos.

Tudo isto mostra que é preciso avançar pela maior formação política na sociedade e não a evitar, confundindo-a com a “partidarite”, substituindo-a pelas festas e diversões ou despolitizando as instituições. É preciso restituir à política o estatuto de cidadania integral.

2022.12.06 – Louro de Carvalho

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