segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Os valores fundamentais da vida devem ser os do Reino de Deus

 

Três insignes figuras bíblicas, além de Jesus, marcaram a liturgia do 2.º domingo do Advento no Ano A, a 4 de dezembro: o profeta Isaías, o precursor João Batista e o apóstolo Paulo.

Na primeira leitura (Is 11,1-10) desta Liturgia, Isaías apresenta um enviado de Javé, descendente de David, sobre quem repousa a plenitude do Espírito de Deus e cuja missão é construir um reino de justiça e de paz infindas, de onde estarão definitivamente banidas as divisões e os conflitos.

O trecho profético em causa é um poema que alimenta o sonho do regresso à época ideal do reinado de David, dando fôlego à corrente messiânica.

Atingida a maioridade, o rei Ezequias passou a dirigir os destinos de Judá (cerca de 714 a.C.) e tentou consolidar uma frente antiassíria, com o Egito, a Fenícia e a Babilónia – atitude censurada pelo profeta, por significar a colocação da confiança e da esperança no poder de exércitos estrangeiros, negligenciando o poder de Deus, e por ser um grave sinal de infidelidade a Deus. Daí resultaria a ruína da nação, que se consumou quando Senaquerib invadiu Judá, cercou Jerusalém e obrigou Ezequias a submeter-se ao poder assírio (701 a.C.).

Desiludido com a política dos reis de Judá, o profeta passou a visionar um tempo novo, sem armas e sem guerras, de justiça e de paz sem fim, o qual só poderia surgir da iniciativa de Javé, cujo instrumento na implementação desse reino seria, na visão do profeta, um descendente de David. Este poema será o texto epocal em que melhor se combinam profecia e sonho.

Na sua primeira parte (Is 1-5), o profeta apresenta o instrumento de Deus na concretização do reino. Virá “da raiz de Jessé”, pai de David e fará voltar o tempo ideal de bem-estar, de abundância e de paz que o Povo de Deus viveu no reinado ideal de David. Será animado pelo Espírito de Deus (ruah Jahwéh), o que ordenou o universo no alvor da criação, animou os heróis carismáticos de Israel e inspirou os profetas. Esse Espírito confere ao enviado de Deus as eminentes virtudes dos antepassados: sabedoria e inteligência, como as de Salomão, espírito de conselho e de fortaleza, como o de David, e espírito de conhecimento e de temor de Deus, como o dos patriarcas e profetas. A estas virtudes a versão grega dos Setenta acrescentou a piedade. Eis a origem da lista dos dons do Espírito Santo (Sacrum Septnarium).

Da plenitude carismática brota a justiça e a construção do reino onde os direitos dos pobres são respeitados e os oprimidos terão a liberdade e a paz. Dele serão excluídas, definitivamente, a injustiça, a mentira, a opressão e a repressão. Tal será o reino que o Messias virá inaugurar.

Na segunda parte do poema (Is 11, 6-9), Isaías descreve o quadro do mundo novo que o Messias vai instaurar. A revolta do homem contra Deus introduzira no mundo fatores de desequilíbrio que quebraram a harmonia entre o homem e a natureza, entre o homem e o irmão. Agora o Messias trará a paz e cumprir-se-á o desígnio de Deus para o mundo e para o homem: os animais – selvagens e domésticos – viverão em harmonia e todos estarão submetidos ao homem na sua fragilidade máxima. A própria serpente (que, estando na origem do afastamento do homem do Deus criador, instaurou a desarmonia universal) comungará desta harmonia e paz: é a superação do desequilíbrio, do conflito, da divisão que o pecado fez entrar no mundo. Desfeitas as inimizades e superadas as desarmonias, o homem viverá em paz, em total comunhão com Deus. No paraíso terreal, optou por ser adversário de Deus e por viver no orgulho e na autossuficiência; agora, por ação do Messias, regressa à comunhão com o criador e passa a viver no “conhecimento de Deus”. Regressa ao paraíso original e torna-o mais o espaço do homem.

No Evangelho (Mt 3,1-12) João Batista anuncia que a concretização do Reino está muito próxima. E, para que o Reino se torne realidade viva, convida os coetâneos a mudarem a mentalidade, os valores, as atitudes e os comportamentos, para que haja, nas suas vidas, lugar para a Salvação que está a chegar, pois “Aquele que vem” oferece aos homens o batismo “no Espírito Santo e no fogo”, que os tornará “filhos de Deus” e capazes de viverem no dinamismo do Reino.

Após o Evangelho da Infância (cf Mt 1-2), Mateus apresenta a figura que prepara os homens para acolherem Jesus: João Baptista, que foi o guia carismático do movimento popular que anunciava a proximidade do “juízo de Deus”. Vivia no deserto, nas margens do rio Jordão. A sua mensagem, centrada na urgência da conversão, pois o “juízo de Deus” estava iminente, incluía o rito de purificação pela água, rito frequente entre alguns grupos judeus da época, sendo provável que João tivesse relação com a comunidade essénia de Qûmran, para a qual o juízo de Deus e os rituais de purificação pela água faziam parte do quotidiano. E, segundo a mais antiga tradição cristã, Jesus teve relação com o movimento de João no início da sua vida pública e alguns discípulos de João tornaram-se, a partir de certa altura, discípulos de Jesus (cf Jo 1,35-42).

Os primeiros cristãos viram João como o mensageiro anunciado em Is 40,3 e como Elias (2Rs 1,8) que, segundo a tradição judaica, anunciaria a chegada do Messias. Assim, João foi o precursor a preparar o caminho e Jesus é o Messias, enviado por Deus para anunciar o reinado do Senhor.

Em João, há vários fatores a destacar: a figura, a mensagem, as reações ao anúncio e a comparação entre o batismo de João e o batismo de Jesus.

João é figura que interpela. Aparece ligada ao deserto (lugar de privações e de despojamento, mas também lugar do encontro entre Javé e Israel), não ao Templo ou aos sítios onde se reúne a sociedade seleta de Jerusalém; usa, como Elias, “uma veste tecida com pelos de camelo e uma cintura de cabedal à volta dos rins”, não as roupas finas, com pregas minuciosamente estudadas, dos sacerdotes da capital; faz alimentação frugal (de “gafanhotos e mel silvestre”), em contraste com as iguarias finas das mesas da classe dirigente. É, pois, um homem que – por palavras e pela própria pessoa – questiona um certo estilo de vida, voltado para as coisas, para o “ter”, convidando à conversão, à mudança de valores, ao esquecimento do supérfluo, para relevar o essencial.

Mateus resume o anúncio joânico no pregão: “Convertei-vos (“metanoeîte”), porque está perto o Reino dos céus”. O verbo grego (metanoéô) tem o sentido de “mudar de mentalidade”; mas aqui deve ser visto na perspetiva do Antigo Testamento (AT), como apelo ao retorno incondicional ao Deus da Aliança. E esse retorno ou conversão é urgente, porque o “Reino dos céus” está perto. Muito provavelmente, João ligava a vinda iminente do Reino ao “juízo de Deus”, que destruiria os maus e inauguraria, com os bons, um mundo novo. Por isso, fala da “cólera que está para vir” e acrescenta: “o machado já está posto à raiz das árvores”, pelo que “toda a árvore que não dá fruto será cortada e lançada ao fogo”. E, na ótica de João, é urgente a conversão, pois aproxima-se a intervenção justiceira de Deus na história humana; e quem não estiver do lado de Deus será aniquilado – perspetiva em voga em ambientes apocalípticos, como na teologia dos essénios.

A mensagem é para todos. Com efeito, Mateus fala da “gente que acorria de Jerusalém, de toda a Judeia e de toda a região do Jordão” e era batizada “por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados”. No entanto, Mateus faz especial referência a fariseus e a saduceus, para quem João tem palavras duríssimas: “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir? Praticai ações que se conformem ao arrependimento que manifestais. Não penseis que basta dizer: ‘Abraão é nosso pai’.” São pessoas que, à cautela ou por curiosidade, vêm ao encontro de João, mas sentem que o juízo de Deus não as atingirá porque, sendo filhos de Abraão e membros privilegiados do Povo eleito, Deus tem de os salvar, quando vier para julgar o mundo e condenar os maus. Porém, João adverte que não há salvação mecanicamente assegurada aos inscritos nos registos do povo eleito: é preciso viver em contínua conversão e fazer as obras de Deus, pois “toda a árvore que não frutifica será cortada e lançada ao fogo”.

Releva-se, no texto, o rito de imersão na água do rio Jordão das pessoas que aderiam ao apelo à conversão. Era rito praticado em certos ambientes judaicos a significar a purificação do coração e que João ministrava para significar o arrependimento, o perdão dos pecados e a agregação ao “resto de Israel”, subtraído à ira de Deus. Todavia, João adverte: “Aquele que vem depois de mim […] batizar-vos-á no Espírito Santo e no fogo.” De facto, o batismo de Jesus vai muito além do batismo de João: confere a quem o recebe a vida de Deus (Espírito) e torna-o filho de Deus; e implica a incorporação na Igreja (comunidade dos que aderiram à salvação que Cristo trouxe) e a participação ativa na missão da Igreja. Significa o arrependimento e o perdão dos pecados, mas também um quadro de vida novo, o da relação de filiação com Deus e de fraternidade com Jesus e com todos os batizados.

Por sua vez, a segunda leitura (Rm 15,4-9) dirige-se aos que receberam a proposta do Reino. Sendo o rosto visível de Cristo no meio dos homens, devem dar testemunho de união, de amor, de partilha, de harmonia, acolhendo e ajudando os irmãos mais débeis, a exemplo de Jesus.

A Carta de Paulo é de reconciliação, endereçada aos romanos, mas dirigida a toda a Igreja. Pretende, quando culturas e sensibilidades diferentes dividem os cristãos, afastar o espectro da divisão da Igreja e levar os crentes a redescobrir a unidade da fé e a igualdade de todos ante Deus. Tendo optado por Cristo e recebido o batismo, receberam o dom de Deus e tornaram-se irmãos.

O trecho em referência pertence à segunda parte da carta (Rm 12,1 – 15,13), em que Paulo exorta os cristãos a viver no amor e lhes dá algumas indicações práticas acerca do comportamento que devem assumir para com os irmãos.

O texto deve entender-se no contexto mais amplo da perícope que vai de 15,1 a 15,13, construída na base de dois parágrafos simétricos que apresentam a mesma sequência e organização: exortação; motivação cristológica; iluminação a partir da Escritura; e súplica final.

Na primeira parte, Paulo exorta os cristãos a vencer o egoísmo e a autossuficiência e a dar as mãos aos mais débeis. Como motivo de tal postura, invoca o exemplo de Cristo, que não procurou um caminho de facilidade, mas escolheu o amor e o dom da vida. Esta postura é a que a Escritura – escrita para nossa instrução – nos sugere. E Paulo pede ao “Deus da perseverança e da consolação” que dê aos cristãos de Roma a harmonia, para que O louvem num só coração e numa só alma. Na segunda parte, Paulo exorta os crentes a não fazerem discriminações, mas a acolherem todos. Como razão para este comportamento, aponta o exemplo de Cristo, que acolheu todos os homens e justifica o que disse entes com o exemplo da Escritura, citando explicitamente vários textos do AT. E pede ao “Deus da esperança” que cumule os crentes “de alegria e de paz, na fé”.

O mais importante de tudo isto é a mensagem que sobressai no texto: a comunidade deve viver em harmonia, acolhendo e ajudando os mais fracos, sem discriminar nem excluir ninguém, no amor e na partilha. Cristo é o exemplo que a comunidade deve ter sempre diante dos olhos.

Em suma, Isaías e João encaminham-nos para Cristo, de quem Paulo é testemunha esclarecida, esclarecedora e infatigável. Estas figuras bíblicas, entendidas segundo a palavra e a atitude de Cristo, mostram a efemeridade dos reinos do mundo, a fragilidade da vida assente nos critérios humanos perpassados pela autossuficiência, egoísmo e ganância do poder, do dinheiro e da fama e constituem veemente apelo à assunção dos valores do Reino: a sabedoria do dom, a força do Espírito, a entrega, a partilha, o diálogo, a fraternidade, a inclusão, a comunhão, a justiça, a paz.   

2022.12.05 – Louro de Carvalho

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