sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

A “Tempestade Perfeita” tem implicações políticas e justiçosas

 

No âmbito da Operação “Tempestade Perfeita”, da Polícia Judiciária (PJ), por suspeitas de crimes de corrupção ativa e passiva, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e branqueamento, em adjudicações do Ministério da Defesa Nacional (MDN) a várias empresas, por derrapagem das obras de adaptação do Hospital Militar de Belém para o tratamento de doentes covid-19, a Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da PJ fez cinco detenções, a 6 de dezembro. E, em resultado da investigação, ficaram constituídos, no total, 19 arguidos.

A operação da PJ, que se desenvolveu em Lisboa, no Porto, em Alter do Chão, em Almada e na Comporta, contou com 200 inspetores e peritos, um magistrado judicial e dois procuradores. Os detidos foram ouvidos por um juiz de instrução criminal, que definiu as medidas de coação.

O MDN confirmou a presença da PJ e do Ministério Público (MP) nas suas instalações, na Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN), no âmbito de averiguações a atos praticados entre 2018 e 2021, reafirmando “a sua total colaboração com as autoridades em tudo o que lhe for solicitado”. Por sua vez, a CNN Portugal garantiu que um dos cinco detidos é Alberto Coelho, alto quadro do Estado que, durante seis anos, liderou a DGRDN e que  fora acusado pelo MP, como avançou, em abril, o Diário de Notícias (DN). Antes de ocupar tais funções, foi diretor-geral de Pessoal, desde 2002. Ao todo, foi ao longo de 18 anos diretor-geral no MDN. Outros dois são altos quadros civis do MDN: Francisco Marques, diretor de Serviços de Infraestruturas e Património, e Paulo Branco, ex-diretor da Gestão Financeira.

A ligação de Alberto Coelho à Defesa é tão antiga como a democracia: desempenhou as suas primeiras funções públicas em 1976, no Conselho da Revolução. Militante do Partido do Centro Democrático Social (CDS), foi presidente do seu Conselho Nacional de Jurisdição na liderança de Francisco Rodrigues dos Santos. Segundo a PJ, estão em causa crimes de corrupção ativa e passiva, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e branqueamento, ilícitos que lesaram o Estado em muitos milhares de euros, que podem ter levado à derrapagem dos custos das obras de adaptação do ex-Hospital Militar de Belém (ex-HMB), agora Centro de Apoio Militar de Belém, para o tratamento de doentes de covid-19, que ascenderam aos 3,2 milhões de euros, quando a previsão era de 750 mil euros, como revelou o Expresso em abril de 2021.

O relatório de auditoria que apurou a mais do que a quadruplicação do valor foi classificado como “confidencial” pelo então ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, decisão que justificou por estarem em causa “eventuais responsabilidades individuais”. E, na sequência do relatório, Gomes Cravinho afastou Alberto Coelho da DGRDN, mas fê-lo presidente da empresa de tecnologias de Defesa ETI (Empordef – Tecnologias de Informação), que pertence 100% ao Estado, tendo deixado o cargo em agosto deste ano, por motivo de reforma.

O caso dos valores excessivos para a adjudicação em causa foi identificado oficialmente, em julho de 2020, através de despacho do então secretário de Estado Jorge Seguro Sanches, onde vincou não ter recebido respostas esclarecedoras de Alberto Coelho sobre quem autorizou uma despesa “mais de três vezes superior ao inicialmente estimado” para as obras no ex-HMB. Os valores ultrapassavam em muito o plafond autorizado a diretores-gerais. Além disso, Seguro Sanches assinalava que as adjudicações não foram comunicadas aos membros do Governo responsáveis. E ordenou a auditoria que apurou os pormenores que levaram à investigação da PJ e a denúncias anónimas de factos que se reportam a 2018.

Segundo a notícia de abril, do DN, no contraditório solicitado pela Inspeção-Geral de Defesa Nacional (IGDN), Alberto Coelho disse ter informado o ministro numa apresentação presencial sobre o início do procedimento e sobre a autorização para a realização da despesa e alegou ter recebido permissão que, num despacho de 20 de março de 2020, dava indicação para “avançar a todo o gás”. Não era, porém, um pedido formal de autorização.

No despacho em que identificou o problema, Seguro Sanches queixou-se da forma como Alberto Coelho lhe respondeu às perguntas, com o envio de “220 folhas”, não numeradas e não identificadas, entregues de “de forma desordenada”. E escreveu que o procedimento do ajuste direto e a escolha das empresas contratadas eram da exclusiva responsabilidade do diretor-geral, que o fez “sem qualquer pedido de autorização à tutela”, ao invés do exigido por lei.

Além da oposição, também o então secretário de Estado da Defesa achou imprudente a nomeação de Alberto Coelho para a presidência da ETI. Seguro Sanches tinha feito várias diligências, que contribuíram para desencadear as investigações judiciais que culminaram com a detenção de três altos quadros do MDN e dois empresários, destapando uma rede que já vai em 19 arguidos.

Quando Cravinho apontou Coelho para a ETI, Seguro Sanches tinha feito dois despachos negativos para a DGRDN. O primeiro, a 24 de julho de 2020, verificava a sobredita derrapagem e que a despesa não tinha sido autorizada por si. O diretor-geral tinha extravasado as competências legais e Seguro Sanches dava conta da resistência ou recusa de Alberto Coelho em discriminar os “valores totais”, os contratos e os valores adjudicados. O despacho deu origem a auditoria da IGDN. Uma semana depois, o segundo despacho, de 3 de agosto de 2020, evidenciava o recurso ilegal desses €3,2 milhões a partir de verbas da Lei das Infraestruturas Militares (LIM), que prevê as alienações, os investimentos e as obras nos edifícios das Forças Armadas. O secretário de Estado escrevia não ter dado acordo nem despacho a qualquer integração dos projetos do ex-HMB na LIM, pelo que os projetos tinham de ser corrigidos, pois, segundo a LIM, a reafetação das verbas só pode ser feita com autorização do membro do Governo responsável.

Nos meses seguintes, a IGDN produziu uma auditoria revelada em abril de 2021, quando a TSF noticiou as conclusões que comprovaram a mais do que quadruplicação dos valores da obra no ex-HMB e a ilegalidade das decisões. Gomes Cravinho manteve a classificação da auditoria como “confidencial”, mas enviou-a ao Tribunal de Contas (TdC) e à Procuradoria-Geral da República (PGR). Porém, nomeou Alberto Coelho para o novo cargo e desvalorizou a derrapagem orçamental em declarações no Parlamento. Mais: em julho de 2021, a Defesa não acatou o parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), a dar razão a uma queixa do Expresso, no sentido da desclassificação da auditoria.

Entretanto, o ministro dos Negócios Estrangeiros disse que “este é o momento de trabalho da justiça, não é o momento para comentários políticos”, desejando “que se esclareça tudo o que há a esclarecer e que a justiça possa fazer o seu trabalho”.

O atual secretário de Estado da Defesa, Marco Capitão Ferreira, que era o presidente da idD quando Alberto Coelho foi nomeado administrador da ETI, escuda-se no parecer da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP) e na informação disponível, apesar de tudo o que já se sabia: “Qualquer decisão tem por base a informação disponível no momento em que é tomada.” E frisou que a nomeação “cumpriu os preceitos legais e foi precedida de avaliação curricular e de adequação de competências pela CReSAP”. No entanto, Alberto Coelho viria a ser multado em €15 mil pelo TdC por seis infrações financeiras.

Helena Carreiras, ministra da Defesa Nacional, garante “total colaboração com as autoridades em tudo o que for solicitado”. E, quanto à manutenção de Francisco Marques no cargo de diretor de Serviços de Infraestruturas e Património, o seu gabinete respondeu que “quaisquer decisões de caráter funcional ou disciplinar que se mostrem necessárias serão tomadas em devido tempo”. E Paulo Branco, ex-diretor da Gestão Financeira, foi exonerado em 2021 e é coordenador setorial do Sistema Nacional de Planeamento Civil de Emergência. Homem insubstituível!

Segundo o MP, Alberto Coelho, Paulo Branco e Francisco Marques participaram “num esquema de conluio de contratação pública” com alguns empresários da área da construção civil, e usaram “estratégias sofisticadas” para esconderem a origem dos lucros. Durante dois anos, receberam “quantias em numerário, viaturas e remodelação dos seus imóveis”. As autoridades tiveram em conta duas auditorias da IGDN e o relatório da Unidade de Perícia Financeira e Contabilística (UPFC) da PJ, que concluíram que, entre 1 de janeiro de 2015 e 24 de fevereiro de 2021, Alberto Coelho se fez “ladear de pessoas da sua confiança, colocando-as em funções estratégicas” no MDN. Paulo Branco foi nomeado em setembro de 2020 e Francisco Marques foi contratado três meses depois. Para o MP, os dois usaram do forte ascendente sobre funcionários sujeitos ao seu poder hierárquico e usaram amizades construídas no seu percurso profissional naquele organismo do Estado para avançar com um esquema que terminou no início de 2021, quando Alberto Coelho saiu da DGRDN, no fim do mandato, mas após as notícias sobre a derrapagem da empreitada do ex-HMB. Pelo mesmo motivo, Paulo Branco foi afastado do cargo que ocupava no MDN.

Há ainda dois grupos de suspeitos: três donos de empresas de construção civil e dois empresários da desmatação e limpeza de terrenos, que beneficiaram de adjudicações em edifícios militares.

***

De imediato, o presidente do Chega defendeu a demissão do ministro dos Negócios Estrangeiros, Gomes Cravinho, ex-titular da Defesa Nacional, por considerar que o governante é “o principal responsável da situação que hoje se vive na Defesa, não obstante já não ser ele o titular da Defesa”. E conseguiu agendar potestativamente, para o dia 20, uma audição com o ministro.

Entretanto, o Partido Social Democrata (PSD) quis ouvir formalmente, na Comissão de Defesa, explicações de Gomes Cravinho e do atual secretário de Estado da Defesa, mas a maioria não permitiu a audição, aduzindo que o Chega tem já uma conversa agendada com o ministro.

O requerimento foi rejeitado com os votos contra do PS, embora obtendo os votos favoráveis de PSD, Chega, Iniciativa Liberal e PCP. O Bloco de Esquerda não marcou presença na reunião.

Do meu ponto de vista e dado que o ministro se disponibilizou para a audição, até porque diz ter agido sempre de forma correta, o caso merece todas as explicações políticas, não bastando que a Justiça atue. Talvez a postura do Parlamento Europeu e do grupo do Partido Socialista Europeu PSE), no caso de Eva Kaili, possam servir de exemplo ao nosso Parlamento. Ministros e Secretários de Estado têm, antes de mais, a responsabilidade política perante o Parlamento e perante os eleitores, que pode não redundar, eventualmente, em responsabilidade jurisdicional.       

2022.12.15 – Louro de Carvalho

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