terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Em Fátima, intelectualização a mais e pouca atenção aos peregrinos (?)

 

A 22 de dezembro de 2022, o jornal digital 7Margens dava conta da forte crítica de Monsenhor Luciano Paulo Guerra, antigo reitor do Santuário de Fátima, aos atuais responsáveis pela pastoral fatimita, no que julga ser uma gestão cujo “fito primário mais explícito são os intelectuais”, não deixando espaço à “dedicação aos pobres”.

Ao mesmo tempo, em contraponto, explicita a reação dos criticados, que devolvem várias delas, aduzindo que resultam de “uma leitura pessoal” que traduz um “alheamento do que é hoje o Santuário […] que carece de fundamentação e revela um profundo desconhecimento da atual gestão […] e dos desafios com que se confronta”.

Efetivamente, Paulo Guerra, que foi reitor durante 35 anos (entre 1973 e 2008), em entrevista ao semanário Jornal de Leiria, diz que a sua prioridade eram “os peregrinos em geral”, que “podem considerar-se pobres, a classificação humana que mais convém aos filhos de Deus” e que hoje isso não acontece. Assim, sustenta que “prevalece a intelectualidade e a arte”, ficando “a grande massa de peregrinos, gente simples pobre e humilde” em plano secundário.

Recorde-se que a Luciano Paulo Guerra, sucedeu, em 2008, o Padre Virgílio Antunes, a quem sucedeu, em 2011, quando este foi nomeado bispo de Coimbra, o Padre Carlos Cabecinhas.

Monsenhor Paulo Guerra critica a “esplendorosa celebração do centenário”, em 2017, vincando: “Houve muita música e outras manifestações artísticas. Fazem-se ainda hoje exposições maravilhosas, mas que, a meu ver, ficam demasiado caras e, até por isso, de resultado pastoral menos evidente. O peregrino que vem a Fátima não precisa senão de um ambiente de oração.”

Segundo o comunicado divulgado pelo Santuário, as asserções do antigo reitor revelam “uma grande contradição entre aquela que foi a ousadia” de Monsenhor Luciano Guerra, que, “durante 35 anos, nunca deixou que o Santuário cristalizasse na sua ação pastoral e procurou que fosse sempre evoluindo, mas que agora manifesta total oposição a toda a evolução verificada desde 2008”. O mesmo se dirá da pretensa ‘intelectualização’ da pastoral do Santuário: “Luciano Guerra foi um homem de cultura, que convidou alguns dos mais reputados artistas nacionais, e até internacionais, a interpretar a mensagem e a materializá-la em obras de arte e iniciou os congressos internacionais que reuniram na Cova da Iria grande parte dos teólogos pensadores da contemporaneidade” – contributo precioso que o Santuário não esquece, antes valoriza.

Quanto a gastos, a resposta ao antigo reitor recorda que a sua gestão foi também objeto de muitos reparos, nomeadamente pela construção de estruturas como a Basílica da Santíssima Trindade. Com efeito, a sua política de investimentos “passou sobretudo pela construção de grandes espaços celebrativos” e consome agora “grande parte dos recursos orçamentais”, devido à necessidade de administrar, manter e conservar.

Na entrevista, o antigo reitor contesta ainda os salários altos no Santuário: “Um padre é um padre. “Não pode, de maneira nenhuma, comparar-se a um administrador de uma empresa, mesmo que os leigos que o sacerdote dirige recebam salário superior.” E, na mesma linha, acrescenta: “Houve trabalhadores que, praticamente, foram expulsos; a vários outros […] teve a instituição de pagar altas indemnizações; outros saíram e calaram-se, com receio de retaliações. Quase de rompante, foram admitidos mais de 130 novos funcionários, numa casa que tinha 210. Houve uma série de pessoas que foram empurradas para sair.”

A isto o Santuário responde que se requer uma “gestão profissional, adaptada às exigências de hoje, sempre comprometida com o bem comum e com a dimensão social” e que “nunca deixou de cumprir qualquer obrigação, desde logo com os seus funcionários”. Estão equilibradas as contas e os despedimentos não o foram, antes se tratou da adaptação do “quadro de pessoal às necessidades pastorais resultantes do novo contexto, que obrigou a redução muito significativa da atividade em 2020, que se prolongou no ano de 2021 e que, em 2022, começou a ser retomada.

Referindo-se às “situações ímpares, nunca antes vividas” e ao “ano mais difícil da história da instituição”, que foi 2020, o comunicado sublinha que, das 57 desvinculações registadas, 16 foram revogações de contrato por mútuo acordo, iniciativa do próprio trabalhador; 20 foram cessações de contrato no seu termo, dos quais nove eram estudantes; e, ainda, houve 17 rescisões por iniciativa do trabalhador e quatro aposentações por velhice.

Nas suas críticas, o antigo reitor considera que se impõe “um enorme esforço de purificação do Santuário, no sentido de o fazer voltar-se para o público de peregrinos, que pode ser considerado de pobres”. E os responsáveis contrapõem que o Santuário dá apoios sociais, “incrementando e intensificando o apoio material a quem dele mais precisava e à Igreja em geral”.

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Lamento este despique de críticas, num espaço que deve ser de discussão no atinente à melhoria da organização e funcionamento pluriforme do Santuário, enquanto local de recolhimento e de peregrinação. Há um chorrilho de acusações mútuas que desdizem da boa saúde eclesial.

Não há dúvida de que foi Paulo Guerra, com o beneplácito do bispo Dom Alberto Cosme do Amaral, que reformulou toda a perspetiva pastoral do Santuário de Fátima: melhoria do acolhimento aos peregrinos, mormente os doentes e os que peregrinam a pé (serviço que era prestado desde o início das peregrinações eclesiasticamente enquadradas); modernização dos espaços (Capelinha das Aparições, com o confortável abrigo dos peregrinos, Recinto de Oração, as duas Casas de formação e de apoio aos serviços do Santuário); construção do Centro Pastoral Paulo VI; construção da Igreja da Santíssima Trindade (hoje, basílica); melhoria organizativa dos atos de culto e maior coerência nos atos litúrgicos; colocação de novas estátuas icónicas de Fátima; dotação da Livraria do Santuário de receio de alta qualidade, sem descurar a piedade popular; criação de vários parques de estacionamento; empenho em campanhas de solidariedade (o primeiro contributo de grande impacto foi o apoio material às vítimas do grande incêndio da Curraleira, Lisboa, em 1975); significativo reforço das ações temáticas a vários níveis, como seminários, congressos, simpósios; disponibilidade, por vezes remunerada de algumas instalações a entidades externas; e estabelecimento de parcerias. Mais: tentava auscultar a opinião dos peregrinos sobre o culto e sobre as obras, através da disponibilidade de cadernos de sugestões.

Tudo isto a reitoria reconhece como positivo e segue. Porém, não era oportuno atirar com o facto de a gestão de Monsenhor Guerra ter sido criticada ao tempo, a menos que houvesse razões para isso, o que não parece. De resto, só não é criticado quem nada faz. E é óbvio que os equipamentos, num lugar destes, nunca são excessivos, mas importa cuidar deles, conservá-los e rentabilizá-los.

É natural que o antigo reitor não tenha acompanhado, de forma ortodoxa, a evolução da gestão de Fátima e tenha cometido certa injustiça em relação à probidade dos atuais responsáveis, que não descuram a atenção e o serviço aos peregrinos e continuam, exemplarmente, a encher a agenda do Santuário de bons momentos artísticos e culturais, de iniciativas de reflexão e de debate, muitas delas de cunho espiritual, de escritos históricos e teológicos. E não descuram as obras necessárias, como o novo altar do Recinto de Oração. De resto, parece inclemente a crítica surgida após dois anos de pandemia, tão difíceis para todos, a fortiori, para um centro de atividades que dispunha de tanta gente e com tão pouco que lhe dar a fazer.  

Por mim, só me pergunto por que motivo tem estado inoperacional o grande auditório do Centro Pastoral Paulo VI e por que razão foi substituída a missa da vigília das peregrinações aniversárias por uma Celebração da Palavra. É óbvio que a comunidade cristã não tem de reunir só para a Eucaristia, mas haverá peregrinos que vão a Fátima e não ficarão para a Missa Internacional do dia 13. Aí, parece ter havido uma certa regressão.   

Há, no entanto, uma crítica de Monsenhor Guerra a ter em conta. A gestão profissional, invocada pela reitoria, não postula que o reitor se assuma como CEO de empresa. E este deu a entender que o era, em entrevista em que foi questionado sobre os alegados “despedimentos”. É possível que alguns leigos, enquanto assessores qualificados, percebam um vencimento fora do comum. Porém, os sacerdotes devem contentar-se com um salário justo e digno, mas não excessivo. Precisa-se de uma gestão profissionalizada, mas não vale tudo. O santuário não é uma empresa, nem um Estado. Vive dos contributos dos peregrinos e dos devotos e dispõe também duma panóplia de voluntários que trabalham por devoção.

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Por fim, são de recordar as missões do santuário, na linha da Carta Apostólica Sanctuarium in Ecclesia: incremento do papel evangelizador do santuário e incentivo da religiosidade popular; promoção de uma pastoral orgânica do Santuário como centro propulsor da nova evangelização; promoção de encontros nacionais e internacionais para favorecer uma obra comum de renovação da pastoral da piedade popular e da peregrinação rumo a lugares de devoção; promoção da formação específica dos seus agentes e do santuário como lugar de piedade e de devoção; zelo para se ofereça aos peregrinos, nos lugares de passagem, assistência espiritual e eclesial concreta que permita o maior fruto pessoal destas experiências; e valorização cultural e artística do santuário segundo a via pulchritudinis como modalidade peculiar da evangelização da Igreja.

2022.12.27 – Louro de Carvalho

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