quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Na varanda sobre o Natal, urge a vivência do espírito natalino

 

Embora seja Natal sempre que o homem queira, as pessoas e as comunidades aproveitam a quadra natalícia para colocar em dia a conversa em família, a refeição comum e o estreitamento das boas relações sociais e amicais, com a permuta de presentes e com a troca de saudações natalinas e votos de Boas Festas, de Bom Natal e, como se inicia o ano gregoriano oito dias depois, de Próspero Ano Novo, sempre melhor do que o ano que estamos a deixar para trás.  

Porém, o espírito natalino, que deve viver-se em todo o ano, marca este momento forte de muita paz e de muito amor. É pena que a guerra na Ucrânia não conheça um cessar-fogo, um tempo de tréguas, tal como tantos outros conflitos, nesta quadra propícia para a graça, para a libertação dos egoísmos e dos nacionalismos exacerbados e para a vivência da fraternidade.

Na perspetiva cristã, o Natal é para louvar e assumir o amor do Senhor para connosco e para com toda a humanidade – o homem todo e todos os homens. Cremos que o mundo será melhor pelo Natal, onde os povos e as nações desejam a paz que vem do Senhor Jesus Cristo, o Príncipe da Paz (Is 9,5). Por isso, deseja-se que a data assumida como a do nascimento de Jesus seja vivida com alegria, com paz e com amor.

Na verdade, o Natal a 25 de dezembro é uma convenção, herdeira da festa romana do solstício de inverno ou Dies Solis Invicti (o dia alongado dos romanos, ou seja, oito dias), com a probabilidade de ter ocorrido o nascimento de Jesus por essa altura. Porém, mais do que a data certa, importa o facto do nascimento do menino que inaugurou a nova era na história da Humanidade. Passou a haver o “Antes de Cristo” e o “Depois de Cristo”. O nascimento de Jesus marca a Era Cristã.

Com a aproximação do Natal a vida dos crentes exulta no Senhor, Deus nosso Salvador. O ambiente humano evoca um espírito natalino forte a viver na fé, na esperança e no amor feito solidariedade e altruísmo, isto é a caridade verdadeira, que é efetiva e afetiva, não a caridadezinha, que dá por esmola ou que é devido por justiça. O centro é o nascimento de Jesus Cristo na realidade visível, grande acontecimento que augura para o ser humano uma vida melhor, face às dificuldades, aos desafios e às cruzes da vida, pois Cristo, por singular encarnação, passou a fazer parte da Humanidade e criou a rutura das amarras do mal, do vício, do pecado.

Pelo comércio, vendem-se e compram-se mais coisas, pois as pessoas buscam presentes para dar aos familiares e às pessoas amigas. Muitas vezes, exagera-se no consumismo natalício e o essencial fica para as calendas gregas. Os protocolos políticos e sociais reforçam-se nesta quadra natalina, que postula o ser bem e parecer bem. Com efeito, o maior presente de Deus, a maior dádiva é o nascimento de Jesus e o estabelecimento da sua morada no meio de nós, não só por estar no presépio (esse momento eloquente a nível simbólico já passou), mas porque deseja viver no coração de cada pessoa humana, no seio de cada família, no centro de cada comunidade, no pulsar da sociedade. Enfim, pelo Natal, Jesus Cristo quer estar no mundo e com o mundo, para que o mundo esteja em Cristo e com Cristo.

Nas cidades, nas vilas e nas aldeias, os centros comerciais, os prédios, as ruas, as praças, as rotundas, as árvores, os monumentos ornam-se com luzes de cores diversas e de objetos alusivos à quadra natalícia, para se especificar a importância deste magnífico tempo do homem como graça de Deus e do tempo propriamente dito, como tempo específico a iluminar os corações humanos. De facto, o Verbo de Deus fez-Se carne e veio morar entre nós, connosco (Jo 1,14). Jesus, a luz que ilumina o ser humano, quer que o mundo e cada pessoa vivam a palavra de Deus com obras da caridade, imersa na caridade divina, amando como Jesus ama.

Já os Padres da Igreja, os primeiros teólogos do cristianismo, exaltavam a poderosa força do Natal ou Natividade e tiravam as consequências para a vida cristã.

São Clemente de Alexandria, padre dos séculos II e III, afirmou que a vivência do Verbo na carne humana fez com que as pessoas vivessem melhor. O Verbo, isto é, Jesus Cristo, sendo a causa da existência humana, faz parte da realidade visível, a realidade humana. O Verbo era em Deus e, pela encarnação, tornou-Se a causa da vivência à altura da sua existência. O Verbo, o único que junta em si as duas naturezas, divina e humana, é causa de todos os bens visíveis e invisíveis. Por Ele, com Ele e Nele, o ser humano vive o bem e sente-se destinado à vida eterna. Ele revelou-se como o Salvador, que preexistia como Mestre, como aquele que é, porque o Verbo era junto de Deus (Jo 1,2) e Nele tudo foi feito. O Verbo, ao ensinar o ser humano a viver, procurou a todos e quis que todos vivessem bem neste mundo e com Deus uma dia, na vida eterna. 

Santo Ireneu de Lião, bispo nos séculos II e III, ensinou que o Verbo de Deus assumiu a natureza humana, contra os gnósticos que a negavam. Somente ele abriu o livro do Pai, de modo que, nem no céu, nem na terra, nem debaixo da terra, mais ninguém salva. Só o Cordeiro que foi imolado remiu a todos com o seu sangue (cf Ap 3,7). Ele fez todas as coisas pelo poder de Deus e harmonizou-as com a sua sabedoria, quando o Verbo Se fez carne (Jo 1,14). E Santo Ireneu reforçou que o Natal é o nascimento do Senhor na vida humana.

Santo Agostinho, bispo de Hipona, nos séculos IV e V, disse que o Filho Unigénito de Deus uniu em si a natureza humana, para unir em si, como cabeça imaculada, toda a Igreja imaculada, como diz o apóstolo, desejando corações incorruptíveis em tudo, pois apresentou aos fiéis de Corinto o Cristo e a Igreja, como virgem pura (2Cor 11,2), imitando, com o nascimento de Jesus, a mãe do seu Senhor. Ele redimiu a Igreja, a humanidade nos pecados e na morte, dando-lhes vida nova.

Santo Agostinho também dizia que os tempos do Natal enaltecem a alegria da vida, pois realizaram-se em Jesus as coisas preditas. A verdade surgiu da terra (Sl 84,12). O Senhor nasceu, na carne, do seio virginal de Maria, por obra do Espírito Santo, de modo que, ao vir para o mundo, o Salvador, deixou virgem a sua mãe. A alegria é grande pela vinda e pela presença contínua do Senhor na realidade humana. 

São Máximo de Turim, bispo do século V, considerou que a espera do Natal, no advento, é ocasião de convite a todos os fiéis para que acolham Jesus Cristo, o novo sol, de modo que Ele ilumine as trevas do pecado humano. Ele é o Sol de justiça, de amor, que, dissipando a longa noite dos delitos não permite que o caminho da vida humana fique ligado às angústias de infelicidade, mas liga-o ao poder da graça libertadora.

A própria natureza sintoniza com o Natal do Senhor, pois os dias começam a alongar-se e as condições atmosféricas favorecem o aconchego familiar e amical, o que, segundo São Máximo, isto interpela os seguidores e as seguidoras do Senhor no sentido da dilatação da justiça humana para que gozem de uma vida melhor os pobres, os peregrinos, os indigentes, pela via das liberdades e das ajudas para com os mais necessitados, de forma que a atra noite ceda o passo à luz do Senhor que nasce para a vida de todos. Assim, o santo bispo suplica ao Senhor que se solte os seus raios de luz e de calor para conforto dos pobres, saúde dos doentes, alegria dos simples.

Eustáquio, bispo de Jerusalém, no século VI, observou que o nascimento de Jesus na realidade humana resultou do “sim” de Maria. O Natal tornou-se um dia grande, porque supera toda a glória, pois contém a disponibilidade da Virgem que recebeu o Verbo de Deus quando Ele quis entrar na realidade humana. O anjo Gabriel saudou, com admiração, Maria como a cheia de graça, disse que o Senhor estava com Ela, pelo que iria conceber e dar à luz um filho a quem poria o nome de Jesus (Lc 1,28.31).

O anúncio do anjo Gabriel assinalou o início da alegria para a Humanidade. Enquanto a primeira virgem transgrediu a lei do Senhor, a segunda virgem fechou toda a fonte de tristeza, fazendo brilhar a luz da alegria, o Senhor Jesus.

Todo este mistério de grandeza e de amor se espelha, não em berço de outro de palácio régio ou de mansão de uma família rica, mas na pobreza de uma gruta de acolhimento de animais, cujo centro é a manjedoura ou presépio, que assim se torna o primeiro expositor de Deus feito menino, o primeiro altar sacrificial, a primeira mesa do banquete do Reino, o primeiro objeto de visita dos pastores.

O presépio de hoje, iluminado pelos valores do Evangelho, mais do que repetição terrena da cena de Belém, tem de ser vivo e multiplicador dos rostos de Cristo, de forma que todos e todas O reconheçam e acolham. Neste sentido, conheci presépios que tinham o Menino Deus colocado em vários pontos do cenário presepial: centro, a norte, a nascente, a poente e a sul.

O presépio de hoje não pode ser exclusivo de grandes ou de figuras históricas. Tem de ser inclusivo. La cabem todas as pessoas e comunidades. Assim, lá se veem, por exemplo, padres, bispos, frades e freiras, moleiros, pastores, moinhos, rebanhos, manadas, animais domésticos e animais selvagens, igrejas da misericórdia, capelas, palácios, casas, escolas, fogaceiras, carros, pontes, rios, comboios, autocarros, aviões… O quadro da Adoração dos Magos, de Grão Vasco, figura um dos reis magos como um índio e seus adereços. O presépio, no tempo e no lugar, é o espaço da simplicidade, da ternura, da beleza e da inclusão; o espaço do hoje, do ontem, do amanhã, do sempre; o espaço do aqui, do aí e do além, do eu, do tu e do nós – de todos, de tudo, mas não para tudo o que nos dá na gana. É o espaço do homem, o espaço de Deus!   

2022.12.22 – Louro de Carvalho

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