domingo, 11 de julho de 2021

Vacinas contra a covid-19 e a questão ética

 

Uma questão que se vem levantando nos últimos tempos é se devem ou não ser imunizadas contra a covid as crianças através da vacina. Não se põe o problema da eventual obrigatoriedade da vacina, uma vez que que foi declarado o acesso à mesma como universal, gratuito e não obrigatório, tendo a opção dos Governos seguido pela via da sensibilização, fortemente secundada pelo ambiente de medo que se criou e pela esperança que se incutiu nas populações. Os problemas que se levantam têm a ver com a necessidade, com os riscos, com a eficácia e com a ética.  

A vacinação de crianças é rotineira e geralmente aceite, a não ser pela onda antivacinação. Sarampo, poliomielite, difteria, parotidite epidémica, tuberculose, vários tipos de meningite, coqueluche (tosse convulsa), hepatite e tétano são algumas das doenças contra as quais os pequenos são imunizados – às vezes, com apenas alguns meses e até semanas de vida.

Devemos então vacinar as crianças e adolescentes contra covid-19?

Alguns países já o começaram a fazer. Os Estados Unidos já vacinaram até ao fim de maio mais de 2,5 milhões de menores com idades entre 12 e 15 anos, na esperança, por parte das autoridades, de se virem a obter dados suficientes sobre a segurança das vacinas para começar a imunizar crianças menores de 12 anos no próximo ano.

No Reino Unido está em marcha a vacinação de adultos, devendo todos ter recebido a primeira dose até ao fim de julho –, mas ainda não tomou decisão em relação às crianças.

A questão científica se vacinar crianças salvará vidas é complexa porque a resposta pode variar de país para país. Por outro lado, também será de considerar a hipótese – verificável ou não – de se as doses destinadas a crianças salvariam mais vidas sendo aplicadas em profissionais de saúde e adultos vulneráveis ​​em outros países. Com as demais vacinas que são aplicadas às crianças não há tanta controvérsia.

Um dos argumentos para não vacinar crianças contra a covid-19 é que elas beneficiarão relativamente pouco com isso. Com efeito, segundo o professor Adam Finn, membro do Comité Conjunto de Vacinação e Imunização do Reino Unido, “uma das poucas coisas boas desta pandemia é que as crianças raramente são seriamente afetadas por esta infeção”.

As infeções em crianças são quase sempre leves ou assintomáticas, o que contrasta nitidamente com outras faixas etárias mais elevadas priorizadas nas campanhas de vacinação.

Um estudo conduzido em sete países, publicado pela revista científica The Lancet, estima que menos de duas em cada milhão de crianças morreram de covid durante a pandemia. Mesmo crianças com problemas de saúde que aumentam o risco de infeção por covid em adultos não estão, de momento, a receber a vacina no Reino Unido. A vacina só foi indicada para as de “risco muito alto de exposição e de prognósticos graves”, como crianças mais velhas com deficiências sérias que vivem em centros de acolhimento.

As vacinas são extremamente seguras, mas os riscos e benefícios devem ser cuidadosamente avaliados.

Também, como se deixou entender supra, há um benefício potencial em vacinar crianças: salvar a vida de outras pessoas. Esta é uma abordagem já é adotada no caso da gripe. Crianças britânicas com idades entre 2 e 12 anos recebem anualmente a vacina de spray nasal, sobretudo para proteger os seus avós. Argumento análogo é o que se aduz para se pensar fazer o mesmo com as vacinas contra covid-19, já que isso poderia ajudar a alcançar a chamada imunidade coletiva ou de rebanho, o ponto em que há tanta gente protegida que o vírus terá dificuldade em se disseminar.

As vacinas contra a covid-19 têm demonstrado ser muito boas em interromper a propagação do vírus. Uma dose, em muitos casos, parece reduzir a hipótese de contaminação pela metade; e mesmo aqueles que são infetados apresentam metade da hipótese de transmitir o vírus.

As crianças não parecem ser os principais disseminadores do novo coronavírus, mas os adolescentes mais velhos podem desempenhar um papel importante. Adam Kucharski, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, afirma:

Há, sem dúvida, evidências de potencial de transmissão na faixa etária do ensino médio. Então a vacinação poderia ter um impacto na transmissão geral.”.

Mas não há resposta unânime sobre se vale a pena e muito menos sobre a sua necessidade.

O programa de vacinação do Reino Unido tem avançado rapidamente, e houve grandes surtos no país que podem ter deixado um legado de imunidade.

Mais de um quarto dos jovens de 16 e 17 anos na Inglaterra têm anticorpos contra o novo coronavírus no sangue, apesar de quase nenhum deles ter sido vacinado. Assim, o Reino Unido e países com situação semelhante podem chegar à conclusão de que haverá imunidade suficiente para impedir a propagação do vírus sem a necessidade de vacinar crianças.

A este respeito, Kucharski observa:

É uma situação muito diferente de países que não tiveram muitos surtos e que não tenham uma cobertura tão alta de adultos (imunizados), nestes será muito difícil (alcançar) sem vacinar grupos jovens também”.

A Austrália luta contra a hesitação da população em relação à vacina e, como aconteceu na Nova Zelândia e em Taiwan, conteve o vírus tão bem que quase não há imunidade à infeção.

Um aspeto a ser levado em conta é quem deixa de tomar a vacina se a mesma for aplicada em crianças. A Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que os países ricos deveriam adiar os seus planos de imunizar crianças e doar as vacinas para o resto do mundo.

O professor Andrew Pollard, que realizou testes clínicos com a vacina Oxford-AstraZeneca, afirmou que era “moralmente errado” priorizar as crianças.

Em Portugal, a Região Autónoma da Madeira planeia vacinar contra a covid-19 crianças a partir dos 12 anos e a Ministra da Saúde reforçou, no passado dia 6, que os menores de 18 anos vão começar a ser vacinados antes do começo do ano letivo.

Perante o alargamento das faixas etárias no plano de vacinação, Francisco Abecasis, intensivista pediátrico, avisa para as consequências de vacinar os mais novos, podendo surgir efeitos secundários. Com efeito, quando se começaram a vacinar crianças em outros países, especialistas começaram a identificar efeitos secundários da vacina contra a covid-19 que, nos adultos, eram considerados raros, como, por exemplo, miocardites.

Por isso, a Ordem dos Médicos pede cautela na vacinação das crianças até aos 16 anos.

Não obstante, não é líquido que as crianças, por habitualmente serem assintomáticas, dificilmente fiquem infetadas pelo vírus, que este não lhes deixe sequelas e que não sejam agentes transmissores. Depois, as variantes que vão surgindo colocam tudo em questão, pelo que os especialistas fazem novos estudos sobre a eficácia das vacinas, a eventual necessidade de reforço, novidades sobre a doença e efeitos colaterais das vacinas. Enfim, a ciência, que se mostrou campeã na perceção da pandemia e no combate à mesma, tem de continuar a lide.   

***

Quanto à necessidade de vacinar as crianças, em absoluto, ou seja, para a própria criança é, quando muito, uma exigência remota. Por isso, não se levanta o problema da eficácia, que nunca é a 100%. Todavia, a vacinação de crianças e adolescentes parece ter alguma utilidade para os mais velhos, nomeadamente os mais vulneráveis com quem elas tenham de contactar. E o argumento do assintomatismo não parece colher quanto à não transmissibilidade do vírus. Só assim é que se entende que tenham posto alunos em quarentena, mandado turmas para casa ou e mesmo encerrado escolas por terem surgido surtos e até casos pouco generalizados. Mais crianças foram mandadas para casa por terem sido infetadas por educadores/professores e funcionários, como professores o foram por alunos adolescentes. E não é certo que as autoridades de saúde não tenham avaliado sempre mal as situações, até porque houve transmissão nos dois sentidos. Ademais, há que prestar atenção àqueles poucochinhos que podem ser acometidos de infeção grave ou de morte em um milhão.

Quanto a riscos que podem surgir, menos raros e mais graves que nos adultos, dada a menor compleição física das crianças e adolescentes, é caso para se redobrarem os cuidados clínicos e ministrar a vacinação em condições de segurança.      

Porém, além disso, surge a questão ética em relação à vacinação de crianças para proteger adultos e em relação à priorização sobre pessoas adultas e jovens que, nos países pobres, não têm acesso à vacina.

É claro que no quadro duma ética individualista ninguém pode ser obrigado a nada, sendo os direitos individuais tidos como sagrados, invioláveis, inatacáveis e supostamente protegidos constitucionalmente. A essa luz e tendo em conta a criança como indivíduo com plenos direitos, não será lícito vaciná-la para obviar ao alastramento de epidemia, mesmo que sob contornos de pandemia. Está em causa o superior interesse da criança ao qual se vergam todos os interesses.

Neste caso, é de questionar tanto jogo que se faz com a vida das crianças para satisfação dos adultos. Lamenta-se o encerramento de escolas porque não há crianças e profissionais de educação perdem o seu emprego. Deslocam-se crianças da casa paterna, em condições sofríveis, para se juntarem em creches, estabelecimentos de educação pré-escolar e estabelecimentos escolares com escala para “racionalização de meios” ou para, alegadamente, terem o “mesmo” projeto educativo até ao fim da escolaridade. Usam-se crianças em spots publicitários ou em novelas e ninguém leva a mal.

Todavia, quando nos interessa, clamamos que somos uma sociedade personalista (em que o indivíduo é pessoa – ele e as suas circunstâncias), pressupondo-se que a realização da pessoa resulta do seu bem-estar, mas em articulação com o interesse geral, sendo que o interesse individual se subordina ao comunitário no seguimento do aforismo: “Salus Reipublicae lex suprema esto”.

Ora, à luz duma ética social que supera a ética individualista, é de encarar a vacinação de crianças e adolescentes em benefício da comunidade. E não me digam que só vacinamos crianças para evitar que venham a contrair as doenças acima elencadas. Isso é simplicismo, para não dizer hipocrisia, pois algumas, como a papeira, são contagiosas. Além disso, vacinam-se para evitar custos desnecessários e desconforto aos adultos e poderem a ter a socialização que as diversas etapas da vida postulam.

Aliás, é em nome da responsabilidade pela comunidade e pelas pessoas que se estabelece o acesso de todos à educação, à saúde, à justiça, à segurança social, etc. como direitos pessoais. E é nesta ótica que se tem exigido o boletim atualizado de vacinas e atestado de robustez física e psíquica aquando da admissão dum candidato a trabalho em funções públicas ou a apresentação da certidão de registo criminal para quem está em trabalho que exige contacto com crianças e adolescentes. É nesta ótica que se pode exigir a vacina contra a covid-19 a funcionários/as que trabalham em serviços de saúde, escolas, centros de ATL e lares de terceira idade.

É óbvio que é em nome da ética social e do bom senso que não se furam filas de pessoas que pertencem a grupos de risco ou a escalões etários mais vulneráveis, se devem vacinar os jovens que ora estão a ser atacados pelas malhas da pandemia, se vacinarão os adolescentes para que as escolas venham a funcionar com a menor exposição ao risco e se deve atender como prioridade aos países pobres. É em nome da ética social que a ciência deve continuar o estudo das doenças epidemiológicas, das vacinas e dos meios de cura.

E é possível a esta luz que os Estados possam, via legislativa, urgir a vacinação nalguns caos, pois os Estados têm – e só eles devem ter – meios coercivos para obviar ao bem-estar pessoal e social. Se calhar, mais comunitarismo e menos individualismo não será coisa má.        

2021.07.10 – Louro de Carvalho

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