segunda-feira, 19 de julho de 2021

Descanso, contemplação e compaixão para uma “ecologia do coração”

 

Na alocução do passado domingo, dia 18, antes da recitação do Angelus com os fiéis reunidos na Praça de São Pedro, o Papa Francisco, a partir do Evangelho do dia e considerando que estamos no verão, tempo de férias para muitos, falou da importância do verdadeiro repouso, “parar, ficar em silêncio, rezar, para não passar das coisas do trabalho para as férias”, pois só “o coração que não se deixa levar pela pressa é capaz de se comover (...), de perceber os outros, suas feridas, suas necessidades”. E frisou que “a compaixão nasce da contemplação”.

Convicto da necessidade que o mundo tem de “uma ecologia do coração”, que postula repouso, contemplação, comunhão e compaixão. Francisco releva o descanso e a compaixão como contraponto essencial à atividade humana – a social e profissional e a eclesial (evangelizadora, santificadora e odegética) – sendo de evitar o excesso de atividade, que dá pelo nome de ativismo.

Na verdade, Jesus, que se preocupava com a urgência da missão, que devia ser desempenhada de forma intensa, mas livre das apetências meramente pessoais e de tudo o que a possa impossibilitar ou dificultar, é o mesmo que se preocupa com o cansaço físico e interior dos seus discípulos. Assim, ao ouvir o relato pormenorizado e jubiloso dos “prodígios da pregação” durante a missão, Jesus faz-lhes o convite ao repouso: “Vinde a sós para um lugar deserto e descansai um pouco”. E o Papa comenta:

Ele quer alertá-los de um perigo, que sempre está à espreita também para nós: o perigo de deixar-se cair no frenesim do fazer, cair na armadilha do ativismo, onde o mais importante são os resultados que obtemos e o sentirmo-nos protagonistas absolutos.

Chamando a atenção para a necessidade de “aprender a parar”, Francisco avisou que o excesso de atividade acontece também na Igreja sempre que “estamos atarefados, corremos, pensamos que tudo depende de nós”, com o risco de negligenciarmos Jesus e de nos pormos a nós no centro. Por isso, Jesus “convida os seus para repousar um pouco à parte, com Ele”. E o Santo Padre apressa-se a esclarecer:

Não é apenas repouso físico, é também descanso do coração. Porque não basta ‘desligar’, é preciso repousar de verdade. E como se faz isso? Para fazer isso é preciso voltar ao cerne das coisas: parar, ficar em silêncio, rezar, para não passar da correria do trabalho para a correria das férias.”.

Todavia, o facto de Jesus se retirar a cada dia na “oração, no silêncio, na intimidade com o Pai”, não obsta a que esteja atento às necessidades da multidão, e o convite dirigido aos discípulos, deveria acompanhar-nos também a nós, que deveríamos parar “a correria frenética que dita as nossas agendas”. Isto, para advertir que temos de aprender a parar, a desligar o telefone, a contemplar a natureza e a fazer a nossa regeneração no diálogo com Deus.  

E o Papa Bergoglio vai mais longe ao assinalar que “o Evangelho narra que Jesus e os discípulos não podem descansar como gostariam”, pois as pessoas provenientes dos lugares mais diversos os reconhecem. Neste ponto, “move-se a compaixão”, pois, como regista o evangelista Marcos, Jesus olhou para a multidão e compadeceu-se por serem como ovelhas sem pastor. E, por consequência, pôs-se a ensinar aquela gente acabando por lhes dar de comer, para o que aproveitou os cinco pães e os dois peixes que um rapaz tinha e fez a multiplicação. E a multidão de cinco mil homens, mais as mulheres e as crianças, comeu e ficou saciada.

Ora, no dizer do Sumo Pontífice, a par da missão e do repouso, está a compaixão, que é “o estilo de Deus”. E o estilo de Deus “é proximidade, compaixão e ternura”. Assim, é recorrente no Evangelho, na Bíblia, a frase: “teve compaixão dele”. E, comovido, Jesus dedica-se ao povo e retoma o ensino. De facto, só o coração que não se deixa levar pela pressa é capaz de se comover, isto é, de não se deixar levar por si mesmo e pelas coisas a fazer e de perceber os outros com as suas feridas, as suas necessidades, as suas aspirações.

E o Papa sublinha que “a compaixão nasce da contemplação”. Com efeito, se não olharmos e não nos colocarmos à escuta, não sentiremos as pessoas, não as contemplaremos. Mas, para isso, temos de saber parar, saber ver e saber auscultar (Deus, o mundo e as pessoas). Porém, não basta parar e contemplar: é preciso mover-se pela compaixão, como Cristo o sentiu e o fez. E a nossa compaixão não pode ser platónica ou romântica: tem de nos levar a agir em conformidade, como Cristo fez e ensinou a fazer.  

Na lógica do pensamento do Papa Francisco, a dedicação ao verdadeiro repouso (não ao repouso supino) é fundamental para nos tornarmos capazes da verdadeira compaixão (do latim “compassio”, cognata de “compatior” – “cum + patior”: sofrer com), porque temos necessidade de uma ecologia do coração. E a linha de raciocínio e sentimento papais é:

Se cultivarmos o olhar contemplativo, levaremos em frente as nossas atividades sem a atitude voraz de quem quer possuir e consumir tudo; se permanecermos em contacto com o Senhor e não anestesiarmos a parte mais profunda de nós, as coisas a fazer não terão o poder de nos tirar o fôlego e de nos devorar. Temos necessidade – ouçam isto – temos necessidade de uma ‘ecologia do coração’ que inclui descanso, contemplação e compaixão. Aproveitemos o tempo de verão para isso.”.

E o Papa não deixou de, em conclusão, convidar os fiéis a dirigirem-se a Nossa Senhora, “que cultivou o silêncio, a oração e a contemplação, e sempre se move em terna compaixão pelos seus filhos.

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Para os budistas, há muito estreita interdependência entre o meio ambiente natural e os seres sencientes que o habitam. Isto contraria aqueles para quem a natureza humana de base é um tanto violenta. Se examinarmos os diferentes tipos de animais, mormente aqueles cuja própria sobrevivência depende de tirar outras vidas, como os tigres ou os leões, veremos que a sua natureza de base os dota de dentes e garras afiadas. Já os animais pacíficos, como as corças, que são totalmente vegetarianas, são mais gentis, possuem dentes menores e não têm garras. Desse ângulo, os seres humanos têm natureza de base não violenta. E, no atinente à sobrevivência, são animais sociais. Para sobreviver, precisam de companheiros, de modo que, segundo as leis da natureza, não há possibilidade de sobrevivência dum ser humano sem outros seres humanos.

Sendo os seres humanos gentis por sua natureza de base, devem não só manter relações gentis e pacíficas com a comunidade de seres humanos, mas também estender a mesma atitude gentil ao meio ambiente natural.

É, pois, uma questão ética a preocupação com o meio ambiente, como é uma questão de sobrevivência. Na verdade, o meio ambiente é muito importante não só para esta geração, mas também para as gerações futuras. E, se explorarmos exaustivamente o meio ambiente, embora isso nos dê, a curto prazo, mais dinheiro ou outros benefíciosa longo prazo as consequências abater-se-ão sobre nós e sobre as gerações futuras. Se o meio ambiente muda, mudam também as condições climáticas; e, se estas mudam dramaticamente, também mudam muitas outras coisas, como a economia, o aspeto do mundo, as condições de vida e de saúde, a sociedade…

Portanto, isto, para lá do imperativo moral, é uma questão de sobrevivência pessoal e coletiva: é uma questão de vida e vida de qualidade. E, para o sucesso da proteção e conservação do meio ambiente natural, importa, antes de mais, promover o equilíbrio interno dentro dos próprios seres humanos. O abuso do meio ambiente, que redundou nos enormes danos para a comunidade humana, a lamentar, surgiu da ignorância sobre a importância do meio ambiente e da ambição gananciosa de enriquecimento desmedido por parte de alguns grupos económicos.

Por isso, é essencial ajudar as pessoas a compreender que o meio ambiente tem uma relação direta com o nosso próprio benefício. E entra aqui o pensamento e o sentimento de compaixão. É o que o Papa denomina como escutar o grito da natureza. E a escuta deste grito da natureza capacita-nos da abertura a escutarmos o grito dos pobres. Assim, munidos do conhecimento e desprovidos da ganância e do egoísmo, temos a consciência clara de que tanto as outras pessoas precisam de nós e da natureza física do mundo, como nós precisamos das outras pessoas e dos benefícios do meio ambiente. Mais: todas as pessoas têm o direito de habitar o mundo e de dele usufruir. Assim, desenvolver a preocupação pelo bem-estar de outras pessoas, compartilhar o sofrimento dos outros e ajudá-los são atitudes que beneficiam os outros, mas também acabam por nos beneficiar a nós. Ao invés, se pensarmos só em nós mesmos e esquecermos os outros, perderemos mais do que ganhamos. Com efeito, a solidariedade é uma lei da natureza.

Se não sorrirmos para as outras pessoas, mas as olharmos de forma acabrunhada, elas responderão de maneira similar; mas, se lidarmos com elas de forma sincera e aberta, também se comportarão assim connosco. Todos queremos ser e ter amigos. Ora, a forma correta de fazer amizades é ter um coração caloroso. E os amigos verdadeiros devem ser verdadeiros amigos do peito. Amigos humanos autênticos ficam ao nosso lado, quer tenhamos sucesso quer estejamos sem sorte, e compartilham as nossas dores e problemas.

Porém, muitas pessoas egoístas são tacanhamente egoístas. Se ao menos fossem sabiamente egoístas…. Ora, a chave deste relacionamento dom o ambiente e com as pessoas é o sentido de responsabilidade universal, que é a genuína fonte da força, a autêntica fonte da felicidade. Se a nossa geração explora tudo que há disponível – árvores, água, animais, vegetais, minerais e energia fóssil, sem qualquer cuidado com as próximas gerações ou o futuro, está errada; mas, se tivermos um sentido genuíno de responsabilidade universal como motivação central, as nossas relações com os nossos vizinhos, tanto os nacionais como os internacionais, serão promissoras.

E esta postura é produzida e afinada na consciência, na mente, no coração. 

O mundo ocidental, nos últimos dois séculos, enfatizou a ciência e a tecnologia, voltado sobretudo para a matéria: nunca viu a alma ou a mente na ponta do bisturi ou da caneta. Todavia, atualmente alguns físicos nucleares e neurologistas dizem que, ao investigarmos partículas de forma muito detalhada, há alguma influência do lado do observador, o sabedor. Ora, este observador-sabedor é um ser humano, o cientista. E sabe com o cérebro, a mente, a consciência, havendo íntima relação entre cérebro e mente/consciência e entre mente e matéria, o que dá a possibilidade de estabelecer um diálogo frutífero entre a filosofia e ciência orientais e a ciência e filosofia ocidentais com base naquela relação. É, depois, natural que, face a um mundo virado do avesso e a seres humanos que vivem em condições de humana degradação, o coração e as vísceras se revoltem com o que a mente faz que os olhos nos mostrem

Em qualquer caso, atualmente as pessoas estão muito envoltas com o mundo externo, enquanto negligenciam o mundo interno. Ora, nós precisamos de desenvolvimento científico e material para sobreviver e para aumentar o benefício e a prosperidade geral, mas precisamos igualmente de paz mental. No entanto, nenhum médico pode prescrever um comprimido ou uma injeção de paz mental, nenhum mercado a pode vender, nem ela está a concurso. Nem os computadores mais sofisticados podem dar a paz mental. A paz mental deve vir da mente, da consciência. Todos queremos felicidade e prazer, mas, se compararmos prazer físico e dor física com prazer mental e dor mental, concluiremos que a mente é mais efetiva, predominante e superior. Assim, vale a pena adotar os métodos que deem e aumentem a paz mental.

Entre esses métodos, sobressai a meditação que o repouso físico e mental pode proporcionar. Na verdade, a meditação ajuda a ficar mais à vontade com o nosso próprio ser. Se nos conhecemos autenticamente, os nossos olhos abrem-se para a nossa profunda interconexão com todos os outros seres. Sabemos que prejudicar o outro é prejudicarmo-nos a nós mesmos. Enquanto alguém sofre, nós sofremos. Por outro lado, há que ampliar a nossa visão da vida e do mundo, o que nos dará uma qualitativa mais-valia no modo como vivemos as nossas vidas, sabendo que estamos todos entrelaçados. Cuidaremos do ambiente natural, respeitaremos e amaremos o ambiente humano que nos cerca, influencia e se deixa influenciar.

E, se as empresas de produção, transformação e circulação adotarem como princípio basilar o respeito pelo meio ambiente e, melhor ainda, se assumirem a sério o desenvolvimento de projetos de educação ambiental, outro galo cantará no quadro da ecologia ambiental e da ecologia humana. O compromisso com a sustentabilidade, reforçado sempre que e à medida do necessário, postula as práticas adequadas para minimizar o impacto da atividade económica e evitar o desequilíbrio da diversidade ecológica, investindo em novas tecnologias sustentáveis e promovendo ações que garantam a preservação dos recursos naturais com vista à sua equânime disponibilidade para benefício de todos e também para as gerações futuras.

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Também aqui há de funcionar o sistema preventivo preconizado e implementado por São João Bosco. Francisco Bodrato, em conversa com o insigne formador da juventude, perguntou-lhe qual o segredo para conquistar tantos jovens tornando-os obedientes, respeitadores e dóceis. Em resposta, o Santo descreveu a suas ações quotidianas, que originaram o dito sistema preventivo.

E, se São Francisco de Assis é “o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral vivida com alegria e autenticidade” (LS 10), vivida com genuína compaixão, São João Bosco é o exemplo de educador que devotou a vida ao cuidado dos corações frágeis da juventude do seu tempo, potencializando o bem pela educação integral que valoriza a pessoa na sua totalidade e não a vê em gavetas estanques – outro modo de compaixão. Com efeito, a ecologia e a educação requerem o olhar compassivo, equânime e magnânimo.

O Papa Francisco, no n.º 156 da encíclica “Laudato Si(LS), define a ecologia integral como “o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição”. Neste sentido, adota o princípio do bem comum, que pressupõe o respeito e o cuidado pela pessoa humana e suas organizações sociais, bem como por toda a criação. Por isso, adverte que “a ecologia integral possui uma perspetiva ampla” (LS 159) e insta a examinar a problemática ambiental de um modo transdisciplinar. E a leitura atenta da encíclica “Fratelli tutti” leva-nos a que a ecologia integral postula o empenho do coração e a ciência da fraternidade universal, com a força anímica da oração.

2021.07.19 – Louro de Carvalho

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