quinta-feira, 22 de julho de 2021

Fidelidade criativa – a Igreja samaritana ou como “hospital de Deus”

 

São expressões com que Dom Jorge Ortiga, Arcebispo de Braga, define a Igreja bracarense ao longo da História em entrevista à Ecclesia publicada a 19 de julho, dia seguinte ao daquele em que perfez 22 anos como o responsável máximo da vida desta Igreja particular, já que entrou solenemente a 18 de julho de 1999. E, de olhar no futuro, sublinha o processo de “renovação inadiável” que pode beneficiar do dinamismo do sucessor.

Neste dia 18 de julho, festa litúrgica de São Bartolomeu dos Mártires e dia de ordenações sacerdotais, vê a realidade da Arquidiocese, como a das demais dioceses, com os problemas e dificuldades, os desafios da pandemia, admitindo que alguns desafios “vieram confirmar um pouco” a caminhada eclesial em modo sinodal, conforme a opção de há dois anos e em que se vem insistindo, pois as comunidades, sobretudo as paroquiais, são ainda demasiado formalistas: as pessoas conhecem-se, mas receiam no dia a dia criar proximidade, mostrar amizade e amizade concreta. Ora, remando contra a maré, é preciso dizer-lhes que “se têm de aproximar”, sem medo de se quererem bem, ajudar-se, reconhecendo-se interdependentes”.

Questionado sobre se este é um momento de transição, concede que é “momento de transição e de mudança”, enquadrando-o no dinamismo da “fidelidade criativa”. E vinca o ponto de partida:

A Arquidiocese de Braga tem uma história longa, lodo desde os primórdios do Cristianismo, e precisamos de ter consciência da nossa história, de fazer memória dos nossos antepassados (…). O nosso Cristianismo tem raízes muito profundas, mas corremos o risco de ter uma Igreja tradicionalista.”.

No alerta para a “diferença entre Tradição e tradicionalismo”, frisa a fidelidade às origens, mas em articulação com a “necessidade de uma grande criatividade, de nos adaptarmos às exigências e interpelações”, pois não se trata de “uma mudança de era”, mas de “uma era nova”. E, como “os tempos são outros, a sociedade é outra”, a Igreja “tem de ser outra”. Nestes termos, a Igreja bracarense, fiel ao passado, não tem medo de se adaptar e começa “a percorrer caminhos novos na evangelização e na vida concreta das comunidades”.

Sobre a possibilidade de a mudança de arcebispo, que se supõe iminente, ser parte desta transformação, o Arcebispo primaz, acentuando que 22 anos são bastante tempo e que se identifica com a mentalidade minhota, espera que “a vinda de alguém fora de Braga possa trazer um outro ritmo diferente, outra maneira de conceber a Igreja”, o que ajudará neste “processo de renovação inadiável”. Depois, observa que “a renovação não é um apêndice”, mas tem de ser estrutural, pelo que o novo arcebispo “nada fará sem os sacerdotes, sem os leigos”, mas trará outro dinamismo à velha diocese, “que quer ser nova nos tempos que correm”.

No atinente a este tempo de espera pela sucessão, acha que dois anos e meio são muito tempo para a diocese, em si, porque gera incerteza, apreensão, expectativa para ele próprio, que se coloca “numa atitude de nem sempre saber o que é melhor, o que é oportuno fazer, nesta quase que ambiguidade”, como tecer algumas considerações e dar orientações pastorais.

Todavia, confessa que nunca foi parando e que pede “a graça de ser fiel” até ao dia em que entregar o báculo a quem vier, pois, com coragem e necessidade de ultrapassar problemas e contratempos – neste ambiente de expectativa que parece criar uma atitude de resignação, de deixar correr, de esperar – não dá para cruzar os braços. E tem a sensação de que a diocese não parou, embora queiramos “muitíssimo mais”, sabendo que a pandemia também o veio dificultar. Por isso, entende que “o fundamental é que nos deixemos interpelar”, sem a necessidade de saber quem vem, quem será o novo arcebispo, pois virá, “aquele que a Igreja considera mais oportuno e mais adequado para este momento”, visto que “a Igreja não é uma realidade humana” e “o Papa, fruto da plenitude do Espírito Santo”, oferecerá à Arquidiocese o bispo mais conveniente. Está é preocupado com “o que lhe vamos oferecer, quando aqui chegar”:

Uma Igreja com dinamismo, já em movimento, empenhada nesta ideia da renovação? Ou, pelo contrário, estamos desmotivados, fruto da pandemia – que talvez seja a razão que usamos com mais frequência?”.

E “é este o alerta” que lança “aos sacerdotes, às pessoas mais empenhadas na própria Igreja”, o da preocupação por trabalharmos para que o novo arcebispo “veja uma Igreja unida, em comunhão, empenhada na dinâmica interna das comunidades e nesta vocação do exterior”. Enfim, quer que Braga ofereça “uma Igreja samaritana”, ou seja, inspirada na parábola do Bom Samaritano, como “uma espécie de estalagem, para acolher os mais pobres, os marginais, os sozinhos, os últimos”. E menciona a expressão de São Frei Bartolomeu dos Mártires: “a paróquia é uma espécie de hospital de Deus”. Por isso, em enallagê prosôpou, define:

Esta Igreja que nós queremos ser hoje é uma Igreja dinâmica interiormente e uma Igreja para fora. Empenhada num compromisso social, numa amizade social, que quer efetivamente transformar as estruturas existentes, de tal forma que as pessoas sintam a sua plena realização. (…) Em vez de nos preocuparmos muito com quem virá, quando virá, que estejamos sempre alerta, sempre empenhados, sempre comprometidos, trabalhando. (…) Esta é uma hora com muitos desafios, muitos problemas, mas também com muitas oportunidades.”.

Em relação às nomeações que tornou públicas, que diz, de forma “consciente e responsável”, terem de ser poucas, refuta a insinuação de isso ser trabalho para o sucessor. Contrapõe que “as nomeações “são um pormenor” e não pretende grandes mudanças, mas tem de responder às novas interpelações e desafios. Assim, “não no sentido de empurrar a responsabilidade”, diz ter feito o que pensa necessário e suficiente para esta altura. Não quer limitar os movimentos de quem vier, que pode mudar de método e mesmo fazer novas nomeações para os cargos de maior responsabilidade na diocese. Reconhece que Braga é diocese com muitas estruturas e que alguns pensarão que é uma Igreja pesada. Mas quem vier assumirá a responsabilidade de a repensar. 

Não circunscreve a sua preocupação em ter vindo a dar vida ao que existia. Antes, na linha da “fidelidade criativa”, confessa-se “um eterno insatisfeito”, sempre “à procura de mais e melhor”, a ponto de dizer que “aquilo que hoje é uma meta, amanhã é uma etapa” e que “temos de seguir em frente e descobrir caminhos novos”. E explica melhor o dinamismo sinodal:

Fomos discernindo que o programa pastoral para a diocese, nesta altura, era trabalharmos para uma Igreja sinodal e samaritana, naquilo que as duas palavras significam. Fiquei muito contente quando o Papa decretou que o próximo ano pastoral, a partir de setembro, era um tempo em que convidava a própria Igreja a refletir, colocando-se em questão, sobre a sinodalidade. Pensando na sinodalidade como comunhão, participação e missão.”.

E, em jeito de monitorização da caminhada, considera:

Já percorremos um caminho, talvez não tanto quanto nós gostaríamos, porque a pandemia condicionou muito as coisas, mas ele existe. A diocese não vai começar agora a pensar na sinodalidade, o que isso implica, o contributo que podemos dar à Igreja universal, estamos a caminho. Estamos nesse processo, numa sinodalidade afetiva – em termos de aproximar as pessoas, nesta consciência de que somos um só corpo – e efetiva, de envolver as pessoas, dentro da própria comunidade e também fora.”.

Observa que é ponto assente que “a Igreja, hoje, não pode fechar-se nas sacristias nem nos santuários”. Braga tem o Sameiro e muitos outros santuários girando muito os cristãos à volta deles. Ora, temos de “vir aqui respirar” para ir “entrar nas estruturas da realidade humana”. E não deixa de salientar algumas realizações concretas: o turismo, com empenho forte e consistente no turismo religioso, com uma dinâmica muito própria; a Pastoral da Cultura em permanente diálogo com o que se pensa e diz, com muitas e variadas iniciativas, com destaque para a “Nova Ágora”, como este espaço aberto que a Igreja de Braga quer ser, encontrando-se com mentalidades totalmente diferentes; e a Pastoral Universitária, com incidência mais com os jovens e com os professores. E assinala uma grande preocupação, a de que “houvesse um compromisso maior com o mundo do trabalho”. Sobre isto, desenvolve:

A semente está lançada: esta Igreja que não se fecha, em saída, em compromisso com tudo aquilo que são realidades humanas. É um caminho, agora, que é difícil, sabemos que as pessoas têm uma dificuldade muito grande em comprometer-se. A Igreja de Braga tem sido este alerta para muitas realidades, muitas situações. Não sabemos os resultados, mas esperamos que alguma coisa vá ficando.”.

No âmbito do mundo do trabalho, uma efetiva preocupação, faz a seguinte caraterização: a parte marítima, hoje com pouco expressão; a parte central, que é o mundo dos operários, do trabalho em fábricas; a parte do interior, mais ligada à agricultura e com o desafio de estar em vias de desertificação (pessoas quase sozinhas, em situações precárias); e as preditas fábricas.

E, em relação ao acompanhamento a este mundo do trabalho, recorda que Braga já teve uma Ação Católica mais interventiva. Foi ela que alertou para a luta contra o trabalho infantil. É patente hoje a necessidade de uma ação mais interventiva, o que é difícil. Salienta a ação da ACEGE, nesta preocupação com os empresários, para verem o seu trabalho como missão, colocando Cristo nas empresas. E Dom Jorge gostaria duma presença “mais consistente”.

Quanto à juventude, contraria-se o passado em que o distrito de Braga era o mais jovem do país. Não obstante, há muitos movimentos e grupos, mas ainda faz falta o empenho e o compromisso com a juventude, esperando que e a Jornada Mundial da Juventude seja alavanca para tal.

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Interpelado sobre o que gostaria de ter feito e terá ficado por fazer, aduz a visão da Igreja como comunidade, segundo o lema que elegeu para o seu episcopado “Ut unum sint” – unidade, que supõe a diversidade. E, à laia de balanço a partir da romã das suas armas episcopais, expõe:

Caminhamos muito, mas podemos caminhar muito mais. (…) Escolhi a romã para simbolizar a preocupação pela unidade. Há anos ofereci aos padres uma pequena peça, em cerâmica, com uma romã, significando que é bom que trabalhemos por ser uma coisa só. Dizem que a romã tem 633 grãos, tantos quantos os preceitos da lei judaica. (…) Tem uma membrana, com pequenos grupos dentro. Há os grãos e há ali pequenos grupos, ali associados. Gostava de ver uma Igreja com estes grãos todos, que simbolizam os cristãos espalhados por todos os cantos, nas mais variadas situações; uma parte que é constituída pelos sacerdotes, pelos religiosos, pelos movimentos, pelas associações, mas todos numa preocupação por se amarem e se quererem bem, fazendo a experiência do Ressuscitado entre eles, partindo com Ele.”.

Assim, preconiza “ir ao encontro das diversas realidades humanas, para as cristianizar, para as cristificar, a partir de dentro”, pelo que, se pudesse deixar um testamento era “uma romã, como simbologia, como interpelação, como compromisso, como realidade que é possível fazer”, pois, se as comunidades paroquiais se revirem simbolizadas na romã, todas unidas em Cristo ressuscitado presente no meio, Cristo, a Igreja estará a cumprir a sua missão.

Diz que a sua ação episcopal resulta de um sujeito coletivo, comunitário – “com os padres, com os movimentos, com os grupos, sempre a trabalhar no plural, porque a Igreja é isto mesmo”.

Não teve medo de investir. Ao invés, “em termos de estruturas até dizem que talvez tenham sido de mais”, mas pensa que foram as que lhe parecem necessárias. E menciona o centro cultural e pastoral, com auditório, salas, espaço, com a cooperativa para servir refeições a preço acessível; o projeto de construção da livraria nova e o da edificação dum arquivo central.

Quando se refere ao arquivo, que é um sonho e uma necessidade, pensa nos documentos que estão espalhados pela diocese com o risco de se perderem ou danificarem. Há projeto feito, há dinheiro, está tudo delineado e estruturado.

Apostou-se muito no património, diz, e já se vê retorno. E discorre exemplificando com o turismo na cidade que pretende ser capital da cultura. O turismo em Braga é fundamentalmente turismo religioso. Vêm a Braga pelo que envolve a cidade, mas sem as igrejas, o turismo quase deixa de existir. Ora, as igrejas estão bem conservadas, foi um investimento muitíssimo grande, como enfatiza, e “dá gosto ver o que as nossas comunidades foram fazendo, para se poder dotar de um património que é útil para nós, para as celebrações” e “para mostrar a nossa cultura e a nossa alma do passado”.

Quanto ao futuro, espera que Deus lhe conceda alguns anos para continuar. Não tem projeto, quer apenas trabalhar gastando todas as suas energias até ao dia em que entregar o báculo ao arcebispo que vier. Depois, verá com ele o que irá fazer, na certeza de que não se intrometerá. Ajudará no que for preciso e, se fizer falta estar em casa, saberá “ser contemplativo”.

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Das eleições autárquicas espera que “aqueles que se propõem e vão ser eleitos estejam motivados por um sentido do bem comum” e que os católicos sintam “o dever, a obrigação de exercer o seu direito de cidadania”. Denuncia o medo de muitos e a atitude de quem se lamenta por causa dos políticos, do que são e fazem contra ou sem a Igreja, mas os católicos não estão lá. Ora, “se os cristãos estivessem na política, a política poderia ter uma alma”, assegura.

E o Arcebispo evoca o facto de o Papa ter declarado “venerável” Robert Schuman, o estadista cuja declaração colocou a produção franco-alemã de carvão e de aço sob uma Alta Autoridade comum numa organização aberta à participação de outros países da Europa, o que deu origem à União Europeia (UE). E conclui que os católicos fazem falta na política, a qual “poderá ser um desafio, uma oportunidade”, porque ela se faz a nível nacional, a nível mundial e também a nível local, ou seja, a partir das freguesias, onde vive o povo.

Fala ainda dos Centros Sociais Paroquiais, um problema que exige muita reflexão. Na verdade, Braga tem mais de 200, sobretudo no interior. E sustenta que “são centros pequenos, com muitas dificuldades, muitos problemas, com exigências permanentes da Segurança Social”, algumas compreensíveis, “mas são uma presença efetiva” a levar “o que é necessário para que as pessoas tenham dignidade de vida”.

Espera que Braga seja Capital Europeia da Cultura em 2027, pois merece-o: é cidade que tem algum dinamismo. A Igreja bracarense “está empenhada e comprometida nisso”, pelo que vai fazendo todos os dias. E o Arcebispo deseja que o seja, não pelo que Braga é, mas pelo que poderá ser, parecendo necessário “apostar muito mais na cultura”, pois “ver a alma de um povo e desenvolvê-la” constitui o desafio a um maior empenho na dimensão cultural. E refere que o investimento no património revela bem o interesse da Igreja, sendo relevante a questão do turismo e tantas outras realidades de património imaterial, como a Semana Santa, as festas, enquanto “sinais de uma cultura latente no nosso quotidiano”.

Por fim, como mensagem ao sucessor, recomenda que “não tenha medo”, pois tem aqui “gente muito boa”, “que quer, que precisa de um outro dinamismo, de uma outra vivacidade”.

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Eis a Igreja de Braga a desmentir, na sinodalidade e compromisso, aqueles que a consideravam tão conservadora e tradicionalista que até os padres “arejados” que o Papa nomeava bispos auxiliares da Arquidiocese, uma vez lá chegados, eram moldados no torno especial ficando a pensar, sentir e a agir à moda de Braga, o que deixou de ser verdade com Dom Jacinto Botelho e com os que foram auxiliares com Dom Jorge Ortiga – prova de que ser velho como a Sé de Braga não é incompatível com a frescura e a renovação.

2021.07.22 – Louro de Carvalho

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