A liturgia do XIV domingo do Tempo Comum no Ano B
apresenta em 1.ª leitura (Ez
2,2-5) a vocação de
Ezequiel (de seu nome
“poeta frágil”, mas que aponta para o Deus forte e que dá força), o “profeta da esperança” que
profetizou na Babilónia aos exilados, pois integrou a primeira leva de judeus que,
em 597 a.C., Nabucodonosor deportou para a Babilónia.
A primeira fase do seu ministério decorreu entre 593 a.C. (aquando do chamamento à vocação profética) e 586 a.C. (ano da segunda tomada de Jerusalém
pelos exércitos de Nabucodonosor e nova leva de exilados), em que o profeta se empenhou em
destruir as falsas esperanças dos exilados (convictos de que o exílio terminaria em breve) e denunciar as muitas infidelidades
ao Senhor da parte dos membros do Povo judeu que escaparam ao primeiro exílio.
A segunda fase decorreu de 586 a.C. a cerca de 570 a.C..
Instalados em terra estrangeira, privados de Templo, sacerdócio e culto, os
exilados duvidavam do seu Deus e do compromisso que Ele assumira com o Povo. E
o profeta alimentava a esperança dos exilados e transmitia-lhes a certeza de
que o salvador e libertador não abandonara nem esquecera o seu Povo.
O excerto em referência integra o relato da vocação do
profeta (cf Ez 1,1-3,27). Após descrever a teofania que o
atingiu (cf Ez 1,1-28), Ezequiel escreve o discurso em que
o Senhor define a missão que lhe vai confiar (cf Ez 2,1-3,15). Estamos “no 5.º ano do cativeiro do rei Joaquin”, “na
Caldeia, nas margens do rio Cabar” (Ez 1,2), um canal de irrigação que parte do Eufrates para irrigar a cidade de
Nippur, onde os Babilónios instalaram deportados oriundos de diversas
proveniências, entre os quais se contam os deportados de Judá. E o profeta recebeu
uma missão, não para predizer o futuro, mas para falar e agir em nome de Deus.
Ora, o texto de Ezequiel comporta alguns elementos dos relatos de vocação e de
fazem a história de qualquer vocação.
Antes de mais, a vocação profética é um desígnio
divino. Aquele que chama Ezequiel não pode ser outro senão Deus. O trecho em
referência é antecedido (cf
Ez 1,1-28) de solene teofania
(vento forte, nuvem,
fogo, luz, metal reluzente, seres compósitos - de elementos humanos e elementos
animais…). A seguir, o
profeta ouve a voz que o chama e que lhe revela que deve dirigir-se ao Povo
rebelde que se insurgiu contra Deus. E há a referência ao espírito que tomou
posse do profeta e o fez levantar-se. Obviamente, era Deus a comunicar-lhe a
força divina, o seu espírito, como era usual fazer àqueles que escolhia e
enviava a salvar o Povo, como os juízes (cf Jz 14,6.19; 15,14), os reis (cf 1Sm 10,6.10; 16,13) e os profetas. No caso de Ezequiel, o espírito surge como manifestação violenta
de Deus, que se apodera do profeta e o destina para o seu serviço.
Assim, temos de atender a que a vocação é sempre iniciativa
de Deus, não escolha do homem. Foi Deus que chamou Ezequiel e que o designou
para o seu serviço.
Sobressai a ideia de que o chamamento é dirigido a um homem. Com
efeito, Ezequiel é chamado “filho de homem” (expressão com que é interpelado 93 vezes), o que significa homem ligado à
terra, fraco, mortal. Deus chama pessoas frágeis, limitadas, não seres
extraordinários, dotados de capacidades incomuns. O que é decisivo não são as
qualidades do chamado, mas o chamamento de Deus e a missão que Deus lhe confia.
A eleição divina dá ao profeta autoridade, para lá dos seus humanos limites e
fragilidades.
Depois, temos a definição da missão. O profeta é enviado a
Povo rebelde, que continuamente se afasta dos caminhos do Senhor, cabendo-lhe
apresentar a esse Povo a propostas de Deus. E o importante não é que o profeta
seja escutado ou não, mas que seja, no meio do Povo, a voz humana que indica os
caminhos de Deus, uma sentinela de Deus, um provedor dos exilados. E Ezequiel
cumpriu cabalmente a missão.
***
Na sua fragilidade e na rejeição que experimenta,
Ezequiel ajuda a melhor perceber e a acolher a figura de Jesus, o Deus feito
homem, que a Si mesmo se diz nos Evangelhos, por 82 vezes, “Filho do Homem”.
O Evangelho desta dominga (Mc 6,1-6) vem na continuidade do da anterior: Jesus saiu de lá (“exêlthen
epeîden”), de Cafarnaum,
da casa de Jairo (Mc
5,35-43) e dirigiu-se (“érkhetai”) à sua pátria (“eis
tèn patrída”: Mc 6,1), ao encontro dos familiares e conterrâneos, sendo o sábado e a sinagoga (Mc 6,2) o ambiente natural do encontro. Esta ida à sua terra marca,
em Marcos, a última vez que Jesus ensina na sinagoga (Mc 1,21.23.29; 3,1; 6,2); e o sábado será mencionado apenas
mais uma vez, na manhã de Páscoa, escrevendo o narrador: “passado o sábado…” (“diagenoménou toû sabbátou”: Mc
16,1).
De acordo com Mc 1,9, a “terra” de Jesus era Nazaré, uma
pequena vila tipicamente agrícola na Galileia, situada a 22 Km a oeste do Lago
de Tiberíades. Nunca teve grande importância no universo na história do
judaísmo. O AT ignora-a; Flávio Josefo e os escritores rabínicos não lhe fazem referência;
e os contemporâneos de Jesus parecem conceder-lhe escassa consideração (cf Jo 1,46). Nazaré é, no entanto, a cidade onde
Jesus cresceu e onde residia a sua família.
Jesus, como qualquer outro membro da comunidade judaica, foi
à sinagoga para participar no ofício sinagogal; e, usando do direito do
israelita adulto, leu e comentou as Escrituras.
O episódio relatado no trecho em causa integra a primeira
parte do Evangelho de Marcos (cf Mc 1,14-8,30),
em que Jesus é apresentado como o Messias que proclama, por toda a Galileia, o
Reino de Deus. Contudo, na secção que vai de 3,7 a 6,6, Marcos refere-se
especialmente à reação do Povo face à proclamação de Jesus, sendo que, à medida
que o “caminho do Reino” vai avançando, vai crescendo a onda de oposição e
incompreensão face ao projeto de Jesus.
Os ensinamentos de Jesus na sinagoga, naquele sábado, deixam
impressionados os habitantes de Nazaré, como já tinham deixado impressionados
os fiéis da sinagoga de Cafarnaum (cf Mc 1,21-28). Porém, os de Cafarnaum, tendo ouvido Jesus, reconheceram a
sua autoridade mais do que divina e que era diferente da dos doutores da Lei;
os de Nazaré chegam a conclusão diferente.
Tendo escutado Jesus, os conterrâneos traduzem a sua
perplexidade e escândalo em várias questões. Duas delas dizem respeito à origem
e à qualidade dos ensinamentos de Jesus (“de onde lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que lhe foi
dada?” – Mc 6,2); outra
refere-se à qualificação das ações de Jesus (“e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos?” – Mc 6,2).
Contra a impressão profético-messiânica que Jesus lhes
deixou, recordam o seu ofício e a normalidade da sua família. Para eles, é “o
carpinteiro”, não é um “rabbi”, pois nunca estudou as Escrituras com nenhum
mestre conceituado na praça e não tem qualificações para dizer o que diz. Mais:
conhecem a identidade da família de Jesus e não lhe veem nada de
extraordinário: Ele é o “filho de Maria” e os seus irmãos e irmãs são gente
vulgar, que todos conhecem em Nazaré e que nunca revelaram qualidades
excecionais. Portanto, o papel que Jesus assumiu e as ações que realizou são
inexplicáveis.
E há a questão que não surge explicitamente formulada: os
poderes extraordinários que revela (não provindos dos conhecimentos adquiridos no contacto com
famosos mestres, nem do ambiente familiar) vêm de Deus ou do diabo? Dos comentários dos nazarenos
transparece uma atitude negativa e um tom depreciativo na análise de Jesus. Nem
se Lhe referem pelo próprio nome, mas usam sempre um pronome para falar d’Ele (Jesus é “este” ou “ele” – vv. 2-3); e chamam-Lhe depreciativamente “o
filho de Maria” (o filho
era conhecido em referência ao pai, não à mãe). Como pano de fundo do pensamento dos habitantes de
Nazaré está a acusação feita a Jesus algum tempo antes pelos “doutores da Lei
que haviam descido de Jerusalém e afirmavam: “É pelo chefe dos demónios que ele expulsa os demónios” (Mc 3,22). Marcos conclui que os habitantes de
Nazaré ficaram “escandalizados” com Jesus. O verbo “scandalidzô” significa muito mais que “ficar perplexo”: significa
“ofender”, “magoar”, “ferir suscetibilidades”. Há uma espécie de indignação por
Jesus, apesar de desautorizado pelos mestres reconhecidos do judaísmo, continuar
a desenvolver a sua atividade à margem das instituições, pondo em causa a
religião tradicional, ensinando coisas diferentes e de forma diferente dos
mestres. Ora, estando à margem da instituição judaica, não podia o seu
ensinamento vir de Deus, mas tinha que vir do diabo. Os seus conterrâneos não
conseguem reconhecer a presença de Deus naquilo que Jesus diz e faz.
Porém, Jesus está profundamente certo e consciente da vocação
e do envio ao mundo pelo Pai. Marcos não cita as palavras de Ezequiel ou as do
profeta Isaías (Is 61,1-2;
42,7), como faz Lucas (Lc 4,18-19), mas tem-nas em subtexto no
pensamento, pelo que releva a condição profético-messiânica de Jesus, ao pôr na
boca do novo e extraordinário Mestre um conhecido provérbio, que Ele modifica
em parte, pois o original soava assim: “nenhum
profeta é respeitado no seu lugar de origem, nenhum médico faz curas entre os
seus conhecidos” (aliás
em Lc 4,23, Jesus colocou a hipótese de os ouvintes lhe atirarem com o dito
“médico, cura-te a ti mesmo”).
Jesus, em resposta, assume-Se como profeta – isto é, como enviado
de Deus, que atua em nome de Deus e que tem uma mensagem de Deus para oferecer
aos homens. Os seus ensinamentos não vêm dos mestres judaicos, mas do próprio
Deus; a vida que Ele oferece é a vida plena e verdadeira que Deus quer dar aos
homens.
A recusa generalizada da sua doutrina coloca Jesus na linha
dos grandes profetas, em quem o Povo sempre teve dificuldade em reconhecer o
Deus que vinha ao seu encontro na palavra, gestos e ações. O facto de as
propostas de Jesus serem rejeitadas pelos líderes, pelo povo da sua terra,
pelos seus “irmãos e irmãs” e até pelos da sua casa não desdiz da sua
procedência divina.
Jesus “não podia ali fazer qualquer milagre” (Mc 6,5). Na verdade, Deus oferece aos homens, através de
Jesus, perspetivas de vida nova. No entanto, os homens são livres e, se se
mantêm fechados nos seus esquemas e preconceitos, Jesus não pode fazer nada.
Marcos, porém, regista que, apesar de tudo, Jesus “curou alguns doentes
impondo-lhes as mãos”, pois seriam os que manifestam uma certa abertura a Jesus
mas que, de qualquer forma, não têm a coragem de cortar radicalmente com os
mecanismos do judaísmo para descobrir a novidade do Reino.
Marcos anota a “surpresa” de Jesus pela falta de fé dos concidadãos
(Mc 6,6a). Esperava-se que, no confronto com a
proposta de liberdade e de vida plena, os interlocutores de Jesus renunciassem
à escravidão para abraçarem com entusiasmo a nova realidade. Ora, acomodados e
instalados, preferem a vida da escravidão à novidade libertadora. Mas este facto
dececionante não impede que Jesus continue a anunciar a Boa Nova a todos os
homens (Mc 6.6b). Deus oferece, sem interrupção, a
sua vida; ao homem cabe acolher esta dádiva da graça.
Para Dom António Couto, neste encontro, tudo assume caráter
decisivo. Desde logo a escolha do termo “pátria” (“patrís”) carrega um significado mais intenso
e amplo que o mais habitual de povoação. Assim, este decisivo encontro com Jesus
não fica circunscrito à pequena região da Galileia, mas prefigura o encontro de
Jesus com todo o Israel e a rejeição que este lhe moverá. E o prelado lamecense
relaciona este passo com o que o Quarto Evangelho põe a claro: “Veio para o que era seu, e os seus não o
receberam” (“eis tà ídia êlthen, kaì hoi ídioi autòn ou parélabon”:
Jo 1,11). Por outro
lado, sendo esta a última vez que Jesus ensina na sinagoga, regista-se a rutura
de Jesus com o hábito e liturgia sinagogais e a partida decisiva para outros
espaços e a adoção de outras pedagogias, bem como se antevê o rompimento com
sábado judaico (“passado o
sábado”) para nos
afeiçoarmos ao 1.º dia da semana, o da Ressurreição e o do Pentecostes.
Temos outrossim de nos desligar dos preconceitos
inerentes ao pensamento e atitudes dos conterrâneos de Jesus que, estando a par
das suas humildes e bem conhecidas raízes geográficas e familiares, não
prescindem da convicção de que tais raízes determinam a identidade e a
capacidade da pessoa. De facto, Dele sabem indicar a família, a profissão, a
residência, mas lamentavelmente não se questionavam sobre o “donde” (“póthen”) Lhe vem tal sabedoria e a real
capacidade para os divinos prodígios que opera.
Na verdade, a falta de fé aqui observada por Jesus não
é propriamente a negação de Deus, mas a rejeição de Jesus em nome duma errónea
conceção de Deus, alegadamente para salvar a honra de Deus. Assim, como os coetâneos
do Nazareno, às vezes, para salvar a honra de Deus, rejeitamos as pessoas
sábias, mas humildes, os pobres, mas abertos ao acontecimento de Deus.
Enfim, é necessário receber em nosso coração e
ambiente a pessoa de Jesus e atender à sua proposta e segui-Lo, pois, como
Ezequiel, cada um de nós é chamado por Deus para com Cristo ser profeta,
sacerdote e rei. Somos convocados em Igreja como povo de reis, assembleia santa,
povo sacerdotal.
Também Paulo, que foi chamado em circunstâncias
violentamente dramáticas a caminho de Damasco como vaso de eleição para
evangelizar os gentios (cf
At 9,1-18), nos dá, na
2.ª Carta aos Coríntios (2Cor
12,7-10) testemunho da
força nova de Cristo, que o habita: “Basta-te
a minha graça, pois é na fraqueza que se manifesta a minha força” (“arkeî
soi hê kháris mou: hê gàr dýnamis en asthemeíai teleîtai”: 2
Cor 12,9); “quando sou fraco…, então é que sou forte”
(“diò eudokô en astheneíais…tóte dynatós eimi”: 2Cor 12,10). Efetivamente, no contexto de relações
conturbadas com os cristãos de Corinto, o apóstolo reage confortado pela graça
à campanha organizada para o desacreditar, instigada por certos missionários
itinerantes procedentes das comunidades cristãs da Palestina face às críticas
que fizera a membros da comunidade coríntia que levavam vida pouco consentânea
com os valores cristãos (vd
1Cor 5,1-6,20).
Por fim, como o Salmista cantamos o Salmo 123 – que
nos mostra a força do olhar através de uma série de olhares que se entrecruzam:
os nossos, os do servo, os da serva, os nossos olhos – abrindo a mãos para
Deus. De facto, como os olhos do servo se fixam no seu senhor e os da serva na
sua senhora, os nossos olhos estão postos em Deus, mas, enquanto as mãos dos
patrões dão ordens, as mãos de Deus abençoam, dão, salvam, embalam, fazem
graça. Por isso, o orante deste Salmo abre as mãos para as de Deus, a fim de
receber o dom de Deus; fixa os olhos no céu; abre-se completamente para fora; reza
com as mãos e os olhos abertos e com a alma aberta.
Deus o quer e nós também, apesar da nossa fragilidade,
mas com toda a confiança.
2021.07.04
– Louro de Carvalho
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