segunda-feira, 5 de julho de 2021

Deus chama independentemente da fragilidade/limitação das pessoas

 

 

A liturgia do XIV domingo do Tempo Comum no Ano B apresenta em 1.ª leitura (Ez 2,2-5) a vocação de Ezequiel (de seu nome “poeta frágil”, mas que aponta para o Deus forte e que dá força), o “profeta da esperança” que profetizou na Babilónia aos exilados, pois integrou a primeira leva de judeus que, em 597 a.C., Nabucodonosor deportou para a Babilónia.

A primeira fase do seu ministério decorreu entre 593 a.C. (aquando do chamamento à vocação profética) e 586 a.C. (ano da segunda tomada de Jerusalém pelos exércitos de Nabucodonosor e nova leva de exilados), em que o profeta se empenhou em destruir as falsas esperanças dos exilados (convictos de que o exílio terminaria em breve) e denunciar as muitas infidelidades ao Senhor da parte dos membros do Povo judeu que escaparam ao primeiro exílio.

A segunda fase decorreu de 586 a.C. a cerca de 570 a.C.. Instalados em terra estrangeira, privados de Templo, sacerdócio e culto, os exilados duvidavam do seu Deus e do compromisso que Ele assumira com o Povo. E o profeta alimentava a esperança dos exilados e transmitia-lhes a certeza de que o salvador e libertador não abandonara nem esquecera o seu Povo.

O excerto em referência integra o relato da vocação do profeta (cf Ez 1,1-3,27). Após descrever a teofania que o atingiu (cf Ez 1,1-28), Ezequiel escreve o discurso em que o Senhor define a missão que lhe vai confiar (cf Ez 2,1-3,15). Estamos “no 5.º ano do cativeiro do rei Joaquin”, “na Caldeia, nas margens do rio Cabar” (Ez 1,2), um canal de irrigação que parte do Eufrates para irrigar a cidade de Nippur, onde os Babilónios instalaram deportados oriundos de diversas proveniências, entre os quais se contam os deportados de Judá. E o profeta recebeu uma missão, não para predizer o futuro, mas para falar e agir em nome de Deus. Ora, o texto de Ezequiel comporta alguns elementos dos relatos de vocação e de fazem a história de qualquer vocação.

Antes de mais, a vocação profética é um desígnio divino. Aquele que chama Ezequiel não pode ser outro senão Deus. O trecho em referência é antecedido (cf Ez 1,1-28) de solene teofania (vento forte, nuvem, fogo, luz, metal reluzente, seres compósitos - de elementos humanos e elementos animais…). A seguir, o profeta ouve a voz que o chama e que lhe revela que deve dirigir-se ao Povo rebelde que se insurgiu contra Deus. E há a referência ao espírito que tomou posse do profeta e o fez levantar-se. Obviamente, era Deus a comunicar-lhe a força divina, o seu espírito, como era usual fazer àqueles que escolhia e enviava a salvar o Povo, como os juízes (cf Jz 14,6.19; 15,14), os reis (cf 1Sm 10,6.10; 16,13) e os profetas. No caso de Ezequiel, o espírito surge como manifestação violenta de Deus, que se apodera do profeta e o destina para o seu serviço.

Assim, temos de atender a que a vocação é sempre iniciativa de Deus, não escolha do homem. Foi Deus que chamou Ezequiel e que o designou para o seu serviço.

Sobressai a ideia de que o chamamento é dirigido a um homem. Com efeito, Ezequiel é chamado “filho de homem” (expressão com que é interpelado 93 vezes), o que significa homem ligado à terra, fraco, mortal. Deus chama pessoas frágeis, limitadas, não seres extraordinários, dotados de capacidades incomuns. O que é decisivo não são as qualidades do chamado, mas o chamamento de Deus e a missão que Deus lhe confia. A eleição divina dá ao profeta autoridade, para lá dos seus humanos limites e fragilidades.

Depois, temos a definição da missão. O profeta é enviado a Povo rebelde, que continuamente se afasta dos caminhos do Senhor, cabendo-lhe apresentar a esse Povo a propostas de Deus. E o importante não é que o profeta seja escutado ou não, mas que seja, no meio do Povo, a voz humana que indica os caminhos de Deus, uma sentinela de Deus, um provedor dos exilados. E Ezequiel cumpriu cabalmente a missão.

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Na sua fragilidade e na rejeição que experimenta, Ezequiel ajuda a melhor perceber e a acolher a figura de Jesus, o Deus feito homem, que a Si mesmo se diz nos Evangelhos, por 82 vezes, “Filho do Homem”.

O Evangelho desta dominga (Mc 6,1-6) vem na continuidade do da anterior: Jesus saiu de lá (“exêlthen epeîden”), de Cafarnaum, da casa de Jairo (Mc 5,35-43) e dirigiu-se (“érkhetai”) à sua pátria (“eis tèn patrída: Mc 6,1), ao encontro dos familiares e conterrâneos, sendo o sábado e a sinagoga (Mc 6,2) o ambiente natural do encontro. Esta ida à sua terra marca, em Marcos, a última vez que Jesus ensina na sinagoga (Mc 1,21.23.29; 3,1; 6,2); e o sábado será mencionado apenas mais uma vez, na manhã de Páscoa, escrevendo o narrador: “passado o sábado…(“diagenoménou toû sabbátou”: Mc 16,1).

De acordo com Mc 1,9, a “terra” de Jesus era Nazaré, uma pequena vila tipicamente agrícola na Galileia, situada a 22 Km a oeste do Lago de Tiberíades. Nunca teve grande importância no universo na história do judaísmo. O AT ignora-a; Flávio Josefo e os escritores rabínicos não lhe fazem referência; e os contemporâneos de Jesus parecem conceder-lhe escassa consideração (cf Jo 1,46). Nazaré é, no entanto, a cidade onde Jesus cresceu e onde residia a sua família.

Jesus, como qualquer outro membro da comunidade judaica, foi à sinagoga para participar no ofício sinagogal; e, usando do direito do israelita adulto, leu e comentou as Escrituras.

O episódio relatado no trecho em causa integra a primeira parte do Evangelho de Marcos (cf Mc 1,14-8,30), em que Jesus é apresentado como o Messias que proclama, por toda a Galileia, o Reino de Deus. Contudo, na secção que vai de 3,7 a 6,6, Marcos refere-se especialmente à reação do Povo face à proclamação de Jesus, sendo que, à medida que o “caminho do Reino” vai avançando, vai crescendo a onda de oposição e incompreensão face ao projeto de Jesus.

Os ensinamentos de Jesus na sinagoga, naquele sábado, deixam impressionados os habitantes de Nazaré, como já tinham deixado impressionados os fiéis da sinagoga de Cafarnaum (cf Mc 1,21-28). Porém, os de Cafarnaum, tendo ouvido Jesus, reconheceram a sua autoridade mais do que divina e que era diferente da dos doutores da Lei; os de Nazaré chegam a conclusão diferente.

Tendo escutado Jesus, os conterrâneos traduzem a sua perplexidade e escândalo em várias questões. Duas delas dizem respeito à origem e à qualidade dos ensinamentos de Jesus (“de onde lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que lhe foi dada?” – Mc 6,2); outra refere-se à qualificação das ações de Jesus (“e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos?” – Mc 6,2).

Contra a impressão profético-messiânica que Jesus lhes deixou, recordam o seu ofício e a normalidade da sua família. Para eles, é “o carpinteiro”, não é um “rabbi”, pois nunca estudou as Escrituras com nenhum mestre conceituado na praça e não tem qualificações para dizer o que diz. Mais: conhecem a identidade da família de Jesus e não lhe veem nada de extraordinário: Ele é o “filho de Maria” e os seus irmãos e irmãs são gente vulgar, que todos conhecem em Nazaré e que nunca revelaram qualidades excecionais. Portanto, o papel que Jesus assumiu e as ações que realizou são inexplicáveis.

E há a questão que não surge explicitamente formulada: os poderes extraordinários que revela (não provindos dos conhecimentos adquiridos no contacto com famosos mestres, nem do ambiente familiar) vêm de Deus ou do diabo? Dos comentários dos nazarenos transparece uma atitude negativa e um tom depreciativo na análise de Jesus. Nem se Lhe referem pelo próprio nome, mas usam sempre um pronome para falar d’Ele (Jesus é “este” ou “ele” – vv. 2-3); e chamam-Lhe depreciativamente “o filho de Maria” (o filho era conhecido em referência ao pai, não à mãe). Como pano de fundo do pensamento dos habitantes de Nazaré está a acusação feita a Jesus algum tempo antes pelos “doutores da Lei que haviam descido de Jerusalém e afirmavam: “É pelo chefe dos demónios que ele expulsa os demónios(Mc 3,22). Marcos conclui que os habitantes de Nazaré ficaram “escandalizados” com Jesus. O verbo “scandalidzô” significa muito mais que “ficar perplexo”: significa “ofender”, “magoar”, “ferir suscetibilidades”. Há uma espécie de indignação por Jesus, apesar de desautorizado pelos mestres reconhecidos do judaísmo, continuar a desenvolver a sua atividade à margem das instituições, pondo em causa a religião tradicional, ensinando coisas diferentes e de forma diferente dos mestres. Ora, estando à margem da instituição judaica, não podia o seu ensinamento vir de Deus, mas tinha que vir do diabo. Os seus conterrâneos não conseguem reconhecer a presença de Deus naquilo que Jesus diz e faz.

Porém, Jesus está profundamente certo e consciente da vocação e do envio ao mundo pelo Pai. Marcos não cita as palavras de Ezequiel ou as do profeta Isaías (Is 61,1-2; 42,7), como faz Lucas (Lc 4,18-19), mas tem-nas em subtexto no pensamento, pelo que releva a condição profético-messiânica de Jesus, ao pôr na boca do novo e extraordinário Mestre um conhecido provérbio, que Ele modifica em parte, pois o original soava assim: “nenhum profeta é respeitado no seu lugar de origem, nenhum médico faz curas entre os seus conhecidos(aliás em Lc 4,23, Jesus colocou a hipótese de os ouvintes lhe atirarem com o dito “médico, cura-te a ti mesmo”).

Jesus, em resposta, assume-Se como profeta – isto é, como enviado de Deus, que atua em nome de Deus e que tem uma mensagem de Deus para oferecer aos homens. Os seus ensinamentos não vêm dos mestres judaicos, mas do próprio Deus; a vida que Ele oferece é a vida plena e verdadeira que Deus quer dar aos homens.

A recusa generalizada da sua doutrina coloca Jesus na linha dos grandes profetas, em quem o Povo sempre teve dificuldade em reconhecer o Deus que vinha ao seu encontro na palavra, gestos e ações. O facto de as propostas de Jesus serem rejeitadas pelos líderes, pelo povo da sua terra, pelos seus “irmãos e irmãs” e até pelos da sua casa não desdiz da sua procedência divina.

Jesus “não podia ali fazer qualquer milagre” (Mc 6,5). Na verdade, Deus oferece aos homens, através de Jesus, perspetivas de vida nova. No entanto, os homens são livres e, se se mantêm fechados nos seus esquemas e preconceitos, Jesus não pode fazer nada. Marcos, porém, regista que, apesar de tudo, Jesus “curou alguns doentes impondo-lhes as mãos”, pois seriam os que manifestam uma certa abertura a Jesus mas que, de qualquer forma, não têm a coragem de cortar radicalmente com os mecanismos do judaísmo para descobrir a novidade do Reino.

Marcos anota a “surpresa” de Jesus pela falta de fé dos concidadãos (Mc 6,6a). Esperava-se que, no confronto com a proposta de liberdade e de vida plena, os interlocutores de Jesus renunciassem à escravidão para abraçarem com entusiasmo a nova realidade. Ora, acomodados e instalados, preferem a vida da escravidão à novidade libertadora. Mas este facto dececionante não impede que Jesus continue a anunciar a Boa Nova a todos os homens (Mc 6.6b). Deus oferece, sem interrupção, a sua vida; ao homem cabe acolher esta dádiva da graça.

Para Dom António Couto, neste encontro, tudo assume caráter decisivo. Desde logo a escolha do termo “pátria” (“patrís”) carrega um significado mais intenso e amplo que o mais habitual de povoação. Assim, este decisivo encontro com Jesus não fica circunscrito à pequena região da Galileia, mas prefigura o encontro de Jesus com todo o Israel e a rejeição que este lhe moverá. E o prelado lamecense relaciona este passo com o que o Quarto Evangelho põe a claro: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam(“eis tà ídia êlthen, kaì hoi ídioi autòn ou parélabon”: Jo 1,11). Por outro lado, sendo esta a última vez que Jesus ensina na sinagoga, regista-se a rutura de Jesus com o hábito e liturgia sinagogais e a partida decisiva para outros espaços e a adoção de outras pedagogias, bem como se antevê o rompimento com sábado judaico (“passado o sábado”) para nos afeiçoarmos ao 1.º dia da semana, o da Ressurreição e o do Pentecostes.

Temos outrossim de nos desligar dos preconceitos inerentes ao pensamento e atitudes dos conterrâneos de Jesus que, estando a par das suas humildes e bem conhecidas raízes geográficas e familiares, não prescindem da convicção de que tais raízes determinam a identidade e a capacidade da pessoa. De facto, Dele sabem indicar a família, a profissão, a residência, mas lamentavelmente não se questionavam sobre o “donde” (“póthen”) Lhe vem tal sabedoria e a real capacidade para os divinos prodígios que opera.

Na verdade, a falta de fé aqui observada por Jesus não é propriamente a negação de Deus, mas a rejeição de Jesus em nome duma errónea conceção de Deus, alegadamente para salvar a honra de Deus. Assim, como os coetâneos do Nazareno, às vezes, para salvar a honra de Deus, rejeitamos as pessoas sábias, mas humildes, os pobres, mas abertos ao acontecimento de Deus.

Enfim, é necessário receber em nosso coração e ambiente a pessoa de Jesus e atender à sua proposta e segui-Lo, pois, como Ezequiel, cada um de nós é chamado por Deus para com Cristo ser profeta, sacerdote e rei. Somos convocados em Igreja como povo de reis, assembleia santa, povo sacerdotal.

Também Paulo, que foi chamado em circunstâncias violentamente dramáticas a caminho de Damasco como vaso de eleição para evangelizar os gentios (cf At 9,1-18), nos dá, na 2.ª Carta aos Coríntios (2Cor 12,7-10) testemunho da força nova de Cristo, que o habita: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que se manifesta a minha força(“arkeî soi hê kháris mou: hê gàr dýnamis en asthemeíai teleîtai”: 2 Cor 12,9); “quando sou fraco…, então é que sou forte(“diò eudokô en astheneíais…tóte dynatós eimi”: 2Cor 12,10). Efetivamente, no contexto de relações conturbadas com os cristãos de Corinto, o apóstolo reage confortado pela graça à campanha organizada para o desacreditar, instigada por certos missionários itinerantes procedentes das comunidades cristãs da Palestina face às críticas que fizera a membros da comunidade coríntia que levavam vida pouco consentânea com os valores cristãos (vd 1Cor 5,1-6,20).

Por fim, como o Salmista cantamos o Salmo 123 – que nos mostra a força do olhar através de uma série de olhares que se entrecruzam: os nossos, os do servo, os da serva, os nossos olhos – abrindo a mãos para Deus. De facto, como os olhos do servo se fixam no seu senhor e os da serva na sua senhora, os nossos olhos estão postos em Deus, mas, enquanto as mãos dos patrões dão ordens, as mãos de Deus abençoam, dão, salvam, embalam, fazem graça. Por isso, o orante deste Salmo abre as mãos para as de Deus, a fim de receber o dom de Deus; fixa os olhos no céu; abre-se completamente para fora; reza com as mãos e os olhos abertos e com a alma aberta.

Deus o quer e nós também, apesar da nossa fragilidade, mas com toda a confiança.

2021.07.04 – Louro de Carvalho

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