sábado, 3 de julho de 2021

Ambiguidade da demissão como sinal de assunção de responsabilidade

 

A cada passo, perante situações de índole política que são de lamentar, sugere-se ou exige-se a demissão do responsável político da tutela do departamento em que os factos ocorreram, invocando a responsabilidade política, mesmo que não tenha havido responsabilidade pessoal ou mesmo que que não tenha havido ilícito criminal da parte do respetivo titular da pasta.

De quando em quando fala-se do Ministro da Educação, por erros praticados, ora por ser dado como desaparecido, como se fala da Ministra da Cultura pelo que diz e pelo que não faz, da Ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social ou da Ministra da Saúde. E o caso em que se tem falado com maior insistência é o do atual Ministro da Administração Interna, não faltando casos que se lhe apontem. Este, enquanto governante, tem estado envolvido em diversas polémicas, nomeadamente: a distribuição de golas de proteção antifumo feitas com material inflamável pela Proteção Civil; a morte dum cidadão ucraniano pelas mãos do SEF; a conivência com festejos da vitória de clube de futebol que reuniu milhares de pessoas em período pandémico; o alojamento de imigrantes em Odemira no empreendimento turístico ZMar; a formação de longas filas nas eleições presidenciais de 2020; e, recentemente, num acidente com carro em que o Ministro viajava que resultou numa vítima mortal. Neste último caso, com o afloramento de sérias dúvidas sobre a velocidade do automóvel, a sua situação perante o registo na conservatória, a falta ou não de sinalização dos trabalhos na autoestrada, etc. Para lá do seu tardio aparecimento a dar justificações, imputam-se-lhe contradições e um pouco de quase tudo o que é mau num governante.

Ora, a apresentação do pedido de demissão por parte do titular dum cargo é perfeitamente legítima, desde que o titular não se sinta minimamente confortável para continuar no seu desempenho ou por motivos de força maior. E quem o nomeou deve exonerá-lo em caso de incapacidade ou mau desempenho.

Tenho, porém, sérias dúvidas de que a demissão de titular de cargo político signifique assunção de responsabilidade política pelo que funcionou mal na área abrangida pela sua liderança. E sei que neste aspeto remo contra a corrente, mas continuo na minha.

O juízo político em tempo de governação cabe institucionalmente ao Parlamento, tal como o prevê a Constituição através da rejeição do programa do governo, da moção de censura, pela não aprovação de uma moção de confiança (cf art.º 195.º, n.º 1) ou pela iniciativa de demissão do Governo por parte do Presidente da República quando esteja em causa o regular funcionamento das instituições democráticas (cf art.º 195.º, n.º 2); e, em eleições, pela apresentação do voto dos eleitores. Isto não impede que os cidadãos individualmente considerados ou constituídos em associações e entidades similares usem o direito e dever de crítica devidamente sustentada.

Porém, isto não funciona: os cidadãos facilmente se desinteressam da política e refugiam-se na abstenção em eleições, bem como na ausência de crítica sustentada; os partidos estão enredados no aparelhismo e transportam-no para o Parlamento e os votos geralmente não correspondem ao pensamento, visão e vontade de cada deputado; e os governantes raramente escutam as críticas dos cidadãos, parecendo-me que não será por não as conhecerem, mas por lhes interessarem, regra geral, muito pouco, pois há casos em que ouvem e são consequentes com tal audição.     

As demissões revelam, em vez da assunção da responsabilidade política, a incapacidade de conduzir a respetiva barca, o cansaço, a pressão ou a atração por outros interesses. Assim, um ministro foi obrigado a pedir a demissão por ter contado uma anedota imprópria; uma ministra saiu atacada injustamente pela contaminação de sangue; um ministro demitiu-se por ter feito declarações impróprias no sentido de que determinadas personalidades mereciam um par de bofetadas; o António Manuel demitiu-se alegadamente para que o país não ficasse num pântano; o José Manuel demitiu-se para ocupar um cargo na Europa; o Mário José demitiu-se para ir governar o Banco de Portugal ou, como dizem alguns, para não titular a governança das finanças no momento pior da visibilidade dos resultados da pandemia; e o José Alberto demitiu-se porque se viu enredado em contradições sobre a gravidade e o conhecimento no caso de Tancos, no atinente ao furto e à encenação da restituição de materiais furtados. Contudo, uma governante da administração interna foi imolada pelos incêndios de 2017, mas ficaram ilesos os seus colegas da agricultura, ambiente e ordenamento do território. E madame Milu Rodrigues, cuja demissão a oposição política nunca exigiu a sério, apesar do mal que fez de querer reformar a educação contra os professores, apoiada nos pais, cumpriu a legislatura “em lume brando”, após o que foi substituída por madame Alçada, que reverteu em parte o percurso da antecessora.             

Como tenho deixado entender, nutri simpatia por Jorge Coelho e alinho nos elogios que têm sido levantados à sua personalidade política e humanista. Porém, não alinho no elogio à sua autodemissão aquando da tragédia queda da ponte, embora a respeite e a compreenda. Entendo que a responsabilidade política podia levar o governante à demissão, mas só depois dum processo investigatório em que se apurassem responsabilidades dos dirigentes dos diversos serviços que deviam ter intervindo a tempo e se o governante tivesse recusado a alocação de meios considerados necessários.

Sou admirador de Bento XVI e penso injusto compará-lo negativamente com o grande Papa Francisco. Não obstante, admiro-o pelo que disse e tentou fazer. Já, quanto à sua renúncia ao pontificado, respeito-a e compreendo-a, mas não a elejo como assunção de responsabilidades; antes a vejo como expressão humilde da incapacidade em continuar a conduzir com a necessária proficiência a Barca de Pedro e abrir as portas à oportunidade dum pontificado de proximidade e revolução mental e atitudinal corporizado por Mario Bergoglio.

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A demissão por suposta assunção de responsabilidades contradiz o que se ouvia na tropa de que o comandante é o último a abandonar o perigo. E dizia-se que, se o comandante morresse, o comando seria assegurado, ainda que interinamente, pelo elemento mais graduado na unidade.

No âmbito da “capitulação injustificada”, o art.º 57.º do Código de Justiça Militar estabelece a pena de prisão de 15 a 25 anos para “o chefe militar que, em tempo de guerra, capitular, entregando ao inimigo qualquer força ou instalação militar sob o seu comando ou cuja defesa, proteção ou guarda lhe estejam confiadas, sem haver empregado todos os meios de defesa de que podia dispor e sem ter feito quanto, em tal caso, exigem a honra e o dever militares”. E, no âmbito do “abandono de comando”, o art.º 59.º prevê pena de prisão doseada conforme as diversas circunstâncias para “o comandante de força ou instalação militares que, em qualquer circunstância de perigo, abandonar o comando”.

Na verdade, os militares, enquanto a força e a defesa de cada país, estão sempre de prontidão para auxiliar a sociedade em guerras, conflitos, combate ao terrorismo e desastres naturais.

Também a convenção STCW (International Convention of Standards of Trainning, certification and Watchkeeping for Seafarers, 1978), da Organização Marítima Internacional, uma agência das Nações Unidas, estabelece que “é proibido ao comandante abandonar o navio por maior perigo que a situação ofereça, só sendo possível em caso de naufrágio e após certificar-se de que é o último a fazê-lo”. Como em tudo, a norma contempla exceções, pois, “em muitos casos”, a permanência do comandante no navio, “poderá não ser a decisão mais acertada”, devendo cada organização adotar políticas de segurança específicas.  

Porém, há outros que devem permanecer em situações de risco para segurança de terceiros.

Não importando o tamanho do problema que assole um país, é dever de todo o Chefe de Estado permanecer entre as fronteiras para garantir a segurança dos cidadãos que representa (desta vez Marcelo cumpre), tal como o Governo. Na verdade, a lei suprema é a salvação da república.

De modo análogo devem comportar-se os gestores da continuidade de negócios que atinjam setores estratégicos, sobretudo se a desistência implicar a perda de oportunidade de ouro para a comunidade de que são responsáveis. 

No elenco dos que, em situação de perigo, embora tudo devam fazer para a minimizar, não devem abandonar o posto de trabalho ou devem mesmo correr para o olho do furacão (ou, pelo menos, logo depois para garantir que os serviços sejam retomados com rapidez e assim garantir condições de trabalho para equipas de resgate e hospitais), contam-se também os diretores técnicos de empresas que prestam serviços básicos, como a energia e a água.

Por seu turno, os médicos e enfermeiros devem estar onde há pessoas que precisam de cuidados de saúde. Com isso, é de se esperar que em regiões onde quase nenhum ser humano gostaria de estar, como em conflito armado, desastre natural ou epidemia, a demanda por estes profissionais se multiplique. E um dos exemplos desse cuidado abnegado e arriscado é organização Médicos Sem Fronteiras. Em média, segundo informações da instituição, a MSF intervém entre 48 e 72 horas após uma situação de emergência. Atualmente, mantém cerca de 22 mil profissionais espalhados por 65 países que vivenciam alguma situação de crise.

Também os bombeiros, vocacionados a dar vida por vida”, e os polícias, como forças de segurança, devem estar na crista da onda em caso de calamidade. Exemplo deste denodo de bombeiros são os mais de 300 bombeiros que morreram no atentado dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA, pois, enquanto tentavam resgatar vítimas, lutaram até ao fim para garantir o maior número de sobreviventes. E, em relação aos polícias, o filme “World Trade Center”, inspirado na história de John McLoughlin, interpretado por Nicolas Cage e Will Jimeno (Michael Peña) dá conta da história dos esforços desses profissionais.

Não devem também desistir de lugar do perigo, seja em teatro de guerra, seja em foco de cataclismo ou calamidade, os jornalistas, fotojornalistas e cinegrafistas em prol do seu dever e direito de informar em resposta ao direito que os cidadãos têm de receber informação exata e atempada sobre a evolução dos acontecimentos. Assim, apesar do perigo que envolve a cobertura em área de conflito e guerras, como na Síria ou no Iraque, é difícil ver jornalista ou fotojornalista abandonarem o seu posto, pois para a maioria, a informação suplanta o risco.

Recordo como Paulo Dentinho passou entre balas e bombardeios na queda do regime líbio.

Outros que não devem sair do olho do furacão são os controladores de tráfego aquaviário e aéreo. O controlador de tráfego aquaviário está de prontidão para garantir o fluxo de navios com segurança; e o controlador de tráfego aéreo controla as rotas de aviões, sendo cada controlador e a sua equipa responsáveis por uma região. O controlador aquaviário mais próximo do sinal irá auxiliar no que for preciso, ao passo que o controlador aéreo presta serviço da terra para auxiliar e orientar aeronaves tanto no ar como no solo e, além de fornecer informações sobre o tráfego, condições e autorizações para mudanças de rotas, ajuda a manter o tráfego seguro independente da ocasião. Estes profissionais estão a postos para garantir a segurança do tráfego.

Por último, que não menos importante, é de referir o professor, que na sala de aula não tem só o papel de educar, mas é também responsável por auxiliar os alunos se acontecer, por exemplo, um incêndio ou um terramoto na escola. Isso vale tanto para creches em que os estudantes são meras crianças como para escolas básicas e secundárias e para faculdades.  

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Quanto ao atual Ministro da Administração Interna (MAI), embora seja compreensível a sua hipotética demissão, não sei se resolveria os problemas que avultam no seu Ministério. Penso que apenas resultaria em punição do governante sem que os responsáveis no terreno fossem processados (disciplinarmente e/ou criminalmente), julgados e eventualmente condenados. De certeza que não compaginaria uma assunção de responsabilidades, antes a não resistência à pressão. Por isso, o que se deve exigir a este nível é que o MAI faça tudo o que estiver ao seu alcance para que se apurem todos os factos em causa e respetivos responsáveis nas diversas ocorrências que têm sido mencionadas e se promova a respetiva sanção disciplinar e/ou criminal, bem como se exonerem dos cargos os que neles estão em comissão de serviço em caso de mau desempenho. Além disso, deve levar a que os lesados pelos serviços que tutela ou pelos casos ocorridos sejam compensados na justa e possível medida. Só depois é que deve concluir se tem ou não condições políticas para continuar ou para sair.    

No atinente ao autarca de Lisboa, para lá do que escrevi há dias, a receita é análoga ao do MAI. Porém, dado o exíguo tempo que falta para o termo do mandato, a demissão neste momento não passaria dum ato político simbólico e até poderia concitar uma vaga de fundo em torno dele. Portanto, o mais prudente é aguardar pelo debate eleitoral e naturais resultados.

Quanto à exoneração do responsável pela proteção de dados, a sua exoneração do cargo em que certamente está colocado em comissão de serviço (não a exoneração do posto de trabalho na sua carreira), é perfeitamente consentânea com o momento.

Já quanto à extinção do gabinete de apoio à presidência, por onde passava, pelos vistos, a comunicação indevida de dados pessoais, uma vez que é formado por pessoas da inteira confiança do presidente, é de perguntar para que precisa de inimigos o Dr. Fernando Medina?  

2021.07.02 – Louro de Carvalho

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