quarta-feira, 14 de julho de 2021

Se quem trabalha diretamente com doentes não quer tomar a vacina…

 

Eis a questão que se coloca às entidades responsáveis, ao Governo e ao Parlamento: se quem, por motivos profissionais e/ou sociais, está em contacto com grupos de risco recusa a vacina contra a covid-19 deve ser despedido ou se a candidato a tal serviço pode ser recusada a admissão. Estão neste caso os profissionais de saúde – médicos/as, enfermeiros/as, técnicos/as de diagnóstico – maqueiros/as, assistentes operacionais e pessoal administrativo (em hospitais, clínicas, centros de saúde e unidades equivalentes), bem como funcionários/as de lares de pessoas idosas, alguns/algumas psicólogos/as, assistentes sociais, animadores/as…

Como há direitos em conflito, as opiniões divergem e os/as responsáveis pelas instituições e serviços pedem esclarecimentos.

Sabe-se que em França, segundo comunicação do Presidente Macron, a 12 de julho, até 15 de setembro, a vacinação será obrigatória para todos os profissionais e funcionários de hospitais, clínicas, lares de idosos, estabelecimentos para pessoas com deficiência e para quem trabalha em contacto com idosos ou pessoas em situação de fragilidade, inclusive ao domicílio”. E França vai mais longe: a vacinação obrigatória contra a covid-19, mesmo dos que rejeitam a toma da vacina contra a covid, está a ser estudada pelo governo e pelas autoridades, pois, como diz Macron, “a vacinação de todos os franceses é o único caminho para regressar à vida normal”, sendo que, se este plano falhar, irá haver discriminação positiva para os vacinados e os não vacinados devem ser segregados de muitas atividades e serviços.

A “Notícias Magazine”, de 12 de julho, refere, em texto de Inês Schreck, que no passado mês de novembro, uma enfermeira que trabalha num hospital do norte do país, ao ser-lhe perguntado se queria a vacina contra a covid-19, disse que não, pois era tudo muito recente, havia grandes incertezas, não gostava de decisões precipitadas e queria ponderar. Presentemente mantém as dúvidas sobre a eficácia da vacina e os efeitos adversos, questionando a segurança destes fármacos aprovados em tempo recorde. Tendo sido infetada e passados os meses de garantia da imunidade, à pergunta sobre se queria a vacina respondeu negativamente.

Já se sentiu julgada pela sua decisão que espera não lhe venha a prejudicar a vida profissional.

Não se sabe quantos/as profissionais de saúde e trabalhadores/as de lares não tomaram a vacina por opção. Porém, o recente aumento de surtos em lares, relacionáveis com a falta de vacinação dos funcionários/as, trouxe o tema para o debate. Constituirá a recusa de vacinação justa causa para despedimento? Pode o diretor dum lar contratar apenas pessoas com vacinação completa? São questões que se levantam a todas as instituições cuja missão é cuidar, tratar e proteger grupos vulneráveis.

A predita enfermeira não se revê na ideologia “antivacinas”, nem é contra as vacinas, mas, considerando “tudo muito precoce” e que “a ciência está sempre a mudar”, estriba-se na opinião dum médico que diz não ter sido inoculado por não confiar na eficácia e segurança dos novos fármacos. Ora, embora nada tenha surgido comparável com a 3.ª fase da pandemia em Portugal, tem havido casos de internamento e morte de utentes de lares. E o presidente da UMP (União das Misericórdias Portuguesas), alarmado com o regresso do vírus aos lares, alertou para o problema dos funcionários/as que recusam a vacina e pediu ao Governo esclarecimentos. Pretende que o tema se discuta seriamente e que se esclareça o que pode e o que não pode ser feito, pois “a vacinação mexe com direitos, liberdades e garantias” dos trabalhadores/as. Urge esclarecer se a vacina deve ser obrigatória para os profissionais de saúde, se as instituições podem despedir quem a recusa e se podem recusar a admissão aos que não têm a vacinação completa. Anota que as campanhas de sensibilização dos provedores e dirigentes têm tido resultados positivos (“Os que se recusam são uma minoria”) – mas importa esclarecer tudo para que se saiba como agir.

É verdade que o PNV (Plano Nacional de Vacinação) não é obrigatório, mas há vacinas, como as da difteria e do tétano, sem as quais não se pode fazer a matrícula na escola, a inscrição no exame ou apresentar candidatura a posto de trabalho na administração pública. Segundo o presidente da UMP, a solução estaria por aqui. E todos os trabalhadores/as em causa receberiam a vacina, a não ser que hic et nunc razões clínicas indicassem outro procedimento.

Por seu turno, o presidente da ALI (Associação de Apoio Domiciliário, de Lares e Casas de Repouso de Idosos) pede cautela, pois há recusas, mas são minoria. Muitos funcionários/as foram infetados/as e aguardam o termo da vacância exigível para a toma da vacina (reduzida de 180 para 90 dias). E há situações de alergias e outras complicações de saúde que esperam agendamento para vacinação em hospital. Não se veem divergências de fundo entre os presidentes da UMP e da ALI.

A ALI representa 1/4 dos lares privados e o seu presidente desconhece casos de funcionários/as que rejeitam a vacina. Porém, a propósito dum surto numa IPSS, em que se registou uma morte, a ARS de LVT informou que 8 dos 13 funcionários recusaram a vacina. O lar é membro da ALI, mas o presidente não confirma. Contudo, admite que esses casos existem:

Claro que há recusas, não nego isso, há muita informação tóxica nas redes sociais”.

Mesmo que os/as funcionários/as que não querem a vacina estejam em minoria, deixam as instituições que têm como missão proteger e cuidar de outros com a batata quente nas mãos. Por isso, tal como o presidente da UMP, considera indispensável que o Governo e o Parlamento reflitam seriamente sobre o tema e esclareçam as instituições. Sendo defensor da vacinação obrigatória, que “resolveria muitos problemas”, diz que, se não for esse o percurso seguido pelo Estado, os responsáveis que esclareçam.

André Dias Pereira, diretor do Centro de Direito Biomédico, refere que sempre ouviu dizer que não se podia despedir por este motivo e adverte que “os tribunais do trabalho tendem a decidir a favor dos trabalhadores e que estes processos levam muito tempo”. Entende que só admitir com certificado de vacinação será solução, mas que “só teria efeito a longo prazo e o problema é de hoje”. Não obstante, sustenta que “um trabalhador da área da Saúde tem o dever ético de se proteger a si e aos outros” e que, embora no plano jurídico, não haja para já nenhuma lei a impor explicitamente a toma obrigatória desta vacina, “há espaço de apreciação jurídica”.

Este professor de Direito da Universidade de Coimbra lembra que os médicos e os enfermeiros integram profissões que se regem por códigos deontológicos com normas que asseguram a proteção dos doentes, colegas e instituição, não sendo difícil, por esse lado encontrar violação deontológica das normas, sendo insuficientes argumentos como a autonomia e a liberdade de escolha, bem como a falta de fundamentação científica das vacinas. Com efeito, “a liberdade dos profissionais de saúde tem de estar dentro das regras da deontologia” e, se a vacina ainda é experimental (recebeu autorização definitiva do Infarmed), já está validada por comissões científicas.

Porém, chegar a despedimento por justa causa é improvável de momento porque o Direito do Trabalho protege bastante quem trabalha, mas há o risco de fundamento para despedimento com base em violação de deveres deontológicos e de deveres funcionais perante a instituição. E, nos assistentes operacionais e outras profissões sem códigos deontológicos, também há deveres estatutários relativos aos utentes e à comunidade, embora o enquadramento seja mais frágil. Assim, no entender do professor, será mais sólida a possibilidade de tornar a vacinação um requisito obrigatório para admissão dum trabalhador num lar ou numa instituição de saúde ou até num restaurante ou hotel. E justifica:

A entidade patronal tem o dever jurídico de assegurar a proteção dos seus clientes e de escolher as pessoas mais preparadas. Se não quer saber se os profissionais estão vacinados, então, está a pôr em risco a integridade física dos seus utentes.”.

E diz que, se “há uma série de profissões em que é obrigatório pedir o registo criminal do trabalhador para admissão, também se pode vir a instituir o requisito da vacinação”. Concordo.

Diferente parecer é o de José Amorim Magalhães, advogado do departamento laboral da ML (sociedade Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva e Associados), que vê dificuldade na imposição da vacinação à generalidade das pessoas. Admitindo que venha a ser imperativo de saúde pública, observa que o desconhecimento sobre os possíveis efeitos secundários da vacina a curto, médio e longo prazo será obstáculo objetivo à dita imperatividade. Já em relação aos/às profissionais de lares que trabalham em contacto direto com pessoas mais vulneráveis às formas mais graves da doença, considera que, “face aos diversos direitos em confronto”, será “adequada, necessária e proporcional” uma medida legislativa de “imposição da vacinação contra a covid-19”.

A recusa/imposição da vacina mexe com o direito ao trabalho e à escolha do exercício da profissão, o direito à saúde pública e o direito à integridade física e ao livre desenvolvimento da personalidade de quem é chamada/o à toma da vacina. Em caso de conflito, deve atender-se ao “princípio da harmonização”, tentando conciliar todos os direitos, sacrificando o mínimo de cada um. E é à luz deste princípio que só o Parlamento (ou o Governo mediante sua autorização) pode legislar sobre as circunstâncias e condições em que a vacinação contra a covid-19 deve ser obrigatória, bem como sobre as consequências do incumprimento dessa obrigatoriedade. Porém, segundo o advogado, até à publicação de tal legislação, “está vedado ao empregador impor a vacinação aos seus trabalhadores”, sejam quais forem as funções em causa, e adotar qualquer ato de desfavor em relação a quem opte por não se vacinar, sob pena de tal comportamento ser considerado ilícito e discriminatório. Com efeito, não sendo obrigatória esta vacina em Portugal, a sua toma é uma “escolha estritamente pessoal e individual na qual o empregador não se pode imiscuir”. E é difícil afirmar que mesmo quem trabalha em contacto direto com grupos de risco e se recuse toma da vacina coloca deliberadamente em risco a segurança e saúde” dos utentes e que tal recusa constitui comportamento tão grave que torne impossível a subsistência da relação laboral, uma vez que a vacina não é legalmente imposta nem elimina a possibilidade de infeção do vírus. O mesmo raciocínio se aplica, segundo advogado, quanto à proibição de o empregador impor a vacinação a quem trabalha sem que a legislação o exija, a candidata/o ao emprego, do setor público ou do privado. E exigir um certificado comprovativo da vacinação completa para admissão dum/a funcionário/a pode constituir violação do direito à reserva e intimidade da vida privada e do direito à igualdade no acesso ao emprego (e implica a vacina). Por isso, sustenta:

Não sendo a toma da vacina imposta por lei para qualquer grupo de trabalhadores, não pode o empregador substituir-se ao Estado, condicionando o acesso ao emprego à apresentação de um comprovativo de vacinação”.

Tal pode ser entendido como violação dos direitos do trabalhador e conduta discriminatória face a outros candidatos. Se for visto apenas por esse prisma, isso não pode ser assim, penso eu.

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É de recordar que a eficácia das vacinas a evitar as formas mais graves da covid-19 e mesmo a morte anda entre os 66% e os 95%, dependendo do fármaco, sendo que o da Pfizer e o da Moderna são os que apresentam melhores resultados. Contudo, a imunização não elimina totalmente o risco de infeção e de transmissão do vírus, como a OMS (Organização Mundial da Saúde) já alertou. Sabe-se, entretanto, que a pessoa vacinada tem menor probabilidade de ser infetada, e, se tal acontecer, o risco de transmitir a doença será menor por a carga viral ser inferior, como explicou o epidemiologista Manuel Carmo Gomes. É com base nesta premissa que os países estão a apostar tudo na imunização, tomando-a como a melhor arma para o controlo da pandemia e para encetar a recuperação da economia.

Em Portugal, a iminência duma quarta vaga é cada vez mais evidente. O aumento da incidência e do risco de transmissibilidade há várias semanas vem à boleia da supercontagiosa variante Delta, em vias de destronar a britânica e de se tornar dominante. A região da capital foi forçada a recuar no processo de desconfinamento e no Algarve as escolas dos 1.º e 2º.º ciclos de cinco concelhos fecharam, com surpresa para as famílias. A corrida contra o vírus está a impor um ritmo mais acelerado na vacinação e medidas de contenção que já ninguém esperava.

Entretanto, a UE continua a envidar esforços no sentido de a vacinação completa ser um novo passaporte para a liberdade. A manterem-se as previsões, a partir de 1 de julho, as viagens com o certificado digital covid-19 dispensam a realização de testes e quarentenas a quem esteja vacinado. Mesmo assim, a Alemanha, face ao agravamento da incidência e prevalência da variante Delta chegou a retirar Portugal da lista verde e a impor um isolamento profilático de 14 dias. Sobram, pois, dúvidas e reticências a quem optou por não se vacinar.

A recusa da vacina pelos portugueses nunca foi nem ameaça ser um problema, ao invés do que sucede noutros países da Europa e nos EUA, onde os movimentos antivacinas ganham terreno e a preocupação com a saúde pública não é evidente. Na Bulgária, por exemplo, apenas 15% da população tomou a 1.ª dose, mas já sobram vacinas por desinteresse da população. Em Portugal, sucede o oposto, mas, à medida que a campanha de vacinação progride (mais de 60% da população já tomou pelo menos uma dose) encontram-se novos obstáculos. Assim, a mais de 4 milhões de SMS enviados até ao passado dia 28 para convocar os utentes, 74% (2, 9 milhões) responderam positivamente e 2,4% (97.224) negativamente. Os restantes 23,6% não reagiram à mensagem. E o inquérito da Escola Nacional de Saúde Pública, realizado na quinzena que terminou a 25 de junho, revela que é na população ativa, nos homens e nas pessoas com mais escolaridade que se verifica maior resistência à toma da vacina.

***

Concedendo que haverá maior conforto em termos jurídicos com lei que prescreva a obrigatoriedade da vacina, para lá da validade dos códigos deontológicos e da imperatividade dos deveres funcionais, revejo-me na ótica dos presidentes da UMP e da ALI, bem como na opinião do professor de Coimbra. A não ser assim, haja a coragem e a lucidez de declarar dispensados de vacinas e registo criminal todos os funcionários públicos a quem isso foi exigido em nome do interesse geral. Mais uma vez refiro que o principal dever do Estado é zelar pelo interesse geral e é ele que dispõe dos meios coercivos e não outrem. O finca-pé nos direitos individuais sem o horizonte da coletividade e, neste caso, da saúde pública é demasiado interesseiro. Obviamente tem de ressalvar-se em cada caso o juízo clínico. Há que superar, na lei e ao lado da lei, a lógica da ética meramente individualista e abrir para a ética social.

A lei deve basear-se na ética pessoal e comunitária e deve promovê-la e protegê-la.

2021.07.14 – Louro de Carvalho

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