Eis a questão que se coloca
às entidades responsáveis, ao Governo e ao Parlamento: se quem, por motivos
profissionais e/ou sociais, está em contacto com grupos de risco recusa a
vacina contra a covid-19 deve ser despedido ou se a candidato a tal serviço
pode ser recusada a admissão. Estão neste caso os profissionais de saúde –
médicos/as, enfermeiros/as, técnicos/as de diagnóstico – maqueiros/as,
assistentes operacionais e pessoal administrativo (em hospitais, clínicas, centros de saúde e
unidades equivalentes), bem como funcionários/as de lares de pessoas
idosas, alguns/algumas psicólogos/as, assistentes sociais, animadores/as…
Como há direitos em
conflito, as opiniões divergem e os/as responsáveis pelas instituições e
serviços pedem esclarecimentos.
Sabe-se que em França,
segundo comunicação do Presidente Macron, a 12 de julho, “até 15 de setembro, a vacinação será
obrigatória para todos os profissionais e funcionários de hospitais, clínicas, lares
de idosos, estabelecimentos para pessoas com deficiência e para quem trabalha
em contacto com idosos ou pessoas em situação de fragilidade, inclusive ao
domicílio”. E França vai mais longe: a vacinação obrigatória contra a
covid-19, mesmo
dos que rejeitam a toma da vacina contra a covid, está a ser estudada pelo
governo e pelas autoridades, pois, como diz Macron, “a vacinação de todos os franceses é o único caminho para regressar à
vida normal”, sendo que, se este plano falhar, irá haver discriminação
positiva para os vacinados e os não vacinados devem ser segregados de muitas
atividades e serviços.
A “Notícias
Magazine”, de 12 de julho, refere, em texto de Inês Schreck, que no passado
mês de novembro, uma enfermeira que trabalha num hospital do norte do país, ao ser-lhe perguntado
se queria a vacina contra a covid-19, disse que não, pois era tudo muito
recente, havia grandes incertezas, não gostava de decisões precipitadas e
queria ponderar. Presentemente mantém as dúvidas sobre a eficácia da vacina e os
efeitos adversos, questionando a segurança destes fármacos aprovados em tempo
recorde. Tendo sido infetada e passados os meses de garantia da imunidade, à
pergunta sobre se queria a vacina respondeu negativamente.
Já se sentiu julgada pela sua decisão que espera não lhe
venha a prejudicar a vida profissional.
Não se sabe quantos/as profissionais de saúde e
trabalhadores/as de lares não tomaram a vacina por opção. Porém, o recente aumento
de surtos em lares, relacionáveis com a falta de vacinação dos funcionários/as,
trouxe o tema para o debate. Constituirá a recusa de vacinação justa causa para
despedimento? Pode o diretor dum lar contratar apenas pessoas com vacinação
completa? São questões que se levantam a todas as instituições cuja missão é
cuidar, tratar e proteger grupos vulneráveis.
A predita enfermeira não se revê na ideologia
“antivacinas”, nem é contra as vacinas, mas, considerando “tudo muito precoce”
e que “a ciência está sempre a mudar”, estriba-se na opinião dum médico que diz
não ter sido inoculado por não confiar na eficácia e segurança dos novos
fármacos. Ora, embora nada tenha surgido comparável com a 3.ª fase da pandemia
em Portugal, tem havido casos de internamento e morte de utentes de lares. E o presidente da UMP (União das Misericórdias Portuguesas), alarmado com o regresso do vírus aos
lares, alertou para o problema dos funcionários/as que recusam a vacina e pediu
ao Governo esclarecimentos. Pretende que o tema se discuta seriamente e que se
esclareça o que pode e o que não pode ser feito, pois “a vacinação mexe com
direitos, liberdades e garantias” dos trabalhadores/as. Urge esclarecer se a
vacina deve ser obrigatória para os profissionais de saúde, se as instituições
podem despedir quem a recusa e se podem recusar a admissão aos que não têm a
vacinação completa. Anota que as campanhas de sensibilização dos provedores e
dirigentes têm tido resultados positivos (“Os que se recusam
são uma minoria”) – mas importa esclarecer tudo para que se saiba como agir.
É verdade que o PNV (Plano Nacional de
Vacinação) não é obrigatório, mas
há vacinas, como as da difteria e do tétano, sem as quais não se pode fazer a
matrícula na escola, a inscrição no exame ou apresentar candidatura a posto de
trabalho na administração pública. Segundo o presidente da UMP, a solução
estaria por aqui. E todos os trabalhadores/as em causa receberiam a vacina, a
não ser que hic et nunc razões
clínicas indicassem outro procedimento.
Por seu turno, o presidente da ALI (Associação de Apoio Domiciliário, de Lares e Casas de Repouso de Idosos) pede cautela, pois há recusas, mas são minoria.
Muitos funcionários/as foram infetados/as e aguardam o termo da vacância
exigível para a toma da vacina (reduzida de 180 para 90 dias). E há situações de alergias e outras
complicações de saúde que esperam agendamento para vacinação em hospital. Não
se veem divergências de fundo entre os presidentes da UMP e da ALI.
A ALI representa 1/4 dos lares privados e o seu
presidente desconhece casos de funcionários/as que rejeitam a vacina. Porém, a
propósito dum surto numa IPSS, em que se registou uma morte, a ARS de LVT
informou que 8 dos 13 funcionários recusaram a vacina. O lar é membro da ALI, mas
o presidente não confirma. Contudo, admite que esses casos existem:
“Claro
que há recusas, não nego isso, há muita informação tóxica nas redes sociais”.
Mesmo que os/as funcionários/as que não querem a
vacina estejam em minoria, deixam as instituições que têm como missão proteger
e cuidar de outros com a batata quente nas mãos. Por isso, tal como o
presidente da UMP, considera indispensável que o Governo e o Parlamento reflitam
seriamente sobre o tema e esclareçam as instituições. Sendo defensor da
vacinação obrigatória, que “resolveria muitos problemas”, diz que, se não for
esse o percurso seguido pelo Estado, os responsáveis que esclareçam.
André Dias Pereira, diretor do Centro de Direito
Biomédico, refere que sempre ouviu dizer que não se podia despedir por este
motivo e adverte que “os tribunais do trabalho tendem a decidir a favor dos
trabalhadores e que estes processos levam muito tempo”. Entende que só admitir com
certificado de vacinação será solução, mas que “só teria efeito a longo prazo e
o problema é de hoje”. Não obstante, sustenta que “um trabalhador da área da
Saúde tem o dever ético de se proteger a si e aos outros” e que, embora no
plano jurídico, não haja para já nenhuma lei a impor explicitamente a toma
obrigatória desta vacina, “há espaço de apreciação jurídica”.
Este professor de Direito da Universidade de Coimbra
lembra que os médicos e os enfermeiros integram profissões que se regem por
códigos deontológicos com normas que asseguram a proteção dos doentes, colegas
e instituição, não sendo difícil, por esse lado encontrar violação deontológica
das normas, sendo insuficientes argumentos como a autonomia e a liberdade de
escolha, bem como a falta de fundamentação científica das vacinas. Com efeito,
“a liberdade dos profissionais de saúde tem de estar dentro das regras da
deontologia” e, se a vacina ainda é experimental (recebeu autorização
definitiva do Infarmed), já está validada por comissões científicas.
Porém, chegar a despedimento por justa causa é
improvável de momento porque o Direito do Trabalho protege bastante quem
trabalha, mas há o risco de fundamento para despedimento com base em violação
de deveres deontológicos e de deveres funcionais perante a instituição. E, nos
assistentes operacionais e outras profissões sem códigos deontológicos, também
há deveres estatutários relativos aos utentes e à comunidade, embora o
enquadramento seja mais frágil. Assim, no entender do professor, será mais
sólida a possibilidade de tornar a vacinação um requisito obrigatório para
admissão dum trabalhador num lar ou numa instituição de saúde ou até num
restaurante ou hotel. E justifica:
“A
entidade patronal tem o dever jurídico de assegurar a proteção dos seus
clientes e de escolher as pessoas mais preparadas. Se não quer saber se os
profissionais estão vacinados, então, está a pôr em risco a integridade física
dos seus utentes.”.
E diz que, se “há uma série de profissões em que é
obrigatório pedir o registo criminal do trabalhador para admissão, também se
pode vir a instituir o requisito da vacinação”. Concordo.
Diferente parecer é o de José Amorim Magalhães,
advogado do departamento laboral da ML (sociedade Morais
Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva e Associados), que vê dificuldade na imposição da
vacinação à generalidade das pessoas. Admitindo que venha a ser imperativo de
saúde pública, observa que o desconhecimento sobre os possíveis efeitos
secundários da vacina a curto, médio e longo prazo será obstáculo objetivo à
dita imperatividade. Já em relação aos/às profissionais de lares que trabalham
em contacto direto com pessoas mais vulneráveis às formas mais graves da
doença, considera que, “face aos diversos direitos em confronto”, será “adequada,
necessária e proporcional” uma medida legislativa de “imposição da vacinação
contra a covid-19”.
A recusa/imposição da vacina mexe com o direito ao
trabalho e à escolha do exercício da profissão, o direito à saúde pública e o
direito à integridade física e ao livre desenvolvimento da personalidade de
quem é chamada/o à toma da vacina. Em caso de conflito, deve atender-se ao “princípio
da harmonização”, tentando conciliar todos os direitos, sacrificando o mínimo
de cada um. E é à luz deste princípio que só o Parlamento (ou o Governo mediante sua autorização) pode legislar sobre as circunstâncias e condições em
que a vacinação contra a covid-19 deve ser obrigatória, bem como sobre as
consequências do incumprimento dessa obrigatoriedade. Porém, segundo o advogado,
até à publicação de tal legislação, “está vedado ao empregador impor a
vacinação aos seus trabalhadores”, sejam quais forem as funções em causa, e adotar
qualquer ato de desfavor em relação a quem opte por não se vacinar, sob pena de
tal comportamento ser considerado ilícito e discriminatório. Com efeito, não
sendo obrigatória esta vacina em Portugal, a sua toma é uma “escolha estritamente pessoal e
individual na qual o empregador não se pode imiscuir”. E é difícil afirmar que
mesmo quem trabalha em contacto direto com grupos de risco e se recuse toma da
vacina coloca deliberadamente em risco a segurança e saúde” dos utentes e que
tal recusa constitui comportamento tão grave que torne impossível a subsistência
da relação laboral, uma vez que a vacina não é legalmente imposta nem elimina a
possibilidade de infeção do vírus. O mesmo raciocínio se aplica, segundo
advogado, quanto à proibição de o empregador impor a vacinação a quem trabalha
sem que a legislação o exija, a candidata/o ao emprego, do setor público ou do
privado. E exigir um certificado comprovativo da vacinação completa para
admissão dum/a funcionário/a pode constituir violação do direito à reserva e
intimidade da vida privada e do direito à igualdade no acesso ao emprego (e implica a vacina). Por isso, sustenta:
“Não
sendo a toma da vacina imposta por lei para qualquer grupo de trabalhadores,
não pode o empregador substituir-se ao Estado, condicionando o acesso ao
emprego à apresentação de um comprovativo de vacinação”.
Tal pode ser entendido como violação dos direitos do
trabalhador e conduta discriminatória face a outros candidatos. Se for visto
apenas por esse prisma, isso não pode ser assim, penso eu.
***
É de recordar que a eficácia das vacinas a evitar as
formas mais graves da covid-19 e mesmo a morte anda entre os 66% e os 95%,
dependendo do fármaco, sendo que o da Pfizer e o da Moderna são os que apresentam
melhores resultados. Contudo, a imunização não elimina totalmente o risco de
infeção e de transmissão do vírus, como a OMS (Organização Mundial
da Saúde) já alertou. Sabe-se, entretanto,
que a pessoa vacinada tem menor probabilidade de ser infetada, e, se tal acontecer,
o risco de transmitir a doença será menor por a carga viral ser inferior, como
explicou o epidemiologista Manuel Carmo Gomes. É com base nesta
premissa que os países estão a apostar tudo na imunização, tomando-a como a
melhor arma para o controlo da pandemia e para encetar a recuperação da
economia.
Em Portugal, a iminência duma quarta vaga é cada vez
mais evidente. O aumento da incidência e do risco de transmissibilidade há
várias semanas vem à boleia da supercontagiosa variante Delta, em vias de
destronar a britânica e de se tornar dominante. A região da capital foi forçada
a recuar no processo de desconfinamento e no Algarve as escolas dos 1.º e 2º.º
ciclos de cinco concelhos fecharam, com surpresa para as famílias. A corrida
contra o vírus está a impor um ritmo mais acelerado na vacinação e medidas de
contenção que já ninguém esperava.
Entretanto, a UE continua a envidar esforços no
sentido de a vacinação completa ser um novo passaporte para a liberdade. A
manterem-se as previsões, a partir de 1 de julho, as viagens com o certificado
digital covid-19 dispensam a realização de testes e quarentenas a quem esteja
vacinado. Mesmo assim, a Alemanha, face ao agravamento da incidência e
prevalência da variante Delta chegou a retirar Portugal da lista verde e a
impor um isolamento profilático de 14 dias. Sobram, pois, dúvidas e reticências
a quem optou por não se vacinar.
A recusa da vacina pelos portugueses nunca foi nem
ameaça ser um problema, ao invés do que sucede noutros países da Europa e nos
EUA, onde os movimentos antivacinas ganham terreno e a preocupação com a saúde
pública não é evidente. Na Bulgária, por exemplo, apenas 15% da população tomou
a 1.ª dose, mas já sobram vacinas por desinteresse da população. Em Portugal,
sucede o oposto, mas, à medida que a campanha de vacinação progride (mais de 60% da população já tomou pelo menos uma dose) encontram-se novos obstáculos. Assim, a
mais de 4 milhões de SMS enviados até ao passado dia 28 para convocar os
utentes, 74% (2, 9 milhões) responderam positivamente e 2,4% (97.224) negativamente. Os restantes 23,6% não
reagiram à mensagem. E o inquérito da Escola Nacional de Saúde Pública,
realizado na quinzena que terminou a 25 de junho, revela que é na população
ativa, nos homens e nas pessoas com mais escolaridade que se verifica maior
resistência à toma da vacina.
***
Concedendo que haverá maior conforto em termos
jurídicos com lei que prescreva a obrigatoriedade da vacina, para lá da
validade dos códigos deontológicos e da imperatividade dos deveres funcionais,
revejo-me na ótica dos presidentes da UMP e da ALI, bem como na opinião do
professor de Coimbra. A não ser assim, haja a coragem e a lucidez de declarar
dispensados de vacinas e registo criminal todos os funcionários públicos a quem
isso foi exigido em nome do interesse geral. Mais uma vez refiro que o
principal dever do Estado é zelar pelo interesse geral e é ele que dispõe dos meios
coercivos e não outrem. O finca-pé nos direitos individuais sem o horizonte da
coletividade e, neste caso, da saúde pública é demasiado interesseiro.
Obviamente tem de ressalvar-se em cada caso o juízo clínico. Há que superar, na
lei e ao lado da lei, a lógica da ética meramente individualista e abrir para a
ética social.
A lei deve basear-se na ética pessoal e comunitária
e deve promovê-la e protegê-la.
2021.07.14
– Louro de Carvalho
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