Gordon Neufeld – psicólogo clínico em Vancouver (Canadá) e especialista em desenvolvimento da criança,
conhecido pela capacidade de desbloquear soluções para problemas complexos – organiza
cursos para pais, educadores e profissionais de apoio de vários países,
diferentes continentes, acaba de publicar o livro “O seu filho precisa de si”, escrito com Gabor Maté, médico, perito em
saúde (mental e
física), parentalidade e dependências, e
falou da problemática da educação ao “educare.pt”.
O livro parte duma estranha e perturbadora verificação:
“As crianças estão a desenvolver valores, identidade e códigos de
conduta com os colegas em detrimento da família”.
Os autores abordam a orientação pelos pares, explicam
as causas da quebra da influência parental, indicam formas de restabelecer essa
ligação, avançam com conselhos e reflexões, pois “a sociedade de hoje oferece
maior contacto com outras crianças e maior separação dos seus pais” – “tempestade
perfeita para perder os filhos para os colegas”.
Os pais e os professores têm papel essencial na vida
das crianças. E o psicólogo vinca:
“O papel dos pais é sobretudo o de fornecer as condições que conduzam à
realização do seu potencial como ser humano. O papel do professor é sobretudo
preparar a criança para assumir um lugar significativo numa sociedade complexa.”.
Tendo sustentado no livro
que o poder para exercer a parentalidade está a desaparecer, explicita “não há maior responsabilidade na realização como adulto
do que educar uma criança no seu potencial como ser humano”. E, se é certo que
as pessoas o fazem há dezenas de milhares de anos, também o é que sempre esteve
invisível “o apego da criança aos adultos envolvidos”, já que o desejo de união
é a proeminente motivação de todos os humanos, sobretudo das crianças, mas a cultura
direcionou tal impulso para adultos responsáveis pela criança, pois este é o
contexto da criação dos filhos, contexto
que está a desaparecer à medida que desaparecem as culturas que o preservaram.
Ora, como esse era invisível, nem temos consciência do que está a faltar, mas
pensamos que somos capazes de fazer o que os nossos antepassados fizeram. Porém,
ao depararmo-nos com dificuldades, atribuímos o problema à nossa falta de
habilidades parentais e conhecimento. E o psicólogo exemplifica com a diferença
do poder entre um pai biológico a quem o filho está ligado intensamente e o
padrasto que assume o papel de pai sem o apego do filho. Assim, muitos pais
sentem-se tão impotentes como o padrasto, sem saberem a raiz do problema. Nestes termos, pode dizer-se que os pais
já não são pais. E Neufeld observa:
“Aquele a quem a criança está mais apegada é designado, por natureza,
como o verdadeiro pai com o poder correspondente para fazer o seu trabalho. O
pai designado pela natureza pode até criar um apego fantasioso que a criança
nunca conheceu. Os verdadeiros pais, sejam eles pais adotivos, serão rejeitados
como verdadeiros pais e tornados impotentes para cumprir as suas
responsabilidades.”.
Por conseguinte, a criança passa a ser orientada pelos
seus pares. Ora, as crianças não foram feitas para serem responsáveis umas
pelas outras e muitas deixam de crescer no seu potencial como seres humanos.
Assim, é responsabilidade cultural preservar os vínculos para que a
parentalidade aconteça, mas, ao invés, as sociedades estão a perder as suas
raízes culturais e as crianças perdem o apego aos adultos.
É uma questão de falta de autoridade natural para influenciar a criança, pôr-lhe
ordem no seu comportamento, incutir valores, transmitir a nossa cultura, dar (e
receber) o amor e afeto, mantê-la próxima e
ter a sua atenção. Tudo isto resulta do seu desejo de união connosco como pais.
E, se começa a girar em torno dos colegas, começa a sair da órbita dos adultos
responsáveis por ela, o que a sociedade favorece. Fala, age, ouve, veste-se e
comporta-se como os/as colegas – separa-se dos pais, que perdem o/a filho/a
para os/as colegas. Assim, a família
surge como instituição em crise, pois, como vinca o psicólogo, “o apego
é a cola que mantém a família unida, incluindo os cônjuges”, de modo que o
casamento não funcionará se um deles já não quiser estar com o outro. O mesmo
sucede com a família mais ampla. Se os filhos estão demasiado preocupados em
estar com os colegas, não gravitam em torno da sua família, o que a coloca em perigo.
Sobre a influência dos
amigos e pares no crescimento saudável da criança, Neufeld explica:
“Não há nada de errado em ter amigos e interagir com os
colegas. (…) A preocupação é quando um filho é mais apegado aos seus pares do
que aos seus pais, e quando o apego com os seus pares compete com o apego aos
seus pais. (…) A orientação pelos pares priva as crianças do útero natural em
que devem ser criadas. Só quando as crianças experimentam suficientemente as
respostas para o que procuram – amor, conexão, união, igualdade, pertença,
significado – o verdadeiro crescimento acontece. Quando nós, como pais, fazemos
o trabalho de apego, oferecendo calor e generosidade, então a natureza pode
começar a transformá-los em seres separados, capazes de se manterem sobre os
seus próprios pés.”.
As crianças não podem dar umas às outras condições
para um desenvolvimento saudável. Isso é a responsabilidade dos pais, que só
podem dar o amor de que elas precisam quando os cordões umbilicais estão reciprocamente
ligados.
Quanto aos principais
perigos na relação entre pares, o psicólogo destaca o facto de tal relação
competir com aquilo de que a criança precisa
– o apego aos adultos responsáveis por ela. Ou seja, a criança não pode estar ao
mesmo tempo próxima dos pais e dos amigos e, por outro lado, pode estar
dividida na sensação de semelhança, pertença, ligação emocional aos pares e aos
pais – algo análogo ao caso em que os apegos à mãe e ao pai competem quando o
filho não se sente próximo de ambos ao mesmo tempo. E o psicólogo precisa um esclarecimento:
“Quando as crianças podem ficar perto dos seus pais e colegas, em simultâneo,
elas não correm o risco de serem retiradas da órbita dos seus pais, mas isso
está a tornar-se cada vez mais difícil na nossa sociedade. Como tal, os
relacionamentos mútuos podem facilmente tornar-se ‘casos’ psicológicos,
puxando-os para fora dos apegos dos pais de quem realmente precisam.”.
No atinente a emoções e
sentimentos, curiosidade, imaturidade e ao bullying e
agressividade, o especialista admite que, se as crianças perdem o apego aos adultos responsáveis por elas, nada funciona
emocionalmente bem para elas, pois “as suas necessidades de apego são
frustradas” e aumentam a frustração e a agressividade. Obcecadas pelo contacto
e proximidade, não têm os instintos de apego organizados hierarquicamente, de modo
a facilitar o cuidado próprio e o dos outros – fenómeno que está a aumentar
entre os nossos filhos e que se pode atribuir diretamente “às crianças que
perdem o apego aos adultos responsáveis por elas”.
Por isso, o maior desafio é preservar o apego dos filhos aos
pais, vindo o resto mais facilmente. É preciso ter os seus corações antes de lhes
influenciar as mentes, mesmo na adolescência. A cultura já não faz isso pelos
pais, nem isso sucede automaticamente. Logo, precisamos cada vez mais de cuidar
desses anexos vitais. Por conseguinte, o desafio hoje, na escola ou na educação
dos pais, é cultivar e preservar o contexto em que podem cumprir as suas
responsabilidades, pelo que, se gastássemos “uma fração do nosso tempo com os
professores, a investir na relação aluno-professor”, isso seria muito benéfico
para a eficácia do ensino.
Sobre os papéis dos pais e
dos professores no complexo crescimento das crianças, o psicólogo fala em
partilha das tarefas na criação dos filhos. Enquanto os pais fornecem as condições que levem à realização do
potencial das crianças e jovens como seres humanos, o papel do professor é
sobretudo preparar a criança, adolescente ou jovem “para assumir um lugar
significativo numa sociedade complexa”. O cumprimento destes papéis depende dos
vínculos da criança ou aluno com os adultos responsáveis por ela e da certeza
de que tais vínculos não competem entre si. E, no
respeitante aos “alunos impossíveis de ensinar”, título duma parte do livro,
Neufeld admite que todos os professores se
deparam com alunos experientes difíceis de ensinar e que a maioria dos
que ensinam há algum tempo sente que ensinar é cada vez mais difícil. Ora, se nunca
os professores foram tão bem treinados, os currículos estão bem definidos e a
tecnologia está tão avançada, o problema reside no apego ou não dos alunos aos
professores.
Portanto, a relação aluno-professor é o fator mais
importante na equação da aprendizagem. Muitos sabem disso intuitivamente e esse
conhecimento está disponível cientificamente, mas parece que temos grande
dificuldade em implementá-lo nos sistemas de educação. Não é tanto o que o
professor faz que faz a diferença para o aluno, mas quem o professor é para o
aluno.
Para a retoma da relação natural
dos pais com os filhos, importa, antes de mais, “saber qual é o problema real”. E, percebendo que é uma questão de
relacionamento, teremos que fazer dele uma prioridade. Para tanto, são úteis “os
rituais culturais de conexão” aplicados à educação dos filhos. E o especialista
justifica:
“Quando precedemos as interações com os nossos filhos, envolvendo os
seus instintos de apego, aproveitamos o poder do apego, que inclui o seu desejo
de serem bons para nós. Quando se assegura que estabelecemos uma ponte sobre
qualquer coisa que possa separá-los de nós, somos capazes de proporcionar-lhes
uma sensação de segurança, bem como preservar os seus apegos a nós. Quando os
associamos a outros adultos envolvidos nos seus cuidados e instrução, construímos
a aldeia de apego de que a criança precisa. A boa notícia é que nunca é tarde
para cultivar um relacionamento. A chave está em saber que nada pode ser mais
importante que isso.”.
Em relação ao futuro, no
sentido de pais e filhos estarem cada vez mais próximos, Neufeld frisa
que se requer “um grande esforço” para “reverter a maré de orientação
pelos pares”. Porém, o problema está a aumentar e há poucos indícios de que as
pessoas percebem o que está a acontecer, o que não quer dizer que se não possa
reverter o processo nas famílias e salas de aula. Porém, temos de saber que
estamos a nadar contra a corrente.
Além disso, não é líquido que um bom relacionamento pai-filho
resolverá todos os problemas. Não obstante, este é um dado fundamental em
educação e desenvolvimento.
***
Ora,
apesar de a relação professor-aluno ser o fator mais importante na escola e na
família (sem se confundirem os papéis de pais e professores), os
professores europeus confessam-se stressados com trabalho administrativo e
aspetos conexos. Com efeito, segundo a rede
europeia Eurydice, 47% dos professores
europeus dizem sofrer muito ou bastante stresse. As tarefas
administrativas fazem aumentar os níveis de stresse, enquanto a
autonomia no trabalho os faz diminuir.
O Teachers in Europe: Careers,
Developmente and Well-being – divulgado em março de 2021, mas com dados
recolhidos antes da pandemia e do encerramento de escolas na Europa – colige
dados qualitativos da rede Eurydice e
quantitativos do Teaching and Learning International Survey
(TALIS) de 2018, abrangendo, além dos 27 estados-membros da
UE, as respostas do Reino Unido, Albânia, Suíça, Bósnia Herzegovina, Islândia,
Turquia, Liechtenstein, Montenegro, Noruega, Macedónia e Sérvia.
Mariya Gabriel, comissária europeia da Educação,
Juventude, Cultura, Inovação e Pesquisa, escreve no prefácio do relatório
europeu que retrata como os professores se sentem nas escolas:
“Os professores estão na linha da frente da educação. (…) Ter
professores motivados é um dos pré-requisitos essenciais para um sistema
educativo de sucesso, no qual os alunos de diferentes contextos podem alcançar
todo o seu potencial.”.
Na verdade, ao nível do bem-estar, 47% dos professores
da UE relatam “bastante” ou “muito” stresse quando
estão a trabalhar, surgindo Portugal no topo da tabela. Assim, 87% dos
professores que dão aulas a alunos do 7.º, 8.º e 9.º ano afirmam sentir-se
“muito” ou “bastante” stressados quando estão a lecionar. Dois países têm
níveis de stresse próximos dos portugueses:
Hungria e Inglaterra, com 70% a sofrer do mesmo mal. E O mais preocupante é que
“nestes três países a percentagem que se diz bastante stressada é o dobro da
média europeia”. Com efeito, em média, só 16% dos docentes europeus se sentem
bastante stressados, enquanto em Portugal são 35%. E, no nível de muito
stressados, a média europeia é de 31% face a 53% em Portugal.
Na lista dos países cujos professores se sentem muito
ou bastante stressados no trabalho, bem acima da média europeia, constam ainda:
Bélgica, comunidade flamenga (69%); Malta (64%); Letónia (64%); Bélgica, comunidade francesa (61%); Bulgária (57%); Estónia (56%); Islândia (55%); Dinamarca (54%); França (52%); e Chipre (49%). Do lado oposto, figuram entre os países com menor percentagem de
professores que se sentem bastante ou muito stressados no trabalho Roménia (22%); Turquia (23%); e Croácia (31%). Também
abaixo da média europeia (47%) – que junta
ambos os níveis de stresse – estão os da
Eslovénia (46%), Suécia (45%), Eslováquia (44%), Finlândia (43%), Noruega (43%), Áustria (42%), Itália (35%), Holanda (34%), Lituânia (33%), Espanha (33%) e República Checa (32%).
Numa lista de situações consideradas fonte de
“bastante” e “muito” stresse pelos
professores do 3.º ciclo, de entre os países da UE, 53% apontaram o trabalho
administrativo como a principal causa de stresse, o que não surpreende
a Eurydice. Na Estónia e na Finlândia, só um em 3
professores considera esta a fonte do stresse; e mais de
2/3 respondem o mesmo na Bélgica (comunidade flamenga) e em Portugal.
Segundo o relatório, “três das 4 principais fontes
de stress não estão diretamente ligadas às tarefas
centrais do ensino”. Além do trabalho administrativo, vem a responsabilização
pelo desempenho dos alunos e a permanente atualização sobre mudanças exigidas
pelas autoridades, fatores de stresse para,
respetivamente, 47% e 46%. Manter-se a par das mudanças requeridas pelas
autoridades é a 4.ª fonte de stresse. Na Holanda,
menos de 20% estão preocupados com isso, enquanto mais de 60% experimentam stresse por mudanças exigidas pelas autoridades na
França, Malta, Lituânia e Portugal. Ter de atribuir demasiadas notas é a
segunda maior causa de stresse nos
professores afetando 49%. Os países em que os professores gastam mais tempo a
fazer correções são os que, em média, indicaram níveis mais elevados de stresse devido ao excesso de correções. Ser
responsável pelo desempenho dos alunos é a 3.ª fonte de stresse mais sinalizada. No entanto, na Finlândia
e Noruega, só um em 5 professores indica ser esta uma fonte de muito ou
bastante stresse. O stress aumenta
nos professores com maior carga horária, nos mais experientes e nos que têm contratos
permanentes, bem como pela indisciplina na sala de aula e quando os professores
se sentem menos confiantes em lidar com o comportamento ou a motivação dos
alunos.
São ainda fatores de muito ou bastante stress as muitas aulas a preparar (37% dos
professores), a atenção
às preocupações de pais e encarregados de educação (37%), a modificação das aulas em função de necessidades
educativas especiais dos alunos (36%), as demasiadas
aulas para lecionar (30%), a
atividade extra devido à ausência de colegas (23%) e a intimidação ou a agressão verbal pelos alunos (14%). Por outro lado, os professores relatam níveis mais
baixos de stresse quando o ambiente
escolar é colaborativo e quando acreditam ter autonomia no trabalho. Para a Eurydice, a confiança do professor na sua competência
como profissional desempenha um papel no stresse que
experimenta. Assim, lê-se no relatório:
“Um professor autoconfiante pode ter níveis mais baixos de stresse, enquanto um professor que não está tão
confiante pode experimentar as diferentes facetas do seu trabalho de uma forma
mais stressante”.
A par da experiência de stresse no trabalho, o TALIS 2018 mostra o impacto
da profissão docente na saúde (mental e física) dos
professores e alude ao equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. Na Europa, para
24% e 22% dos professores, o trabalho tem impacto negativo na sua saúde mental
e física, respetivamente. Mais de metade dos professores diz o mesmo na Bélgica
(comunidade
francesa) e em Portugal. E a saúde mental é preocupação
para um em 3 professores na Bélgica (comunidade flamenga), Bulgária, Dinamarca, França, Letónia e Inglaterra.
O equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, como refere
a Eurydice, “também é fator importante para medir o
bem-estar e pode ter um impacto na atratividade da profissão docente”. Já
o TALIS indica que quase 55% dos professores na UE dizem que o emprego lhes
deixa bastante ou muito tempo para a vida pessoal, o que supõe que “grande
percentagem não vê o equilíbrio entre profissão docente e vida pessoal de forma
tão positiva”, como contrapõe a Eurydice.
***
Então, sendo necessário restabelecer a relação
professor-aluno por essencial às aprendizagens, tal como é urgente reatar o
apego dos filhos aos pais, as autoridades, os pais e os professores (estes têm
um estatuto próprio) estão à
espera de quê? Não urgirá cuidar da formação inicial e contínua dos
professores, prover às melhores condições de trabalho e de saúde dos docentes e
ocupá-los nas atividades estruturantes e essenciais na educação e no ensino? Não
será urgente reequacionar os papéis dos pais e dos professores na perspetiva da
complementaridade de funções e na reciprocidade de informação sobre o educando,
mas sem invasão das respetivas áreas, dissipando a confusão de papéis ora reinante?
2021.07.08 –
Louro de Carvalho
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