Já nada nos espanta: com as
necessidades de educação, saúde e segurança social – ónus dos Estados e das
sociedades – fazem-se negócios chorudos e, por vezes, obscenos.
Discute-se a excelência
gestionária dos serviços de saúde privados, esquecendo que ou os pobres e até
remediados não têm com que pagar se não estiverem cobertos por um seguro de
saúde ou por um subsistema de utilidade pública, como se esquece que os
privados cobram pelos serviços que prestam ao Sistema Nacional de Saúde e a
maior parte não dispõe de meios sofisticados para intervenção e não se
encarrega de todo o tipo de doenças. Enfim, são seletivos, o que o serviço
público não pode ser. Enchemos a boca com as primeiras posições nos rankings de escolas que são, na maior
parte dos casos, ocupadas por escolas privadas e, algumas, com poucas turmas de
exame. É o negócio seletivo com um bem essencial como a educação que, não raro,
é bem paga por quem pode. E, se as escolas públicas vierem, como se prevê, a
ficar sob a gestão dos municípios, o caminho será a concessão a entidades
privadas suportada por dinheiros públicos (do Estado central e dos municípios). E, da segurança social, basta referir que se tem epidermicamente
manifestado a vontade de pôr um teto nas contribuições como nas pensões de
reforma para o maior bolo ficar do lado de entidades privadas. É negócio que –
a avaliar pelo que geralmente fazem as seguradoras, quando se trata da
retribuição, se estribam e nos baralham na complicação e na magreza do
benefício – será fonte de folga económica para tanta gente e aperto para quem
teve de contribuir com parte substancial dos seus rendimentos.
O Estado tem tomado a peito,
geralmente em parceria com entidades privadas, das quais muitas também sabem
trilhar o caminho do negócio, o cuidado das pessoas idosas. Tem sido notório o
trabalho das Misericórdias, das IPSS (instituições particulares de solidariedade
social), de associações, fundações e mesmo pessoas
singulares e sociedades, em apoio domiciliário, centro de dia, equipamento
residencial para pessoas idosas (APRI) e, ultimamente, unidades de
cuidados continuados (UCC) de saúde. A gestão é
usualmente privada sob a orientação da Segurança Social e é suportada por parte
da pensão do idoso/a e pelo apoio da Segurança Social mediante acordo celebrado
com as instituições, sendo que, em algumas valências, nomeadamente UCC, há
também o apoio do Ministério da Saúde. Apoios insuficientes e nem sempre dados a
tempo!
A par disto, há muitas
entidades privadas – pessoas singulares e pessoas coletivas – que fazem do apoio
aos idosos uma fonte de negócio aproveitando a procura, que excede a oferta
prestada com o apoio do Estado, por parte das pessoas que podem pagar tudo por
si ou por familiares seus. E tudo bem, quando a sede do lucro não obnubila a
qualidade das instalações, do cuidado com o utente, da prestação de serviços de
higiene, alimentação, conforto, saúde e animação, bem como o contacto familiar
e social. Porém, não é de esquecer que muitos dirigentes de instituições das
acima referidas também sabem capciosamente fazer do lugar que ocupam nelas uma
via de negócio a serviço de si próprios e familiares.
***
Referia o “Dinheiro Vivo”, a 5 de setembro de 2020,
que o setor das
residências para a terceira idade poderia vir a registar quebra no negócio
devido à covid-19, mas que havia grupos que mantinham a intenção de
investimento, pois o negócio tem registado crescimento constante nos últimos
anos e despertado para o setor a atenção de grupos nacionais e internacionais.
Em 2019, segundo
um estudo da Informa D&B, Portugal contabilizava 729 lares privados, com
capacidade de cerca de 22 mil lugares, que geraram um volume de negócios global
de 330 milhões de euros, um aumento de 3,1% face a 2018, tendo o setor apresentado
crescimento contínuo na última década, mas admitindo-se que 2021 traria uma
contração da faturação.
O grupo
Clece, detido por Florentino Pérez (presidente do Real Madrid), reforçou a presença em Portugal abrindo uma nova
residência em Madorna, Cascais, que se juntará às unidades Clece Vitam (de Fátima e de Lisboa). Bruno Moreira, responsável do grupo
em Portugal, dizia que, com a situação que se vivia (e vive), não analisavam novos projetos, mas apenas davam
continuidade à nova residência de Cascais, que estava em fase inicial de construção.
Em Fátima, o lar tem capacidade para 61 residentes e a taxa de ocupação estava
totalmente preenchida. Já o lar em Lisboa, que abriu em 2019, podia receber 120
utentes, estando a ocupação a 60%.
Também a José
de Mello Residências e Serviços não mostrava intenção de travar o plano de
expansão. Com duas residências assistidas (Lisboa e Estoril) e um condomínio residencial (Lisboa), num total de 213 camas e 19 apartamentos, mantinha a
ambição de aumentar a oferta. Não teve a pandemia qualquer impacto no plano de
expansão definido, tendo a empresa firmado, no final de 2019 (ano em que registou a faturação de
7,5 milhões de euros),
uma parceria com o grupo Ageas Portugal (que passou a deter a participação de 30% na Sociedade
Portuguesa de Serviços de Apoio e Assistência a Idosos), visando a expansão da atividade das
residências seniores.
Já a
Residências Montepio abriu, em plena pandemia, uma unidade de cuidados
continuados em Albergaria-a-Velha, com capacidade para 40 utentes, que vem
somar-se às sete residências que já explorava e que respondem no total por 523
camas privadas e 438 em RNCC (Rede Nacional de Cuidados Continuados). Faturou, em 2019, cerca de 22,5 milhões de euros,
segundo informações disponibilizadas em fevereiro de 2020. E preparou o plano
de contingência de inverno.
E o negócio
captou o interesse do grupo francês Orpea, multinacional que iniciou em 2018
operação no nosso país e detém 8 residências espalhadas pelo território
nacional e um hospital em Azeitão, num total de 711 camas. O grupo, cotado em
Bolsa, desenvolve o negócio em França, Itália, Espanha, Bélgica, Suíça,
Alemanha, Áustria, Polónia e República Checa.
Além de
cuidados médicos e de enfermagem, a maioria destas residências fornece um
conjunto de serviços considerados de luxo. A José de Mello Residências, por
exemplo, disponibiliza restaurante, cabeleireiro, atividades lúdicas diárias,
como pintura, ginástica, música, passeios, jornais e revistas. E o grupo Clece
aposta numa oferta alargada, destacando-se a animação sociocultural, ginásio,
biblioteca, cuidados estéticos e assistência religiosa.
Quanto a
preços, que não são para todas as bolsas, nas residências Clece Vitam, estão
alinhados com os preços de mercado e variam em função das necessidades/preferências
dos residentes, quer por tipologia de habitação quer por serviços adicionais.
Na José de Mello, os valores são fixados mediante estadia e tipologia da suite,
com mensalidades a partir de 1990€.
Em março de
2020, contava o país 2482 lares para idosos, dos quais 1753 de caráter não
lucrativo. A capacidade das residências não lucrativas ascendia a cerca de 77
200 (78% do total).
***
Entretanto, o jornal “Público” do
passado dia 18, domingo, dá conta duma investigação jornalística que mostra
como na Europa algumas empresas estão a adquirir lares de grupos mais pequenos,
a ganhar muito à custa do bem-estar e saúde de trabalhadores, idosos e do
Estado e a fazer circular o dinheiro por offshores. É investigação do consórcio de jornalistas
Investigate Europe – equipa de jornalistas de 11 países da Europa, de que faz
parte o “Público”, que investiga
temas de relevância europeia e publica em meios de comunicação social de toda a
Europa – sobre como algumas multinacionais estão a transformar os lares de
idosos num negócio de milhões em detrimento de trabalhadores e utentes. Faz
parte do modelo de negócio o subfinanciamento, menos trabalhadores para
trabalho a mais e atração de benefícios estatais.
A investigação transnacional denominada “ouro cinzento”, de que
dá conta o jornal “Público” do dia 18,
já referido, começou em março 2021. E a peça jornalística traz relatos sobre
residentes “tratados como peças numa fábrica, sempre com pressa”, e sobre
trabalhadores pressionados ou que desistem porque não aguentam o trabalho. E revela
os nomes de empresas como a Orpea e a Domus Vi que estão a comprar grupos
nacionais mais pequenos. Assim, na Europa apenas 28 empresas privadas detêm
5.388 instalações com cerca de 455.559 lugares. São grandes multinacionais que
beneficiam muitas vezes de dinheiro público, sob a capa de beneficência e
benemerência, e transferem receitas para offshores mediante uma
“intrincada engenharia financeira”. A Orpea é o maior operador do continente de
cuidados para a terceira idade com mais de 110.00 lugares, 700 deles em
Portugal, onde tem 9 lares. Está em franca expansão, aumentou a capacidade em
65% nos últimos 5 anos, e está a criar mais 25.000 lugares, três mil deles no
nosso país. O preço das ações duplicou desde 2015, o valor de mercado triplicou,
mas a sua dívida financeira líquida é de quase 200% do capital. E a Domus Vi, o
terceiro operador da Europa, marca presença em Portugal com três lares. No
conjunto do continente detém 355 locais com acima de 33.000 lugares.
O
Investigate Europe descobriu que, por detrás das várias empresas envolvidas,
está um fundo financeiro, de que dependem, gerido pelo Intermediate Capital
Group plc, presidido por um ex-ministro trabalhista do Reino Unido. E um
complexo esquema tem feito, ao longo de 4 anos, com que vários fundos de
investimento entrem na empresa, multiplicando-lhe o valor sem gasto de dinheiro,
ou seja pedindo emprestado e dando como garantia os ativos comprados.
O
“Público” entrevistou Vivek Kotecha
que fez um estudo sobre lares privados na Grã-Bretanha que acusa margens de
lucro que “parecem desmesuradas, dado o risco que está envolvido no serviço
prestado, e parecem gerar níveis de lucro realmente elevados face ao que
deveria existir numa indústria de mão-de-obra intensiva”. E o jornal “InfoLibre” denuncia “engenharia
financeira de filigrana” na Geriavi, dona da Domus Vi em Portugal e Espanha,
que liga mais 11 empresas à ocultação de lucros, imposição de dívida às
empresas que gerem os lares, lucro com os juros de empréstimos e fuga aos impostos;
se liga, em França, à Kervita SAS, que paga os impostos de 200 filiais em
França, Espanha e Portugal, induzindo a redução de imposto a pagar; e, devendo
juros ao ICG (Intermediate Capital Group), pode declarar
prejuízos.
É
certo que é pequena a penetração destas empresas em Portugal mercê da lei em
vigor, pois não há financiamento direto aos lares privados (só dos que não têm fins
lucrativos).
Por isso, este mercado é menos atrativo que noutros pontos da Europa. Assim,
dos 2.537 lares do país, 1.677 são detidos pelo “setor social”, a maioria pela
Santa Casa da Misericórdia em acordo com o Estado, 733 são privados e 133 não
têm fins lucrativos, mas não têm acordos com o Estado.
A Orpea e a Domus Vi investem em Portugal em lares sem
comparticipação pública para clientes de elevado rendimento, cobrando de 1.500
a 4.000 euros mensais. Enfim, em Portugal, as poucas multinacionais atuantes
apostam em lares para rendimentos mais altos.
Além
da engenharia financeira de contornos, no mínimo, duvidosos, há problemas
laborais, em causa estando os direitos dos trabalhadores. E o
Investigate Europe recolheu testemunhos sobre abusos. Um dos casos é uma queixa
feita pela CGT, central sindical francesa, contra a Orpea que empregou três
atores em lares para se infiltrarem nas organizações de trabalhadores e fazerem
relatórios sobre as suas atividades. E há casos de intimidação e ostracização
de delegados, ativistas sindicais e membros de comissões de trabalhadores na França
e na Polónia. Na Alemanha, processa os presidentes de duas comissões de
trabalhadores para os tentar despedir por suposta fraude em documentos de gestão
do tempo de trabalho. Dois casos foram arquivados, mas há mais a correr nos
tribunais. E da Domus Vi citam-se casos na Galiza como o de Maribel Barreiro, da
Comissão de Trabalhadores, que era secretária da direção quando o lar era
público, mas quando a Domus Vi ganhou a concessão, foi despromovida para o
armazém e, obrigada a carregar pesos fortes, sofreu um acidente de trabalho e
meteu baixa médica.
Dos
lares geridos por estas multinacionais chegam notícias de contratação de
trabalhadores a menos. Por exemplo, o governo local descobriu que um lar da
Orpea (Kirchberg,
Áustria)
não observava a proporção devida de pessoal, o que atirou os residentes para “situações
de incontinência”. E, por não haver formação sanitária, entre outras situações,
sobressaía a da entubação de pacientes em vez de se tentar que bebessem. Na
Suíça, o sindicato Unia denuncia condições de trabalho “bastante medíocres em
comparação com outros lares e o quadro de pessoal é escasso”. Na Alemanha, na
Espanha e na Itália, 25% da mão-de-obra está empregada em base temporária e “o
grupo adiciona frequentemente trabalhadores administrativos, de limpeza e
outros ao pessoal de enfermagem, a fim de cumprir os requisitos legais.
Em
Portugal, o Instituto da Segurança Social confirma que “foram recebidas 5
denúncias e duas reclamações” de familiares ou utentes destas empresas. São queixas
sobre falta de recursos e, sobretudo, falta de enfermeiros e de pessoal,
predominando o pessoal feminino, a quem se paga pouco e se sobrecarrega com
trabalho (quase
escravatura).
No geral, as empresas cumprem a lei, que é muito permissiva. Não define horas
de trabalho nem número de médicos por utente, apenas estipula um enfermeiro por
cada 20, esquecendo que tem de haver 6 turnos e folgas.
Em
suma, cadeias de empresas internacionais dominam a gestão dos lares de idosos
na Europa, fundos de investimentos em offshores ditam cortes no serviço
aos residentes e salários baixos a enfermeiros e auxiliares, mas pressionam os
governos para subsídio ao sistema, enquanto impõem uma gestão férrea, que gera
lucros enormes, à custa da qualidade dos serviços. É um negócio de risco, para
os fundos e para as sociedades envelhecidas.
Mickaelle Rigodon, Aljoscha Krause e
Sonia Jalda trabalharam em lares nas três maiores empresas multinacionais da
Europa, em cidades muito distantes. Rigodon na Orpea (Auvergne, França); Krause na Korian (Lüneburg, Alemanha) e Jalda na Domus Vi (Vigo,
Espanha) e denunciam
muitas irregularidades.
Segundo a OCDE, os
Estados da UE e a Grã-Bretanha, Noruega e Suíça contribuem com mais de 220 mil milhões
de euros por ano para o cuidado dos idosos, sendo que estes pagam mais de 60
mil milhões – valores que estão em franco aumento. O envelhecimento
populacional é motor do crescimento deste mercado de trabalho em toda a Europa.
Pelas estimativas da Comissão Europeia, o custo dos cuidados a longo prazo na
Europa passará dos atuais 1,7% para 3,9% do PIB, (mais do dobro) em 2070. Negócio à
prova de crise e atrativo para os investidores por haver um seguro fluxo de
caixa! Joga-se com a fragilidade das pessoas. Dá dinheiro, mas é obsceno!
2021.07.20 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário