sábado, 24 de julho de 2021

Tribunal de Contas dá indicações ao Governo sobre gestão digital

 

Um relatório de auditoria do Tribunal de Contas (TdC) sobre o Ensino a Distância (E@D) e a digitalização nas escolas durante a pandemia, publicado a 22 de julho, conclui que houve resposta rápida e adaptada à pandemia, mas limitada pela insuficiência de competências e meios digitais, a requerer investimentos. Segundo o TdC, o recurso ao E@D em substituição das atividades educativas e letivas presenciais foi a medida mais impactante na Educação a mitigar os efeitos da pandemia por covid-19, que afetou os anos letivos 2019/20 e 2020/21.

O objetivo da predita auditoria foi examinar se o ME (Ministério da Educação) assegurou que todos os alunos (1,2 milhões) do 1.º ao 12.º ano (ensinos básico e secundário), que, nos dois últimos anos letivos, trocaram a sala de aula por um ecrã, acedessem ao E@D, procedeu ao acompanhamento e controlo e corrigiu as deficiências e insuficiências que se foram detetando.

Em síntese, o TdC concluiu que o E@D foi implementado em todas as escolas e anos de escolaridade e exigiu um significativo esforço de todos os envolvidos, em especial dos alunos e professores, com a rápida adaptação e inovação em meios e métodos. Porém, frisou que esta implementação foi conseguida sem experiência ou tempo de preparação. Com efeito, não estavam reunidas todas as condições para a eficácia do E@D, havendo alunos e professores com carências em competências digitais, sem computadores (4 em 5 alunos) e dificuldades no acesso à Internet e tendo as escolas meios digitais obsoletos. Algumas escolas acabaram por emprestar equipamentos “com mais de 15 anos”, com dificuldades em comprar os acessórios necessários, como microfones ou câmaras, para os alunos poderem participar nas aulas online. Assim, a falta de meios digitais foi o maior obstáculo à operacionalização do E@D.

Entretanto, é de registar que essa falta de meios digitais deu azo à solidariedade da parte da sociedade em geral e da crescente adaptação e sofisticação dos procedimentos de suporte adotados. Contudo, embora essa falta tenha sido mitigada por apoios (doação/empréstimo) de autarquias locais, associações e entidades privadas, não foi solucionada, subsistindo um número não quantificado de alunos sem os meios apropriados. E foram identificadas insuficiências na recolha de informação sobre o impacto da pandemia no ensino presencial, misto ou em E@D em cada escola, v.g. número de alunos sem professor(es) e sem meios digitais, número de professores em E@D e horas letivas previstas, mas não lecionadas.

Como era expectável, o E@D foi menos favorável aos alunos de contextos familiares mais frágeis e de grupos mais marginalizados, menos capacitados para o trabalho autónomo, com necessidades especiais e em situação de risco, expondo as fragilidades já existentes no sistema e afetando as aprendizagens dos alunos. Todavia, o impacto transversalmente mais negativo do E@D foi a perda de aprendizagens, cuja recuperação constitui a preocupação central entretanto refletida no “Plano de Recuperação das Aprendizagens 21/23 Escola +”.

O tribunal sublinha que “várias escolas reportaram que foram os professores que tiveram mais carências”. Assim, os muitos professores deslocados e alojados em quartos e parques de campismo foram os mais afetados pela falta de equipamentos que os alunos”. E, numa altura em que os estudantes estavam a aprender em casa, a ajuda podia vir da família, mas em Portugal, 48% da população entre os 25 e os 64 anos não concluiu o ensino secundário, o que é suscetível de condicionar um acompanhamento em casa. Além disso, as competências digitais estão abaixo da média europeia, situando-se na 20.ª posição da UE: em 2019, só 54% dos indivíduos entre os 25 e os 64 anos tinham competências digitais básicas ou mais do que básicas. Também concluiu o TdC que as despesas orçamentais da Educação com a pandemia respeitaram, essencialmente, a equipamentos de proteção individual (2019/20: 3,5 M€; 2020/21: 11,5M€ até 20/01/2021) e que a autorização para a aquisição de 386 M€ em meios digitais para as escolas foi tardia, já só no final do ano letivo 2019/20 – mais precisamente a 16 de julho, através de resolução do Conselho de Ministros, e condicionada à aprovação de fundos comunitários. Por isso, esses meios só começaram a chegar aos alunos no ano letivo 2020/21 e a mais de 60% só chegará no ano letivo seguinte. Com base em informações que lhe foram transmitidas pela Secretaria-Geral da Educação e Ciência, o TdC indica que, apesar da autorização da despesa ter chegado em julho de 2020, no final de janeiro de 2021 só “tinham sido entregues 26.749 desses meios”, abrangendo “2,4% do total de alunos”.

Na contestação apresentada pelo gabinete do Ministro da Educação, esta informação é descrita como “incorreta”. Segundo o ME, a maioria dos 100 mil computadores inicialmente prometidos “chegaram às escolas entre novembro de 2020”.

Para o futuro, o PRR 2021-2026 (Plano de Recuperação e Resiliência 2021) para Portugal prevê investimentos de 559 M€ na componente Escola Digital.

Por outro lado, lamenta o TdC que o ME não tenha dados sobre faltas dos alunos em 2019/2020, primeiro ano letivo afetado pela pandemia, frisando que “um dos riscos imediatos do ensino à distância é a falta de assiduidade a qual está ligada ao abandono escolar”. Na verdade, tendo questionado a DGEEC (Direcção-Geral de Estatísticas da Educação) quanto a registos de assiduidade e a comparação com anos anteriores, aquele organismo respondido que “tal sistematização e análise exigem um nível de complexidade que não é possível desenvolver em tempo útil”. E, num relatório com resultados de questionários às escolas, citado na auditoria do TdC, a DGEEC reportou em Setembro passado que “a maioria dos alunos acompanhou as atividades do ensino à distância de forma regular, logo a partir da 1.ª fase, no final no 2.º período, sendo esta taxa bastante superior no caso do ensino secundário. E o mesmo foi transmitido ao tribunal no questionário que efetuou a 31 agrupamentos. “Na generalidade, não houve mais abandono escolar resultante do ensino à distância”, como reportou. Contudo, apesar dos esforços desenvolvidos, estimam-se, no período de encerramento das escolas, em cerca de 20 mil os alunos com os quais não foi possível contactar, pertencentes a grupos mais vulneráveis, mais desfavorecidos economicamente, menos motivados, já com dificuldades de aprendizagem, com insucesso e em risco de abandono – adianta o TdC estribado nos dados apresentados pela presidente do CNE (Conselho Nacional de Educação), Maria Emília Brederode dos Santos, durante uma audição parlamentar realizada em maio.

E o TdC estranha que nem a DGEstE (Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares), nem a DGEEC lhe tenham disponibilizado dados sobre os meios digitais na posse de alunos e professores quando do início da pandemia, informação que “seria da maior pertinência atendendo ao momento do lançamento de investimentos em meios digitais e à sua distribuição faseada em função das prioridades”. Refere, a este respeito, que “no início da pandemia as escolas efetuaram o levantamento dos meios digitais dos alunos e professores por a informação de que dispunham ser insuficiente”.  E especifica, com base em informação transmitida pela ANDAEP:

Foi já em pleno ensino à distância de emergência que várias escolas verificaram que os dados recolhidos sobre os meios digitais dos alunos, aquando das matrículas, eram pouco detalhados e sem correspondência à realidade, pelo que realizaram o levantamento das situações de carência, através de inquérito dos professores aos encarregados de educação complementado por contactos telefónicos”.

Porém, em sede de contraditório, o ME atribui às escolas a responsabilidade pela falta de informação, pois a plataforma de apoio às escolas Estamos On tinha uma componente relativa a esta informação para as escolas procederem à sua atualização, o que não aconteceu por parte delas, como sustenta a DGEstE na resposta ao TdC, tecendo críticas ao do relatório, escrevendo:

Face ao que parece ter sido a amostra [31 agrupamentos de escolas] algumas afirmações afiguram-se generalizações que carecem de outra validação empírica”.

A DGEstE refere que as escolas não encerraram, os alunos estiveram em regime não presencial, e houve sempre equipas de pessoas a trabalhar na escola e uma rede de escolas de acolhimento.

Enfim, o ME refere que foram introduzidas várias medidas de resposta à covid-19, cuja despesa se estima ser “superior a 200 milhões de euros por ano letivo, que, por então estar em curso, não permitia o apuramento do seu valor exato”. E, entre as medidas, aponta “o reforço da verba orçamental às escolas para aquisição de equipamentos de proteção individual e material de limpeza, reforço do crédito horário em mais uma hora por turma, alargamento do programa de apoio tutorial específico, reforço das equipas de apoio à educação inclusiva”. Além disso, menciona a “contratação de 900 técnicos especializados para os planos de desenvolvimento pessoal, social e comunitário e a contratação de mil e quinhentos assistentes operacionais”.

Finalmente, o TdC observou que, para evitar o desinvestimento a médio prazo, não havia um plano estratégico para a substituição dos meios digitais, cuja vida útil é limitada, adquiridos para as escolas e que não foram implementados procedimentos centralizados de controlo preventivo da duplicação de apoios em meios digitais, o que retira eficácia à sua distribuição prioritária aos alunos mais carenciados e aumenta o risco de desperdício de dinheiros públicos.

Os auditores alertam que é preciso ter um plano de substituição, para que não se repita o que aconteceu há pouco mais de uma década, com o Plano Tecnológico da Educação: em 2008, Portugal tinha um computador ligado à Internet para cada dois alunos, mas em 2017/2018 passou a ter apenas um computador para cada cinco alunos.

Identificadas estas situações, o TdC formula as seguintes recomendações dirigidas ao Ministro Educação: a) concretizar o programa de investimentos para a digitalização das escolas; b) elaborar um plano estratégico de substituição dos meios digitais; c) aperfeiçoar o sistema de gestão escolar prevenindo o reporte tempestivo de informação em situações de emergência; e d) aperfeiçoar o sistema de gestão e controlo de meios digitais prevenindo a duplicação de apoios.

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Já antes da pandemia (esta não justifica tudo) se podia apontar o dedo aos TEIP (Territórios de Intervenção Prioritária), uma rede estrutural de apoio às escolas em meios desfavorecidos, que falha objetivos. É a conclusão de um estudo de doutoramento realizado por Hélder Ferraz, orientado pelos professores da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto Tiago Neves e Gil Nata, ambos com trabalho de investigação na área, denunciando que o fosso entre os resultados dos alunos das escolas que recebem mais recursos e autonomia e os restantes não diminuiu em mais de 10 anos do programa TEIP, o mais importante e duradouro programa de apoio a escolas inseridas em meios economicamente desfavorecidos, onde o número elevado de alunos em risco de exclusão social e escolar justifica medidas de discriminação positiva, como a atribuição de mais professores e técnicos, recursos materiais e autonomia. Com efeito, apesar do reforço destas medidas, um dos principais objetivos do programa de intervenção sobre os TEIP não têm sido atingidos: ao fim de 14 anos, os resultados dos alunos das escolas de ensino secundário apoiadas desta forma não só não se aproximaram das notas dos colegas da maioria das escolas públicas como até divergiram um pouco.

O investigador analisou as classificações internas e as de exames atribuídas entre 2001/2002 e 2014/2015 (mais de 4 milhões de classificações do secundário), acompanhando a evolução das escolas nas várias fases do programa e em comparação com os restantes estabelecimentos de ensino.

Os pontos de partida são diferentes (as condições socioeconómicas têm impacto, já estudado, no sucesso escolar) e chegam a divergir já com este programa em curso, sobretudo nas notas nos exames.

Os TEIP tiveram a primeira fase entre 1996 e 1999, com 35 escolas, foram retomados em 2006, com o número de estabelecimentos a alargar progressivamente e abrangem 136 agrupamentos agora, incluem 51 secundárias e integram cerca de 15% dos estudantes matriculados no sistema educativo. E o Governo vai lançar a fase 4 deste programa.

É de ressalvar que a melhoria dos resultados escolares não é o único objetivo, mas é uma das metas relevante, já que das notas depende a transição entre níveis de ensino e o acesso ao ensino superior, que é um garante de melhores rendimentos e estabilidade no emprego. Ora, verificou-se uma diminuição relativa no número de exames nacionais realizados nas escolas TEIP, o que significa que a percentagem destes estudantes candidatarem-se ao ensino superior caiu. Uma das estratégias tem sido o recurso aos cursos profissionais como alternativa para os estudantes com maiores dificuldades, sendo difícil estes alunos chegarem à universidade.

Além da análise quantitativa das classificações, Ferraz fez uma seleção de escolas para perceber as estratégias postas em prática e quais demonstraram ser mais eficazes. Mas “uma análise feita escola a escola a partir de vários indicadores escolares (exames, retenção, abandono) não permitiu encontrar uma única com um percurso inequívoco de sucesso (entendido como aproximação sistemática e consistente às restantes escolas públicas) ao longo do tempo”. Daí passou a uma análise qualitativa incidente em meia dúzia de escolas, umas com progressão positiva e outras negativa, concluindo que os estabelecimentos tendem a não adotar diferentes estratégias, antes aplicam “soluções similares entre si e onde não é clara a relação com as caraterísticas de contexto”. E há tensão entre escolas e famílias, com estas a demonstrarem pouco reconhecimento pelo trabalho dos docentes e baixas expectativas sobre o percurso escolar dos filhos.

Depois, há uma “opacidade” em torno dos TEIP que não permite conhecer, por exemplo, os indicadores socioeconómicos que levam uma escola a integrar ou não o programa e os critérios que determinam os recursos a alocar-lhe. Mesmo em relação às verbas envolvidas, suportadas sobretudo por fundos comunitários, é difícil ter acesso a números. (Um concurso para o triénio 2018/19-2020/21 previa €44 milhões só para escolas da região Norte).

Ferraz aponta a injustiça de pôr na escola o ónus de transformar a sociedade onde a montante as desigualdades são muitas, admite que só em conjunto com outras políticas redistributivas e sociais a exclusão será combatida e sustenta que tal não deve levar à resignação nem a desistir de medidas que permitam à educação compensar as desigualdades sociais com mais sucesso.

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Um Tribunal superior, além de apreciar a legalidade das contas, faz juízo sobre a suficiência das medidas que devem levar a despesas razoáveis do Estado a assumir a tempo e dá indicações de gestão ao ME. E um académico põe a nu debilidades sistémicas na Educação. Dá que pensar!...

2021.07.24 – Louro de Carvalho

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