Um relatório de
auditoria do Tribunal de Contas (TdC) sobre o
Ensino a Distância (E@D) e a digitalização nas escolas
durante a pandemia, publicado a 22 de julho, conclui que houve resposta rápida
e adaptada à pandemia, mas limitada pela insuficiência de competências e meios
digitais, a requerer investimentos. Segundo o TdC, o recurso ao E@D em
substituição das atividades educativas e letivas presenciais foi a medida mais
impactante na Educação a mitigar os efeitos da pandemia por covid-19, que
afetou os anos letivos 2019/20 e 2020/21.
O objetivo da
predita auditoria foi examinar se o ME (Ministério da Educação) assegurou que todos os alunos (1,2 milhões) do 1.º ao 12.º ano (ensinos básico e secundário), que, nos dois últimos anos letivos, trocaram a sala
de aula por um ecrã, acedessem ao E@D, procedeu ao acompanhamento e controlo e corrigiu
as deficiências e insuficiências que se foram detetando.
Em síntese, o
TdC concluiu que o E@D foi implementado em todas as escolas e anos de
escolaridade e exigiu um significativo esforço de todos os envolvidos, em
especial dos alunos e professores, com a rápida adaptação e inovação em meios e
métodos. Porém, frisou que esta implementação foi conseguida sem experiência ou
tempo de preparação. Com efeito, não estavam reunidas todas as condições para a
eficácia do E@D, havendo alunos e professores com carências em competências
digitais, sem computadores (4 em 5 alunos) e
dificuldades no acesso à Internet e tendo as escolas meios digitais obsoletos. Algumas
escolas acabaram por emprestar equipamentos “com mais de 15 anos”, com dificuldades
em comprar os acessórios necessários, como microfones ou câmaras, para os
alunos poderem participar nas aulas online. Assim, a falta de meios digitais foi o maior obstáculo à
operacionalização do E@D.
Entretanto, é
de registar que essa falta de meios digitais deu azo à solidariedade da parte da
sociedade em geral e da crescente adaptação e sofisticação dos procedimentos de
suporte adotados. Contudo, embora essa falta tenha sido mitigada por apoios (doação/empréstimo) de autarquias locais, associações e
entidades privadas, não foi solucionada, subsistindo um número não quantificado
de alunos sem os meios apropriados. E foram identificadas insuficiências na
recolha de informação sobre o impacto da pandemia no ensino presencial, misto
ou em E@D em cada escola, v.g. número de alunos sem professor(es) e sem meios
digitais, número de professores em E@D e horas letivas previstas, mas não
lecionadas.
Como era expectável, o E@D foi menos favorável aos alunos de
contextos familiares mais frágeis e de grupos mais marginalizados, menos
capacitados para o trabalho autónomo, com necessidades especiais e em situação
de risco, expondo as fragilidades já existentes no sistema e afetando as
aprendizagens dos alunos. Todavia, o impacto transversalmente mais negativo do
E@D foi a perda de aprendizagens, cuja recuperação constitui a preocupação
central entretanto refletida no “Plano de Recuperação das Aprendizagens 21/23
Escola +”.
O tribunal
sublinha que “várias escolas reportaram que foram os professores que tiveram
mais carências”. Assim, os muitos professores deslocados e alojados em quartos
e parques de campismo foram os mais afetados pela falta de equipamentos que os
alunos”. E, numa altura em que os estudantes estavam a aprender em casa, a
ajuda podia vir da família, mas em Portugal, 48% da população entre os 25 e os
64 anos não concluiu o ensino secundário, o que é suscetível de condicionar um acompanhamento
em casa. Além disso, as competências digitais estão abaixo da média europeia,
situando-se na 20.ª posição da UE: em 2019, só 54% dos indivíduos entre os 25 e
os 64 anos tinham competências digitais básicas ou mais do que básicas. Também concluiu o TdC que as
despesas orçamentais da Educação com a pandemia respeitaram, essencialmente, a
equipamentos de proteção individual (2019/20: 3,5 M€;
2020/21: 11,5M€ até 20/01/2021)
e que a autorização para a aquisição de 386 M€ em meios digitais para as
escolas foi tardia, já só no final do ano letivo 2019/20 – mais precisamente a
16 de julho, através de resolução do Conselho de Ministros, e condicionada à
aprovação de fundos comunitários. Por isso, esses meios só começaram a chegar
aos alunos no ano letivo 2020/21 e a mais de 60% só chegará no ano letivo
seguinte. Com base em informações que lhe
foram transmitidas pela Secretaria-Geral da Educação e Ciência, o TdC indica
que, apesar da autorização da despesa ter chegado em julho de 2020, no final de
janeiro de 2021 só “tinham sido entregues 26.749 desses meios”, abrangendo
“2,4% do total de alunos”.
Na
contestação apresentada pelo gabinete do Ministro da Educação, esta informação
é descrita como “incorreta”. Segundo o ME, a maioria dos 100 mil computadores
inicialmente prometidos “chegaram às escolas entre novembro de 2020”.
Para
o futuro, o PRR 2021-2026 (Plano de Recuperação e Resiliência
2021) para Portugal prevê
investimentos de 559 M€ na componente Escola Digital.
Por
outro lado, lamenta o
TdC que o ME não tenha dados sobre faltas dos alunos em 2019/2020, primeiro ano
letivo afetado pela pandemia, frisando que “um dos riscos imediatos do ensino
à distância é a falta de assiduidade a qual está ligada ao abandono escolar”. Na
verdade, tendo questionado a DGEEC (Direcção-Geral de Estatísticas da
Educação) quanto a registos de assiduidade e
a comparação com anos anteriores, aquele organismo respondido que “tal
sistematização e análise exigem um nível de complexidade que não é possível
desenvolver em tempo útil”. E, num relatório com resultados de questionários às
escolas, citado na auditoria do TdC, a DGEEC reportou em Setembro passado que
“a maioria dos alunos acompanhou as atividades do ensino à distância de forma
regular, logo a partir da 1.ª fase, no final no 2.º período, sendo esta taxa
bastante superior no caso do ensino secundário. E o mesmo foi transmitido ao
tribunal no questionário que efetuou a 31 agrupamentos. “Na generalidade, não
houve mais abandono escolar resultante do ensino à distância”, como reportou. Contudo,
apesar dos esforços desenvolvidos, estimam-se, no período de encerramento das escolas,
em cerca de 20 mil os alunos com os quais não foi possível contactar,
pertencentes a grupos mais vulneráveis, mais desfavorecidos economicamente,
menos motivados, já com dificuldades de aprendizagem, com insucesso e em risco
de abandono – adianta o TdC estribado nos dados apresentados pela presidente do
CNE (Conselho
Nacional de Educação), Maria
Emília Brederode dos Santos, durante uma audição parlamentar realizada em maio.
E o TdC
estranha que nem a DGEstE (Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares), nem a DGEEC lhe tenham disponibilizado dados sobre
os meios digitais na posse de alunos e professores quando do início da
pandemia, informação que “seria da maior pertinência atendendo ao momento do
lançamento de investimentos em meios digitais e à sua distribuição faseada em
função das prioridades”. Refere, a este respeito, que “no início da pandemia as
escolas efetuaram o levantamento dos meios digitais dos alunos e professores
por a informação de que dispunham ser insuficiente”. E especifica, com
base em informação transmitida pela ANDAEP:
“Foi já em pleno ensino à distância de
emergência que várias escolas verificaram que os dados recolhidos sobre os meios
digitais dos alunos, aquando das matrículas, eram pouco detalhados e sem
correspondência à realidade, pelo que realizaram o levantamento das situações
de carência, através de inquérito dos professores aos encarregados de educação
complementado por contactos telefónicos”.
Porém, em
sede de contraditório, o ME atribui às escolas a responsabilidade pela falta de
informação, pois a plataforma de apoio às escolas Estamos On tinha uma
componente relativa a esta informação para as escolas procederem à sua atualização,
o que não aconteceu por parte delas, como sustenta a DGEstE na resposta ao TdC,
tecendo críticas ao do relatório, escrevendo:
“Face ao que parece ter sido a amostra [31
agrupamentos de escolas] algumas afirmações afiguram-se generalizações que
carecem de outra validação empírica”.
A DGEstE refere que as escolas não encerraram, os
alunos estiveram em regime não presencial, e houve sempre equipas de pessoas a
trabalhar na escola e uma rede de escolas de acolhimento.
Enfim, o ME refere que foram introduzidas várias
medidas de resposta à covid-19, cuja despesa se estima ser “superior a 200
milhões de euros por ano letivo, que, por então estar em curso, não permitia o
apuramento do seu valor exato”. E, entre as medidas, aponta “o reforço da verba
orçamental às escolas para aquisição de equipamentos de proteção individual e
material de limpeza, reforço do crédito horário em mais uma hora por turma,
alargamento do programa de apoio tutorial específico, reforço das equipas de
apoio à educação inclusiva”. Além disso, menciona a “contratação de 900
técnicos especializados para os planos de desenvolvimento pessoal, social e
comunitário e a contratação de mil e quinhentos assistentes operacionais”.
Finalmente, o
TdC observou que, para evitar o desinvestimento a médio prazo, não havia um
plano estratégico para a substituição dos meios digitais, cuja vida útil é
limitada, adquiridos para as escolas e que não foram implementados
procedimentos centralizados de controlo preventivo da duplicação de apoios em
meios digitais, o que retira eficácia à sua distribuição prioritária aos alunos
mais carenciados e aumenta o risco de desperdício de dinheiros públicos.
Os auditores alertam que é preciso ter um plano de
substituição, para que não se repita o que aconteceu há pouco mais de uma
década, com o Plano Tecnológico da Educação: em 2008, Portugal tinha um
computador ligado à Internet para cada dois alunos, mas em 2017/2018 passou a
ter apenas um computador para cada cinco alunos.
Identificadas
estas situações, o TdC formula as seguintes recomendações dirigidas ao Ministro
Educação: a) concretizar o programa de investimentos para a digitalização das
escolas; b) elaborar um plano estratégico de substituição dos meios digitais;
c) aperfeiçoar o sistema de gestão escolar prevenindo o reporte tempestivo de
informação em situações de emergência; e d) aperfeiçoar o sistema de gestão e
controlo de meios digitais prevenindo a duplicação de apoios.
***
Já antes da
pandemia (esta não
justifica tudo) se podia apontar
o dedo aos TEIP (Territórios de Intervenção Prioritária), uma rede estrutural de apoio às escolas em
meios desfavorecidos, que falha objetivos. É a conclusão de um estudo de
doutoramento realizado por Hélder Ferraz, orientado pelos professores da
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto Tiago
Neves e Gil Nata, ambos com trabalho de investigação na área, denunciando que o fosso entre os resultados dos alunos das escolas que recebem mais recursos e
autonomia e os restantes não diminuiu em mais de 10 anos do programa TEIP, o mais
importante e duradouro programa de apoio a escolas inseridas em meios
economicamente desfavorecidos, onde o número elevado de alunos em risco de
exclusão social e escolar justifica medidas de discriminação positiva, como a
atribuição de mais professores e técnicos, recursos materiais e autonomia. Com efeito,
apesar do reforço destas medidas, um dos principais objetivos do programa de
intervenção sobre os TEIP não têm sido atingidos: ao fim de 14 anos, os
resultados dos alunos das escolas de ensino secundário apoiadas desta forma não
só não se aproximaram das notas dos colegas da maioria das escolas públicas
como até divergiram um pouco.
O investigador analisou as classificações internas e as de
exames atribuídas entre 2001/2002 e 2014/2015 (mais de 4 milhões de classificações do secundário), acompanhando a evolução das escolas
nas várias fases do programa e em comparação com os restantes estabelecimentos
de ensino.
Os
pontos de partida são diferentes (as condições socioeconómicas têm impacto, já estudado, no
sucesso escolar) e chegam
a divergir já com este programa em curso, sobretudo nas notas nos exames.
Os TEIP tiveram a primeira fase entre 1996 e 1999, com 35
escolas, foram retomados em 2006, com o número de estabelecimentos a alargar progressivamente
e abrangem 136 agrupamentos agora, incluem 51 secundárias e integram cerca de
15% dos estudantes matriculados no sistema educativo. E o Governo vai lançar a
fase 4 deste programa.
É de
ressalvar que a melhoria dos resultados escolares não é o único objetivo, mas é
uma das metas relevante, já que das notas depende a transição entre níveis de
ensino e o acesso ao ensino superior, que é um garante de melhores rendimentos
e estabilidade no emprego. Ora, verificou-se uma diminuição relativa no número
de exames nacionais realizados nas escolas TEIP, o que significa que a
percentagem destes estudantes candidatarem-se ao ensino superior caiu. Uma das
estratégias tem sido o recurso aos cursos profissionais como alternativa para
os estudantes com maiores dificuldades, sendo difícil estes alunos chegarem à
universidade.
Além
da análise quantitativa das classificações, Ferraz fez uma seleção de escolas
para perceber as estratégias postas em prática e quais demonstraram ser mais
eficazes. Mas “uma análise feita escola a escola a partir de vários indicadores
escolares (exames,
retenção, abandono) não
permitiu encontrar uma única com um percurso inequívoco de sucesso (entendido como aproximação
sistemática e consistente às restantes escolas públicas) ao longo do tempo”. Daí passou a uma
análise qualitativa incidente em meia dúzia de escolas, umas com progressão
positiva e outras negativa, concluindo que os estabelecimentos tendem a não
adotar diferentes estratégias, antes aplicam “soluções similares entre si e
onde não é clara a relação com as caraterísticas de contexto”. E há tensão entre
escolas e famílias, com estas a demonstrarem pouco reconhecimento pelo trabalho
dos docentes e baixas expectativas sobre o percurso escolar dos filhos.
Depois, há uma “opacidade” em torno dos TEIP que não permite
conhecer, por exemplo, os indicadores socioeconómicos que levam uma escola a
integrar ou não o programa e os critérios que determinam os recursos a alocar-lhe.
Mesmo em relação às verbas envolvidas, suportadas sobretudo por fundos
comunitários, é difícil ter acesso a números. (Um concurso para o triénio 2018/19-2020/21 previa €44
milhões só para escolas da região Norte).
Ferraz
aponta a injustiça de pôr na escola o ónus de transformar a sociedade onde a
montante as desigualdades são muitas, admite que só em conjunto com outras
políticas redistributivas e sociais a exclusão será combatida e sustenta que
tal não deve levar à resignação nem a desistir de medidas que permitam à
educação compensar as desigualdades sociais com mais sucesso.
***
Um Tribunal superior, além de apreciar a legalidade das
contas, faz juízo sobre a suficiência das medidas que devem levar a despesas razoáveis
do Estado a assumir a tempo e dá indicações de gestão ao ME. E um académico põe
a nu debilidades sistémicas na Educação. Dá que pensar!...
2021.07.24 – Louro
de Carvalho
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