segunda-feira, 26 de julho de 2021

Deus conta connosco para repartir o seu pão com os que têm fome

 

É um postulado visível na 1.ª leitura deste XVII domingo do Tempo Comum no Ano B (2 Rs 4,42-44) a aguçar-nos o apetite para a assunção do Evangelho tomado para esta liturgia (Jo 6,1-5), a Boa Nova da abundância messiânica a partir da exiguidade dos recursos dos homens.

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Os ciclos de Elias e Eliseu ocupam espaço significativo nos Livros dos Reis (cf 1Rs 17,1-21,29; 2Rs 1,1-13,21), testemunhando um período política e religiosamente conturbado da vida do Reino do Norte (Israel). Elias profetizou nos reinados de Acab (874-853 a.C.) e de Acazias (853-852 a.C.) e Eliseu nos de Jorão (853-842 a.C.), de Jeú (842-813 a.C.) e de Joacaz (813-797 a.C.).

Os reis de Israel estabeleciam relações com os povos vizinhos, o que tinha custos na fidelidade a Javé e à Aliança, pois o culto aos deuses estrangeiros entrava no país e ocupava significativo lugar no coração dos israelitas. Este sincretismo religioso levava à preterição da religião javista, com a complacência régia, em prol do culto a Baal e a Astarte. Paralelamente multiplicavam-se as injustiças contra os pobres e as arbitrariedades contra os fracos. Contra este quadro político-social e religioso se ergue Elias em nome dos fiéis aos valores religiosos que recusavam a coexistência de Javé e de Baal na fé de Israel, luta que Eliseu, seu discípulo, continuará.

Eliseu – o protagonista da 1.ª leitura – integrava uma comunidade de filhos de profetas (os “benê nebi’im” – 2Rs 2,3; 4,1), uma comunidade de homens que viviam pobremente (2Rs 4,1-7) e seguiam Javé incondicionalmente. O Povo consultava-os buscando apoio face aos abusos do poder. Eliseu é apresentado muitas vezes (cf 2 Rs 2; 3,4-27; 4,1-8,15; 9,1-10; 13,14-21), como um profeta dos milagres, cujas ações mostravam a presença da vida e da força de Deus no meio do seu Povo. E também é o profeta da intervenção política ultrapassando as fronteiras físicas de Israel e chega a Damasco (cf 2 Re 8,7-15).

O trecho em referência conta que um homem de Baal-Shalisha trouxe a Eliseu o pão das primícias: 20 pães de cevada e trigo novo num saco. Segundo Lv 23,20, o pão das primícias era consagrado ao Senhor, embora viesse a reverter para o sacerdote. Eliseu, porém, mandou repartir os dons pelas pessoas que rodeavam o profeta. O servo do profeta não acreditava que tais alimentos chegassem para cem pessoas, mas chegaram e ainda sobraram.

Temos ante os olhos uma série de gestos reveladores da vontade de partilhar: um homem leva os dons ao profeta, que não os guarda para si, antes os manda partilhar. E a descrição desta milagrosa multiplicação de pães releva que, se o homem sai do seu egoísmo e se disponibiliza a partilhar os dons recebidos de Deus, eles chegam para todos e sobram. A partilha generosa, em vez de empobrecer, gera vida e vida em abundância.

Além disso, o relato serve de modelo literário aos evangelistas para a apresentação dos relatos evangélicos das multiplicações dos pães (cf Mc 6,34-44; 8,1-10; Mt 14,13-21; 15,32-38; Lc 9,10-17).

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A liturgia propõe, durante alguns domingos, a leitura do capítulo 6 do Evangelho de João – a catequese sobre Jesus, o Pão da vida. O episódio ora narrado (Jo 6,1-15) situa-se geograficamente “na outra margem” do Lago de Tiberíades e temporalmente perto da Páscoa, a festa judaica mais importante, que celebrava a libertação do Povo de Deus da opressão do Egito. Assim, o texto em causa mostra alguns paralelos entre a cena da multiplicação dos pães e a libertação do Povo de Deus, com Jesus no papel de Moisés, o libertador, o que já é chave de leitura para esta catequese joânica, que apresenta a ação de Jesus como ação libertadora visando fazer passar o Povo da terra da escravidão para a da liberdade. Esta catequese desenrola-se em vários passos:

A referência à “passagem do mar” alude à passagem do Mar Vermelho por Moisés com o Povo libertado do Egito (cf Ex 14,15-31), sendo o escopo de Jesus fazer o Povo deixar a terra da opressão para rumar à da liberdade.

Da mesma forma que sucedeu com Moisés vai com Jesus enorme multidão para ver os sinais que Ele fazia “sobre os enfermos” (“epì tôn asthenoúntôn”: Jo 6,2), significando o desejo de superar a condição de miséria e escravidão, o que se realizará só com Jesus.

A indicação de que Jesus “subiu a um monte” (“anêlthen eis tò óros”: Jo 6,3) evoca a ambiência da Aliança do Sinai onde Deus ofereceu ao Povo, através de Moisés, os mandamentos, pelo que é através de Jesus que se vai realizar a nova Aliança entre Deus e este Povo de gente livre.

A evocação da proximidade da Páscoa (“eggùs tò páskha”: Jo 6,4) releva no quadro da libertação do Povo da escravidão, pois do Povo que subia a Jerusalém para, no monte do Templo, celebrar a libertação, emerge a multidão que segue Jesus para um outro “monte”, do outro lado do mar, e que anseia pela libertação das amarrações judaicas e percebe que Jesus traz o Tempo Novo.

A multidão está faminta e não tem que comer (Jo 6,5-6), o que recorda o deserto do Êxodo, em que o Povo liberto sentiu fome. E foi Deus que, respondendo à sua necessidade, lhe deu comida em abundância. Também agora Jesus Se apercebe da necessidade da multidão e vai colmatá-la, assim mostrando o rosto do Deus do amor e da bondade, o Deus providente.

Nesta atividade Jesus envolve os discípulos, que se interrogam “onde (“póthen”) havemos de comprar (“agorásômen”) pão para lhes dar de comer?” (Jo 6,5). A comunidade (onde Jesus Se inclui) é responsável pelas fomes dos homens e tem de assumir a missão de saciar essas fomes. Tanto assim é que as narrativas de Marcos, Lucas e primeira de Mateus incluem, da parte de Jesus, uma sugestão de solução do problema: “Dai-lhes vós mesmo de comer!(“dóte autoîs hymeîs phageîn” ou “dóte autoîs phageîn hymeîs”: Mc 6,37; Lc 9,13; Mt 14,16).   

Jesus levanta a questão aos discípulos na pessoa de Filipe para os “experimentar” (Jo 6,6). A comunidade dos discípulos, formados na escola e nos valores de Jesus, não responde à fome do mundo recorrendo ao sistema económico que se baseie no egoísmo e no poder do dinheiro pondo os bens nas mãos de poucos, gerando opressão, dependência necessidade, na proposta nova de Jesus, a partilha que gera libertação e vida em abundância para todos.

Filipe sente a impossibilidade de resolver o problema no quadro económico vigente: “Duzentos denários não bastariam para dar um pedaço a cada um(Jo 6,7). O denário equivalia ao salário base do dia de trabalho, pelo que nem o dinheiro de mais de meio ano de trabalho bastaria.

Entretanto, André (que simboliza os que aderiram decididamente a Jesus e com quem têm uma grande intimidade) divisa uma solução diferente (Jo 6,8-9). Contudo, não está muito convicto do resultado (“o que é isso para tanta gente?”). E Jesus, correspondendo ao desejo do apóstolo, apresenta, de forma inovadora, outro sistema, o da partilha de vida e da eliminação da lógica da exploração.

O rapazito, com 5 pães (“ártous”) e 2 peixinhos (“opsária”), que só aparece na versão de João, além de significar o contributo do faminto para a solução da saciedade da comunidade, é relevante pela idade e condição de debilidade física e social, representando a debilidade da comunidade de Jesus face às carências do mundo. O nome grego (“paidárion”) empregue por João para falar da criança indica “menino” e “servo”. Assim, a comunidade representada nele é socialmente humilde, sem pretensão de poder ou de domínio, dedicada ao serviço dos homens e vocacionada a resolver a necessidade dos pobres e a instaurar um novo sistema libertador.

Os números “cinco” (“pães”) e “dois” (“peixes”) não são obra do acaso: a sua soma dá “sete” – a totalidade. É na partilha da totalidade do que a comunidade possui que se responde às carências humanas. É totalidade fracionada e diversificada, que, ao serviço dos irmãos, sacia as fomes.

Sobre o alimento que a comunidade disponibiliza Jesus pronuncia a “ação de graças(“eukharistêsas diédômen”: Jo 6,11), mostrando que os bens são dons de Deus, o que implica desvinculá-los do possuidor humano para mostrar que são dom gratuito oferecido aos homens. Assim, dar graças é reconhecer que os bens são de todos e que o possuidor é só o administrador encarregado de os pôr à disposição de todos com a gratuitidade com que os recebeu.

Saciada a fome do mundo através desses bens que a comunidade recebeu de Deus e que pôs ao serviço de todos os homens, os discípulos são chamados a outros desempenhos. Antes de mais, é de registar que as sobras não se podem perder, mas devem constituir o ponto de partida para outras abundâncias, pois é preciso multiplicar incessantemente o amor e o pão para continuar a jorrar a vida para os homens. A referência aos 12 cestos de pedaços recolhidos pelos discípulos aludirá a todo o Israel (12 tribos): se a comunidade souber partilhar o que recebeu de Deus, pode satisfará a fome de todo o Povo (Jo 6,12-13).

Alguns dos que presenciaram a multiplicação dos pães e dos peixes têm consciência de que Jesus é o Messias que havia de vir para dar ao Povo vida em abundância e querem fazê-lo rei (Jo 6,14-15). Jesus não aceita, pois não veio resolver os problemas do mundo instaurando um sistema de autoridade e poder, mas levar os homens a viverem na lógica de partilha e solidariedade, fazendo-se dom e serviço humilde aos irmãos. É desta forma que Ele – com a colaboração dos discípulos – se propõe eliminar o sistema opressor, responsável pela fome e pela miséria.

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Dom António Couto, na sua “Mesa de Palavras” desenvolve maravilhosamente esta temática. Daí se respigam dados tidos por algo pertinentes. 

Comprar” é verbo recorrente nos discípulos, mas estranho em Jesus. No encontro de Jesus com a Samaritana, os discípulos foram comprar, enquanto Jesus falava em dardar-se.

Na primeira multiplicação dos pães, relatada por Mateus, Marcos e Lucas, Jesus recusa a solução de comprar, avançada pelos discípulos, e propõe a de dar (“dídômi”: “dóte). Porém, agora fala em comprar conjugando o verbo na 1.ª pessoa do plural, incluindo-Se. De facto, ante a lógica de Jesus, a da misericórdia e partilha, já os discípulos, céticos, se tinham perguntado: “De onde(“póthen) poderá alguém saciar estas pessoas de pães num lugar deserto?(Mc 8,4).

Na pergunta socrática feita a Filipe, o narrador anota que Jesus disse isto para pôr Filipe à prova (“peirázôn autón), pois bem sabia o que havia de fazer (Jo 6,6). E Filipe, rápido a calcular, diz que 200 denários de pão não chegam para que cada um receba uma só migalhinha (Jo 6,7). Realmente, feitas as contas em termos de mercado, pouco haverá a fazer. Porém, é de estranhar como Filipe se deixou levar tão depressa pelo verbo “comprar”, que Jesus recusa.

Também André, que ouvira a pergunta, passa a Jesus a informação de que havia ali um rapazito que tinha cinco pães e dois peixinhos, mas apressou-se a depreciar a sua utilidade, dada a desproporção entre tão pouco alimento e tanta gente (Jo 6,8-9). Também aqui a lógica humana de Filipe o levou a desvalorizar os dons que descobrimos nos outros, sobretudo nos pequeninos. Nem Filipe nem André sabiam tratar-se dum teste. Só o narratário o sabe porque o narrador o informou. Não obstante, acompanharam a ação de Jesus, que reclama atenção e cooperação. Porém, Jesus, que sabia o que fazer, ordenou aos discípulos, estupefactos, que fizessem reclinar (“anapíptô) as pessoas (“ánthrôpoi) para comer (Jo 6,10). João diz que “os homens (“ándres) eram cerca cinco mil” e anota que “havia ali muita erva” (“chórtos) (João 6,10). Depois, Jesus recebeu os pães e, tendo dado graças, distribuiu-os Ele mesmo aos que estavam reclinados à mesa (“anakeiménois). E fez o mesmo com os peixes (paralelo significativo com as narrativas da instituição da Eucaristia). Quer dizer: Jesus recolheu a informação de André dos pães e dos peixes do rapazito e, ao invés de André, não os depreciou. E, quando todos foram saciados (“eneplêsthêsan), ordenou aos discípulos que reunissem (“synágô) as sobras. O termo grego usado para “sobrar” (“perisseúô) implica o excesso que ultrapassa toda a medida e a abundância que transborda. Informa, pois, João que os pedaços sobrantes encheram 12 cestos (Jo 6,12-13), símbolo da plenitude transbordante e inesgotável.

É de notar que Jesus não fez uma operação de multiplicação, mas de divisão e compartilha. Também no caso da viúva de Sarepta (1Rs 17,17), não houve multiplicação, mas “nem a farinha se acabou na panela, nem o azeite faltou na almotolia”. E agora a surpresa não está no aumento da quantidade do pão, mas em abrir os olhos aos discípulos, que só conhecem a lógica de vender e comprar, não chegando a saborear a lógica da gratuitidade, a do Pai que faz nascer o sol para bons e maus, e que leva a crer na força do dom e ir pelo mundo consumista a partir o pão e a dividi-lo sabendo que se instaura assim o necessário para todos e a superabundância da graça. Porém, a multidão não viu esta superabundância, antes se tornou  materialmente dependente de Jesus: procurava-O por toda a parte (Jo 6,24) como fonte de rendimento. Por isso, ao encontrá-Lo no “outro lado do mar” (Jo 6,25), é recriminada por Jesus por O ter procurado, não por ter visto sinais, mas por haver comido dos pães e se ter enchido (“chortázô”) (Jo 6,26). E instou ao trabalho, “não pelo alimento que perece, mas pelo que permanece até à vida eterna” (Jo 6,27).

A pergunta “Onde compraremos pão para que eles comam?” tem resposta na pergunta-resposta formulada por Simão Pedro a Jesus, quando Ele perguntava aos Doze se também O queriam abandonar como os outros judeus e até alguns dos discípulos por causa do discurso do Pão da Vida ou da carne e sangue de Jesus, núcleo central do capítulo 6 do 4.º Evangelho. Pedro disse: “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna(Jo 6,68).

Com a resposta petrina, fica evidente a conjunção entre palavra e alimento. Mas falta a conexão com o “comprar”, usado por Jesus. E o Bispo de Lamego menciona esta passagem de Isaías:

Todos vós, que tendes sede, vinde às águas! Vós, que não tendes dinheiro, vinde! Comprai (“agorázô” LXX) cereal e comei! Comprai cereal sem dinheiro, e sem pagar, vinho e leite. (…) Ouvi-me, ouvi-me, e comei o que é bom!” (Is 55,1-2).

Então “comprar” fica desligado do dinheiro. E a lição de Isaías esclarece a disjunção mostrada por Jesus entre “o alimento que perece” e “o que permanece até à vida eterna”. O que perece é erva ou feno (“chórtos), que se compra a dinheiro, nos cala a boca e enche (“chortázô) o estômago; e o que permanece é a palavra que Deus diz, que nós ouvimos e recebemos e a que respondemos. Mas esta disjunção, a que se pode acrescentar a anotação de que “havia muita erva ali (Jo 6,10), pode ficar mais bem explicitada com outro passo de Isaías:

Toda a carne é erva (“chórtos LXX) e toda a sua graça como a flor do campo. Seca a erva (“chórtos LXX) e murcha a flor, mas a palavra do Senhor permanece para sempre.” (Is 40,6.8).

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E Paulo lembra, na Carta aos Efésios (Ef 4,1-6), que a fome não é só de pão, mas também de paz, amor e unidade. E a matar estas fomes, lá está um só Senhor, um único Espírito, um só Deus e Pai de todos. Assim, a comunidade unida e reunida sabe partilhar e resolve todas as fomes.

2021.07.25 – Louro de Carvalho

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