sábado, 31 de julho de 2021

Leem porque têm de ler, não tanto por prazer como é desejável

 

De acordo com Roland Barthes, in “O Prazer do Texto”, se lemos com prazer uma história, texto, frase ou palavra, é porque tal foi escrito no prazer. Porém, escrever no prazer não assegura ao escritor o prazer do leitor. O escrevente, que procura o leitor sem saber onde ele está, cria “um espaço de fruição”, lança a “possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute”. E diz o sociólogo e semiólogo que “a tagarelice do texto é apenas essa espuma de linguagem que se forma sob o efeito de uma simples necessidade de escritura”, nunca da ótica da perversão, mas na linha da procura. Com efeito, “escrevendo o seu texto, o escrevente adota uma linguagem de criança de peito: imperativa, automática, sem afeto, pequena debandada de cliques (esses fonemas lácteos que o jesuíta maravilhoso, van Ginneken, colocava entre a escritura e a linguagem), que “são os movimentos de uma sucção sem objeto, de uma oralidade indiferenciada, separada da que produz os prazeres da gastrosofia e da linguagem”.

Como o escritor, também o editor tem relevante papel na promoção do gosto da leitura por parte do potencial leitor. Assim, Maria do Rosário Pedreira, num pequeno artigo intitulado “O prazer de ler”, refere que, se lhe perguntam na qualidade de editora, como frequentemente sucede, “o que precisa de ter um livro para ser publicado ou o que é que um bom livro tem que não se encontre num mau livro”, não tem resposta imediata para nenhuma destas duas questões e não consegue avançar “apenas com o feeling de que aquele autor vai acabar por vingar ou o simples faro, a intuição” de estar perante “um livro que vai dar que falar”. Todavia, segundo diz, uma editora australiana, a Text Publishing, “sem oferecer definições ou propostas, apresenta uma formulação para o gesto de publicar”: “Publicamos livros para dar prazer, para mudar o tema da conversa e para pôr algo novo no mundo”. Assim se conclui que, tal como o escrevente, o editor de grande fôlego gosta de que os livros que publica gerem um espaço de prazer afetivo e efetivo para o leitor, ou seja, “dar prazer acima de tudo”. Resta saber se os leitores também procuram isso. Afigura-se que o maior problema esteja em que muita gente não associa a leitura ao prazer, mas a um frete e a posse do livro a uma obrigação ou mostra exibicionista de estatuto económico e social. Quantos livros são apenas adorno nas prateleiras de estantes das bibliotecas particulares! Ler queima as pestanas…

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Ora, os últimos 10 anos têm mostrado que os alunos gostam menos de ler. Leem menos livros de ficção, revistas ou jornais por quererem. Como aponta a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), “os alunos leem mais para satisfazer necessidades práticas e leem mais online na forma de chats, notícias online ou sites com informações práticas”.

Tal como em anos anteriores, o questionário contextual do PISA 2018 (Programme for International Students Assessment 2018) perguntava aos alunos de 15 anos (que participam nos testes do PISA) quanto tempo costumam passar a ler livros, revistas, jornais, sites, blogues e emails para se divertirem.

Os dados mostram que, entre 2000 e 2009, o tempo passado a ler por prazer diminuiu, mas aumentou o tempo de leitura, embora lentamente, entre 2009 e 2018 – o que contrasta com a diminuição do prazer da leitura, entre 2009 e 2018. Na Áustria, Hungria, Portugal, Sérvia e Tailândia – bem como em média na OCDE – os alunos mostraram menos prazer a ler, mas mais horas de leitura em 2018 por comparação a 2009. Para os autores do relatório 21st-Century Readers: Developing Literacy Skills in a Digital World, divulgado em junho passado, “esses resultados sugerem que menos horas de leitura estão associadas a menos prazer, ou nenhuma mudança, enquanto longas horas de leitura nem sempre se traduzem em mais prazer”. E os alunos relataram ler menos por lazer e também ler menos livros de ficção, revistas ou jornais porque quererem, por oposição a terem que ler. Leem mais para satisfazer necessidades práticas e leem mais online na forma de chats, notícias online ou sites com informações práticas” – realidade “provavelmente associada a mais tempo gasto a ler e à estagnação do prazer”.

As respostas mostram que não só o prazer de ler, como o formato de leitura (em papel ou em suporte digital) pode influenciar o gosto de ler. Porém, além destes, há mais fatores, como “a experiência anterior de leitura e os ambientes de aprendizagem em casa e na escola”, que “também afetam o prazer de leitura”. E sabe-se que estão intimamente dependentes o envolvimento e desempenho na leitura, como assegura a OCDE, que cita vários estudos que reforçam esta ideia. Assim, os autores do relatório em causa afirmam que “os alunos que leem regularmente para se divertirem têm mais oportunidades de melhorar as suas competências de leitura por meio da prática”. Todavia, advertem que, se ler por prazer melhora a leitura, “alunos com dificuldades sentem-se menos competentes e ficam menos motivados a ler por prazer”.

No PISA 2018, um em cada 4 (28%) alunos “concordou” ou “concordou fortemente” que “ler é um desperdício de tempo”.  No entanto, “o índice de prazer de leitura pode ser particularmente sensível a diferenças culturais no estilo de resposta”. Portanto, “as comparações dentro dos países são mais aconselháveis do que a comparação entre os países”.  

Em todos os países e economias que participaram no PISA em 2018, as raparigas relatam níveis muito mais elevados de prazer na leitura que os rapazes. Todavia, o género, não é o único fator de diferenças no índice de prazer de leitura dentro dos países. Outro fator é a origem socioeconómica é: os alunos mais favorecidos leem mais por prazer.

Os alunos que leem com mais livros em papel que em suporte digital têm melhor desempenho na leitura e passam mais tempo a ler por prazer. Comparados com os alunos que raramente ou nunca leem livros, os leitores de livros digitais nos países da OCDE leem por prazer cerca de 3 horas a mais por semana. Os leitores de livros impressos leem cerca de quatro horas. E os que equilibram os dois formatos cerca de 5 horas ou mais por semana. Os dados foram obtidos depois de controladas as variáveis relativas ao contexto socioeconómico e ao género.

Apenas 8,7% dos alunos nos países da OCDE conseguem desempenhos elevados (níveis 5 ou 6) no teste de leitura do PISA. Ou seja, compreendem textos extensos, lidam com conceitos abstratos ou contraintuitivos e estabelecem distinções entre facto e opinião com base em pistas implícitas no conteúdo ou relacionadas com a fonte da informação. Cerca de 49% dos alunos “leem apenas se for necessário”. No PISA de 2000 eram 36%. Um em cada 3 alunos “raramente ou nunca” lê livros. Também um em cada 3 lê com mais frequência em papel que em formato digital. Cerca de 15% afirma o inverso: lê mais em dispositivos digitais. Leem nos dois formatos, de forma igual, cerca de 13% dos alunos inquiridos.

Ora, comparados aos alunos que raramente ou nunca leem livros, os alunos que leem com mais frequência livros em papel pontuam mais 49 pontos nos testes de leitura; os alunos que leem com mais frequência livros em dispositivos digitais pontuaram apenas 15 pontos a mais. E os alunos que leem livros em dispositivos digitais com mais frequência têm o mais das vezes origem imigrante e condição socioeconómica desfavorecida. Assim acontece em 20% dos alunos imigrantes em comparação com 14% dos não imigrantes e a 16% dos desfavorecidos, por comparação a 13% dos alunos favorecidos. O formato digital também é mais usado entre rapazes (15%) do que entre raparigas (14%).

Ler com prazer é importante para ajudar os alunos a desenvolver competências de leitura. Por isso, a OCDE está preocupada com a diminuição significativa do índice de prazer da leitura registada entre 2009 e 2018 em 1/3 dos 70 países e economias participantes no PISA, pois “essa queda na valorização da leitura pode afetar as competências de leitura e a equidade, visto que o prazer da leitura medeia a relação entre contexto socioeconómico e desempenho em leitura”. Ora, contrariar esta tendência passa por dar às crianças e jovens o exemplo do que é ser leitor. E isto implica, segundo relatório em causa não apenas os professores como também os pais nesta tarefa, pois uns e outros são “modelos importantes para os hábitos de leitura”.

Na verdade, os alunos cujos pais gostam de ler têm um índice mais alto de gosto de leitura. Um aumento de uma unidade no índice de prazer de leitura dos pais está associado, em média, a um aumento de 0,05 no prazer de leitura dos rapazes e 0,11 das raparigas. Em média, nos países da OCDE, os alunos que falam com os pais sobre o que leem ou vão com eles à livraria ou à biblioteca pelo menos uma vez por semana têm um índice de prazer de leitura mais alto em 0,13 e 0,10, respetivamente. Efetivamente lê-se no relatório:

Os pais desempenham um papel crucial na transmissão de atitudes positivas em relação à leitura em casa desde a infância. As atividades do dia a dia que os pais realizam estão altamente correlacionadas com a aprendizagem inicial e o desenvolvimento socioemocional das crianças”.

Exemplos de tais atividades são ler para as crianças quase todos os dias e fornecer-lhes livros. E, segundo as evidências do PISA, “os pais que são observados a ler ou que endossam a visão de que a leitura é prazerosa estão associados às atividades de leitura das crianças em casa, à motivação e ao desempenho da leitura”.

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Rogério Araújo, num artículo “O prazer de ler um bom livro”, admite que muita gente tem aversão à leitura. E aventa a hipótese de a razão estar em não ter aprendido a decifrar bem as letrinhas e ter má relação com a leitura, pois não compreende pelo pouco vocabulário que tem.

Entretanto, considera “um prazer inigualável” gostar de “abrir um livro, passar suas páginas uma a uma e ler, envolvendo-se com a história, viajando pela imaginação, reportando-se às personagens, interagindo com elas”. Para tanto, há inúmeros géneros de texto e para todos os gostos: poesia, conto, crónica, novela, romance e, para relativamente poucos, o ensaio. Também o mix de géneros, um dentro do outro, tem o seu valor e os seus admiradores.

Hoje há todo o tipo de livro que se imagina. E sobressaem as biografias, com exemplos de vidas contados para nosso crescimento; as memórias, enquanto mostra de prazer em contar o que se supõe os outros não saberem ou, para alguns, como ajuste de contas sobre comportamentos desconhecidos; a autoajuda, a dar a mão à vida das pessoas e que vende milhões de exemplares como se resolvessem os problemas dos leitores; ficção ou romance, para quem deseja viajar, sonhar, dar asas à imaginação; e a dissertação, que leva o leitor à reflexão de temas relevantes e que servem de alerta para a vida. Uns gostam dum determinado género que outros odeiam. O que realmente importa é ler e de verdade, não apenas passar os olhos nas palavras, folhear páginas, sem se dar conta do poder que tem entre mãos, mas voar como águia rumo ao infinito. Muitos livros infantis, mesmo dirigidos a crianças que já devem saber ler, anestesiam os pequenos leitores com muitas figuras, desenhos, imagens, mas quase nada de leitura, como se não se soubesse do gosto que a criança tem ao descobrir pela leitura a história que as imagens sugerem. Serão pretensamente coisas da idade, mas que, segundo Araújo, podem e devem ser um pouco substituídas por “imagens” na forma escrita que “transcendem as letras e levam à fantasia, ao fazer a mente criar situações como se estivesse na história”.

Pegar um livro de ficção com mais de 500 páginas para ler, sendo um best seller é algo raro, mas muito saboroso e realizador, pois a vida não pode ser feita só de realidade, a invenção do real é necessária. Para os antigos, a ciência do inútil, a perda de tempo, o ócio, o poder ter nada para fazer é, como deseja André Rosa (vd “Evasões”, de 30 de julho), “um bem enorme para arejar a cabeça, esquecendo momentaneamente dos problemas” e é “um lazer bem interessante”.

Ler por ler não interessa. Quando alguém quer armar-se em intelectual, culto ou amigo de ler, não cumpre o papel primordial do livro, que é “envolver o leitor e fazê-lo pensar e assimilar o que ali está escrito”. E, em tempos de modernidade, sendo o papel substituído por equipamentos como, entre outros, o tablet, o ipad, o smartphones, o livro não fica “ameaçado” de acabar como muitos predizem, tende, antes, a ser ampliado e existir em formatos diferentes, mas de grande valia, como os e-books. Bill Gates, dono da Microsoft, que programou alta tecnologia no computador que mudou o rumo do mundo, disse que os seus filhos terão computadores, mas antes terão livros, pois “sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever – inclusive a sua própria história”.

Se alguém quer ler uma obra em edição digital ao invés de impressa, que leia. O que não pode é ficar sem ler nada por preguiça e deixar de crescer e usufruir do prazer e ler um bom livro.

Ler por obrigação ou para dar conta do recado leva à leitura em diagonal e leitura de resumos.

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O Plano Nacional de Leitura 2027 (PLN 2027) referia, em setembro de 2020, que “ler é um prazer”, mas só para alguns, ou seja, por exemplo para quem cresceu entre livros, conquistou o gosto pela leitura e descobriu que o livro guarda dentro de si outros mundos, pessoas, lugares, tempos, memórias e outras formas de ser, de estar, de sentir, de comunicar, de rir... – descoberta intimamente ligada à preservação da capacidade de espanto que carateriza a infância e alimenta a vontade de continuar a ler por prazer, não por obrigação.

É como sucede com outras atividades do nosso quotidiano, por exemplo comer ou fazer exercício físico. Comer é prazer para quem desde cedo aprendeu a distinguir o sabor dos alimentos; fazer exercício físico é prazer para quem cresceu a fazer cambalhotas e pinos, a jogar à bola e a correr atrás dos amigos. Estas atividades, à partida naturais, implicam uma decisão e uma prática. Na leitura, tal decisão e prática dependem muito de quem nos rodeia: família, amigos, professores... Se quem nos rodeia tem a capacidade de nos contaminar com leituras que nos alimentem a curiosidade e estimulem a imaginação, de certeza que cresceremos leitores.

A isto vem o PNL Plano Nacional de Leitura fornecer coordenadas para a leitura se tornar um prazer, sugerindo livros capazes de entusiasmar não só os já leitores, mas também os que ainda não o são. É um mapa, útil em qualquer viagem, mas sobretudo por territórios desconhecidos, que pode ser usado para orientar leitores de todas as gerações e dar pistas para que famílias e professores saibam o que partilhar com os leitores mais novos e até entre si.

Essa orientação – troca de experiência de leitura entre professores, famílias, alunos, amigos – é essencial para formar leitores e para, no meio dos milhares de livros publicados em Portugal, distinguir os melhores. A leitura implica essa prática e essa conquista.

2021.07.31 – Louro de Carvalho

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