É o alerta de Renata Alves, diretora da “Comunidade Vida e Paz” em entrevista à Renascença
e à Ecclesia no passado dia 4 de
julho.
Desde logo, assinalou que, tendo chegado ao fim a presidência
portuguesa da UE (União Europeia), um dos marcos desta reta
final foi o lançamento da “Plataforma Europeia de Combate à Situação de
Sem-Abrigo” pela Declaração
de Lisboa, que foi assinada por todos os Estados-Membros e também por
representantes das instituições europeias, organizações da sociedade civil e
parceiros sociais.
Considerando que a Ministra
do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social afirmou que esta Plataforma
representa “um salto de gigante” para garantir o acesso de todos à habitação, à
saúde e a outros direitos, a entrevistada frisou que a iniciativa foi encarada por todos os intervenientes na área do combate à
situação de sem-abrigo como “uma mais-valia, ao encontro da inclusão”. Com
efeito, pretende-se a possibilidade de “criar e ter a partilha de experiências
de outros países”, no representante a um “comprometimento de todos os
responsáveis políticos, organizações, sociedade civil” e “uma mais-valia”, já
que podemos “disseminar práticas de outros países, que possam ser de alguma
forma introduzidas em Portugal” e permitam combater a desigualdade e favorecer
o respeito pelos direitos das pessoas em situação de sem-abrigo.
Concorda com os
entrevistadores no sentido de que o compromisso de tantas entidades dá a ideia
da dimensão da gravidade do problema, que “só pode ser ultrapassado com a intervenção de todos”: as organizações que
lutam diariamente no combate à situação de sem-abrigo, os responsáveis
políticos, os parceiros sociais e a sociedade civil, bem como o cidadão comum.
Por outro lado, salienta que a pandemia trouxe muito mais pessoas para a
situação de sem-abrigo, prevendo-se que a situação se agravará, pois abranda-se
nos apoios, como no casso da cessação das moratórias ao crédito.
Que há um agravamento do
número pessoas em situação de pobreza extrema tem-se verificado diariamente através das equipas voluntárias de rua e das
equipas técnicas. Mais se regista que o perfil está a alterar-se: para lá das
pessoas em situação de sem-abrigo, que não têm teto, há as pessoas em situação
de grande vulnerabilidade e que vêm procurar ajuda diária, o que é deveras
assustador. Por isso, todas as medidas que possam surgir neste momento são
importantes.
Calculando-se que há na
Europa 700 mil pessoas em situação de sem-abrigo – um aumento de 70% em 10 anos
–, foi estabelecido o ano de 2030 como meta para combater este fenómeno, ou
seja, temos 9 anos, que é muito tempo, visto que as pessoas precisam de sair desta situação. No entanto, há que ter em
conta que, por via dos constrangimentos da pandemia e do agravamento da crise
económico-social, as metas e objetivos iniciais acabaram por ficar
comprometidos. Assim, a meta que, em Portugal, era retirar as pessoas desta
situação até 2023, está afastada.
Ao falarmos de vulnerabilidade, percebemos que “diariamente surgem pessoas
novas na rua” e, retirando “uma, duas pessoas por dia”, nesse dia “retornam, ou
aparecem pessoas em situação de sem-abrigo”, o que torna muito difícil o
desafio.
Relativamente ao que pode ser feito no quadro da Plataforma ora acabada de
lançar, é de realçar que” têm existido mais medidas, desde programas municipais
a medidas por parte do governo”, no atinente à criação de centros de alojamento
temporário de transição, programas de ‘Housing
First’, criação de apartamentos partilhados – que têm vindo a facilitar,
mas tem de haver mais medidas, pois não é suficiente o que há. Obviamente é necessária uma resposta de
emergência, mas o grande objetivo é, com a Plataforma Europeia, encontrar
soluções mais definitivas. Assim, pretende-se conseguir pôr as pessoas
numa situação transitória em que se invista a fim de estarem o menos tempo
possível em transição e se chegue à situação de alojamento permanente. Depois,
requer-se que a tipologia e o enquadramento destes centros comecem a ser
diferentes, já que funcionam melhor para um número de pessoas menor, podendo-se
ir ao encontro de todas as necessidades que as pessoas apresentem, sempre com o
objetivo de se traçar um plano para esta ou aquela pessoa.
Além disso, há que olhar para as problemáticas que as pessoas vão
apresentando. Continuando a ser dominantes as aditivas – consumo de álcool e de
outras substâncias –, podem implicar que durante a estada num alojamento
temporário, a transição permita um trabalho de motivação para a pessoa ir a
tratamento para se reabilitar. Ao mesmo tempo, há pessoas em situação de
desemprego, que precisam de ajuda para conseguirem trabalho. A tudo isto
acresce o aumento do número de pessoas com problemas
de saúde mental, constituindo um desafio muito grande, visto que há poucas
respostas nesta área, sendo importante que sejam criadas muitas mais.
Como isto exigirá decisões
e respostas por parte do Estado, os entrevistadores questionaram a diretora Comunidade Vida e Paz sobre a colaboração entre o Estado central, as autarquias
locais e as organizações, como a Comunidade Vida e Paz, que estão no terreno e,
em particular, sobre a sensibilidade à questão dos sem-abrigo. E Renata
Alves vincou:
“Há sensibilidade
e há cooperação e, por isso, têm existido bastantes parcerias entre o Estado e
as organizações. O caminho terá de ser esse, entre quem define as políticas –
mas que as defina com quem está no terreno – com quem tem conhecimento e
experiência. Só dessa forma é que considero que pode haver mais sucesso na
intervenção com as pessoas em situação de sem-abrigo.”.
Confrontada com a questão
de tal sensibilidade se ter visto ou não no processo de vacinação contra a
covid-19, referiu que, a princípio, não, pois a Comunidade Vida e Paz teve de
fazer alguma pressão para que as pessoas
em situação de sem-abrigo fossem vacinadas, porque tinha conhecimento (não no 1.º
confinamento nem na 1.ª fase da pandemia, mas sobretudo este ano) de que as pessoas em situação de sem-abrigo estavam a
ser mais afetadas pelo vírus, pelo que precisavam de ser vacinadas e ver
salvaguardada a sua saúde, pois, sem acesso aos sistemas de saúde, torna-se
muito difícil olhar por estas pessoas que estão em situação de fragilidade e
vulnerabilidade.
Face ao número de vezes que
o Papa apontou como exemplo de insensibilidade social a falta de atenção às
pessoas em situação de sem-abrigo que morrem de frio na rua e face à
contradição em como “uma medida de confinamento manda para casa quem não tem
casa”, referiu ter sido essa “uma frase
utilizada para a nossa campanha”, uma vez que, além do frio, há outras questões
de que as pessoas não são protegidas, devendo a sociedade em geral estar mais sensibilizada,
mais atenta e “não virar a cara para o lado”. Depois, enfatizou:
“O compromisso
é de todos e deveria ser de todos: a qualquer um pode vir a acontecer uma
situação destas… É muito importante que nos consigamos pôr no lugar do outro,
perceber todas as dificuldades e a falta de acessos: a falta de respeito pelo
direito das pessoas, a falta de dignidade em que muitas vezes as pessoas se
encontram, é lamentável.”.
Como é de público
conhecimento, Francisco vem multiplicando no Vaticano os serviços de alojamento,
saúde e mais condições de conforto para as pessoas sem-abrigo, que se aglomeram
cada vez mais ali por saberem que terão resposta. E Renata Alves considerando
isso um estímulo para quem está no terreno, o exemplo que vem de cima, afirmou
que “muitas das vezes necessitamos mesmo
de procurar estímulos” e energia para não baixarmos os braços, pois “nem sempre
temos as respostas que gostaríamos de ter”. Ora sentir que o Papa lidera em
toda esta problemática, com a sensibilidade que tem, é para qualquer
instituição, uma grande referência.
***
Sobre a Comunidade Vida e Paz, instituição
católica pertencente ao Patriarcado de Lisboa, que há mais de 30 anos se dedica
ao apoio de pessoas sem-abrigo, com equipas de rua a distribuir alimentos, bem
como atenção e afeto, observou:
“Surgiu por
perceber que havia necessidade de intervenção com as pessoas em situação de
sem-abrigo e foram criadas as equipas voluntárias de rua, que todos os dias
atingem cerca de 100 pontos na cidade de Lisboa, incluindo também a Amadora.
São 4 equipas, constituídas, neste momento, por 4 a 5 voluntários, porque
tivemos que reduzir face à situação pandémica em que nos encontramos, por uma
questão de segurança dos próprios.”.
Conta com 600 voluntários para esta intervenção e para tudo o que respeita
à preparação das ceias que se distribuem diariamente e que são uma forma de
chegar às pessoas, pois o grande objetivo e a missão da instituição são a
aposta na relação de confiança para que se possa provocar a mudança e estimular
as pessoas para ela.
Com as restrições sanitárias,
incluindo o uso da máscara – barreira física em termos de imagem e relação –
acresceram as dificuldades no trabalho de assistência na rua. E a entrevistada
vincou:
“No início
sentimos muito isso, até porque tivemos que dar como prioridade, em março do
ano passado, a distribuição da alimentação. Havia muitas pessoas, na altura, a
passar fome, porque tinham sido confinadas e não podiam utilizar os mecanismos
a que estavam habituadas, nomeadamente arrumar carros, dirigir-se à
restauração. Isso fez com que a nossa prioridade fosse a questão da
distribuição alimentar.”.
Na verdade, a preocupação era dar uma ceia a todas as pessoas e teve de se duplicar
o número de ceias a distribuir, pelo que de cerca de 420 ceias se passou em
duas semanas para cerca de 800. De momento, distribuem-se entre 500 a 550 ceias
por dia, mas o foco – porque outras instituições retomaram a sua atividade – é
a intervenção junto da pessoa, para que a consigamos retirar da situação de
sem-abrigo, sendo que o número de pessoas nesta situação aumentou e tende a
crescer por força da crise, o que aumenta a preocupação. É certo que se têm em
conta os programas criados e as respostas que vêm surgindo – que visam compensar
o acréscimo de novas pessoas em situação de sem-abrigo. Contudo, o número
continuará a aumentar.
E Renata Alves anunciou, para 5 de julho passado, a abertura, pela
Comunidade Vida e Paz, de nova resposta, em resultado dum programa lançado pela
Câmara Municipal de Lisboa ao qual concorreu e venceu, que é a criação duma
comunidade integrativa para pessoas em situação de sem-abrigo a funcionar em
regime de alojamento de transição. E, sobre isto, considerou:
“É uma resposta
inovadora, um ponto de viragem. Tendo a Comunidade Vida e Paz tantas respostas
no que diz respeito à intervenção de rua, seja técnica, seja com voluntários,
às comunidades terapêuticas, às comunidades de inserção, aos cinco apartamentos
partilhados, aos seis apartamentos de inserção, esta era uma resposta que
faltava.”.
Permitirá a 40 pessoas em situação de sem-abrigo o acompanhamento de uma
equipa técnica de psicólogos, serviço social, apoio médico, apoio psiquiátrico,
apoio judicial, com o objetivo de apostar na reintegração e no encontro duma
alternativa permanente para essas pessoas. Serão recebidos “homens, mulheres,
casais, pessoas com animais de estimação, pessoas transgénero”.
Sendo resposta diferenciada
em relação aos apartamentos, acompanham-se as pessoas para as retirar desta situação
e elas refazerem a vida. O objetivo
é retirar da rua as pessoas da situação de sem-abrigo e com elas desenhar um
plano para cada pessoa vir a reintegrar-se na sociedade de forma digna, para o
que contará com “todos os serviços que iremos prestar e com uma equipa
multidisciplinar”. Funcionará na Quinta do Lavrado, nas Olaias.
Tendo em conta que se vai criar esta resposta e grande parte do
investimento vai ser suportado pela Comunidade Vida e Paz – cerca de 35% é que
é apoiado pela câmara municipal –, haverá grande impacto no orçamento da
instituição, que está a criar uma campanha para que benfeitores particulares,
empresas apoiem a concretização e desenvolvimento desta unidade.
Basta aceder ao site da instituição e às suas redes sociais ou entrar
em contacto com a sede, para perceberem de que forma podem apoiar.
***
Enfim, em vez da crítica aos sucessos e aos azares da presidência
portuguesa da UE, aí temos uma instituição católica que não perde tempo: pegou
num programa lançado pela Câmara de Lisboa, ora sob fogo cruzado das críticas
políticas, e prepara-se para tirar partido da oportunidade criada pela
Declaração de Lisboa que lançou a
“Plataforma Europeia de Combate à Situação de Sem-Abrigo”, arregaçando as
mangas e trabalhando sem parar. Assim é que é!
2021,07.06 –
Louro de Carvalho
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