terça-feira, 27 de julho de 2021

Faleceu o grande estratego da Revolução dos Cravos

 

Dê por onde der a figura político-militar que se finou no passado dia 25 de julho é a figura de proa da revolução abrilina e como tal deve ser considerada, do meu ponto de vista.

Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho não é das figuras humanas, políticas e militares em que me reveja. Sei dos seus excessos, erros e até ingenuidades. Reconheço as suas contradições em relação ao encaminhamento do percurso político do país. Censuro, na justa medida, as ações criminosas que, pelos vistos, praticou in solidum com outros e compreendo o sofrimento e a revolta das pessoas que tais atos vitimaram. Todavia, não posso deixar de reconhecer, que antes da revolução, apesar da perceção da iniquidade e da falência do regime, foi um militar distinto e cumpridor, mesmo que, por vezes, a contragosto e dotado de grande generosidade.  

Estranho que a cada passo, mormente em cerimónias alusivas à revolução, à liberdade e à democracia, muitos encham a boca com loas aos capitães de abril, mas, aquando do termo da sua missão neste mundo, as entidades estatais se limitem a curvar a cabeça e venerar a suas memórias, endereçar condolências aos familiares e à Associação 25 de Abril, que nem sequer é ouvida previamente para a produção de legislação militar, mas não haja luto nacional, alegadamente para não criar precedentes, nem cerimónia protocolar que o Estado protagonize, ao invés do que tem sucedido com figuras civis consideradas pais ou mães da democracia.

É certo que já faleceram capitães de abril que desempenharam altas funções políticas e militares, como se finaram outros cuja participação na revolução foi eminente e outros cuja participação foi meramente episódica (prender o comandante X, impedir que o comandante Y entrasse no seu regimento ou comandar interinamente a unidade a que pertenciam). Agora, porém, morreu o estratego das operações militares, em termos da preparação e comando operacional. É certo que a revolução andou no ar pela mão de centenas de militares e o programa foi gizado por cérebros eminentes. E, embora o militar destinado ao comando operacional tenha sido Vasco Lourenço, que foi impedido de desempenhar essa missão, já que, por via do abortamento da intervenção de Caldas da Rainha, fora transferido para os Açores, contudo as coisas são como são e as circunstâncias ditam, por vezes, o perfil dos homens. Assim, como responsável pelo setor operacional da Comissão Coordenadora e Executiva do MFA (Movimento das Forças Armadas), elaborou o plano de operações militares do 25 de Abril de 1974. E comandou, assessorado por outros militares, as operações a partir do posto de Comando, instalado no Regimento de Engenharia n.º 1, na Pontinha onde permaneceu desde o fim da tarde de 24 de abril até ao dia 26 de abril de 1974.

Depois da revolução, foi graduado em brigadeiro (mais tarde foi graduado em general de três estrelas) e nomeado Comandante Adjunto do COPCON (Comando Operacional do Continente) e da Região Militar de Lisboa, com polémica atuação durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso).

Integrou o Conselho dos 20 e o Conselho da Revolução (CR), e é considerado um dos elementos mais carismáticos do MFA. Nos anos 1980, participou da luta armada em prol da revolução proletária como membro da organização terrorista Forças Populares 25 de Abril (FP 25), tendo estão preso preventivamente 5 anos e sido condenado a 15 anos de prisão por associação terrorista em 1986. Em 1991, Otelo Saraiva de Carvalho recebeu indulto presidencial pelos seus crimes, que foram amnistiados parlamentarmente em 2004.

Inicia a formação como cadete em 1955, na Escola do Exército, mais tarde Academia Militar (AM). Em 1959, termina o curso e é promovido a aspirante a oficial, fazendo o tirocínio na EPA (Escola Prática de Artilharia) até agosto de 1960. Admira António Sérgio como figura da oposição e Humberto Delgado e toma contacto, devido a uma viagem a Paris,  com as ideias de libertação dos países africanos francófonos.

É promovido a alferes do QPE (Quadro Permanente do Exército) em novembro de 1960. Em 1961, eclode a Guerra Colonial, e embarca para Luanda na sua 1.ª comissão em África a 3 de junho de 1961, como alferes de Artilharia em Angola (1961-1963). Percebe a face negra do colonialismo, diferente da propaganda na Metrópole, e conhece o tenente-coronel de Cavalaria António de Spínola, com quem se cruzará várias vezes ao longo da História.

Em 1963 foi nomeado a contragosto instrutor da LP (Legião Portuguesa), múnus que desempenhou só durante dois meses e que lhe permitiu contactar com a realidade do corporativismo e a sua sustentação junto dos pequenos funcionários. Em agosto de 1965, já capitão de Artilharia, parte para a 2.ª comissão em Angola, é colocado em Mucaba, e voltou em setembro de 1967.

Entre 1967 até cerca de 1968 foi professor na Escola Central de Sargentos, em Águeda.

A 16 de setembro de 1970 é colocado na Guiné, na 3.ª comissão, no Quartel-General (QG) do Comando Chefe, para substituir um capitão morto em desastre de helicóptero que também vitimara três deputados da Ala Liberal em visita à Guiné. Ocupa o lugar de chefe da Secção de Radiodifusão e Imprensa da Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, repartição liderada por Lemos Pires, donde pôde ver a guerra do lado dum QG, depois de duas comissões no mato. Com Spínola, agora general e Comandante-Chefe da Forças da Guiné. Otelo muda para a Secção de Ação Psicológica, Subsecção de Operações Psicológicas, em Forte de Amura.

Em junho de 1971 é nomeado para a direção do Centro de Informação e Turismo da Guiné, cargo de que será demitido por Spínola. No mesmo ano, organiza o Congresso do Povo da Guiné e emociona-se com a leitura do programa do PAIGC. Ao longo desta comissão, aumentam a sua consciência política e o seu desgosto pela guerra colonial.

As atividades de contestação ao regime deram-se aquando da preparação do Congresso dos Combatentes do Ultramar (realizado de 1 a 3 de junho de 1973, no Porto). Exigiu, com os outros oficiais em Bissau, a participação de oficiais do QP, participando na recolha de cerca de 400 assinaturas em documento em que declaravam que o congresso não os representava. A pari, houve várias ações em Lisboa encabeçadas por Eanes, Hugo dos Santos e Vasco Lourenço.

Foi depois um dos principais dinamizadores do movimento de contestação ao Decreto-lei n.º 353/73, de 13 de julho, que originou o Movimento dos Capitães (MC), que depois se transformou em MFA e que faria entrar para o QP das Forças Armadas (FA), como capitães ou majores, muitos com qualificação e tempo de aprendizagem inferiores às dos oficiais do quadro, o que levou a grande descontentamento da maioria dos elementos do QP. Em Bissau foi criada a CMC (Comissão do Movimento dos Capitães), em que Otelo teve papel de relevo, tendo angariado 51 assinaturas, enviando-as à Metrópole e fazendo uma exposição ao Ministro do Exército, a 7 de setembro de 1973. Reunidos em Évora, 136 capitães assinam um documento semelhante, seguidos por 94 em Angola e 106 em Moçambique. A contestação foi tal que o decreto foi revogado (e um seguinte ‘resolvia’ o problema dos majores), mas, o movimento já estava lançado.

Acabada a comissão na Guiné, a 1 de setembro de 1973, Otelo é promovido a major, passando a ter grande ligação com os outros membros do MC em Lisboa, enquanto ingressa na AM como professor adjunto de Tática de Artilharia, a 15 de novembro. Participa num sem-número de reuniões, que acontecem em sua casa ou nas de outros oficiais. A 1 de dezembro de 1973, há um plenário em Óbidos mascarado de confraternização e é criado o MOFA (Movimento de Oficiais das Forças Armadas), cujo nome, por razões óbvias mudaria para MFA dias antes do 25 de Abril por sugestão de Spínola (que aceito o programa e depois quer alterações). E Otelo pertence à direção.

Nessa altura, o Movimento tinha como principal objetivo garantir o prestígio das FA. A situação agudizou-se com os incidentes em Vila Pery (Moçambique), a 14 de janeiro de 1974, em que o exército foi insultado pela população. Estava a preparar-se um programa do movimento. Foi de José Maria Azevedo, mas, a 6 de fevereiro de 1974, é tido por insuficiente e foi nomeada uma comissão de redação, com Costa Brás, Melo Antunes, José Maria Azevedo e Sousa e Castro. A 5 de março, surge documento político do MOFA, que ficou a ser trabalhado por Melo Antunes e outros. O documento político final foi apresentado a Otelo e aos outros a 20 de abril de 1974.

Após o fracasso das Caldas a 16 de março, em que vários militares foram presos e Otelo não o foi por um triz, tomou a seu cargo desenhar o plano militar de operações que originou o golpe militar de abril. Vítor Alves e Hugo dos Santos discordavam do plano, mas anuíram. Otelo acreditava no sucesso em 12 horas com uma probabilidade de 80%. Além de ter feito inúmeros contactos com antigos colegas e conhecidos, distribuiu, na tarde do dia 23, os aparelhos de rádio necessários para assegurar as transmissões dos revoltosos.

Otelo teve grande atividade de contactos e troca de informações com muitos elementos das FA. No atinente à Marinha, Almada Contreiras menciona passeios de trabalho ao longo do passeio de Santa Apolónia em vários meses antes do 25 de Abril.

Responsável pelo setor operacional da Comissão Coordenadora do MFA, dirigiu as operações do 25 de Abril a partir do posto de comando, já dito. Foi, pois, além do estratego, o comandante militar do 25 de Abril. Entre as decisões que teve de tomar, junto com os outros militares ali presentes, conta-se a aceitação de que fosse Spínola a receber o poder das mãos de Marcelo Caetano, em vez de alguém do MFA. Spínola telefona a Otelo, que apresenta a questão aos outros que lá estavam, incluindo Vítor Alves e Franco Charais. E autoriza Spínola a representar o MFA, do que será criticado mais tarde por outros elementos do MFA (vg: Vasco Lourenço).

Otelo seguiu de perto os acontecimentos do Largo do Carmo, até escrevendo a ordem manuscrita para Salgueiro Maia iniciar o fogo contra o Quartel do Carmo.

Um dos poucos objetivos do Plano Geral de Operações do 25 de Abril que não foi atingido foi a tomada da PIDE/DGS por um grupo de comandos, devido à recusa de Jaime de a tentar, o que levou à alteração do Plano final e a variadas demarches no seio das FA afetas ao 25 de Abril.

Após o 25 de Abril, Otelo quer voltar à vida de professor, mas os acontecimentos precipitam-se e é chamado pelos outros elementos do MFA a participar nas decisões e no futuro do país. Em junho de 1974, Spínola (presidente da República), nomeou-o Comandante-Adjunto do COPCON (em setembro passou a ter na prática o comando) sob a dependência do General Francisco da Costa Gomes, CEMGFA (Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas), cargo que acumulou com o de Comandante da Região Militar de Lisboa, tomando posse a 13 de julho.

Na véspera de 28 de setembro, Otelo foi convocado por Spínola para o Palácio de Belém, onde ficou detido até que poder ir para o COPCON às 3 da manhã. Vasco Lourenço conseguiu forçar a volta física do Otelo ao COPCON, com um ultimato de que senão o MFA atacaria Belém. Spínola é sucedido na Presidência por Costa Gomes e vê gorado o seu projeto de poder pessoal.

A 11 de março de 1975, um golpe spinolista para tomar o poder, marcado pela desorganização nas FA, resultou no assalto ao RALIS pelos paraquedistas, que foi rapidamente neutralizado.

Entretanto, foi graduado em General de Divisão e passou a ser o comandante do COPCON a 23 de junho. E integrou o CR desde que este foi criado, a 14 de março de 1975 (então como Conselho Superior da Revolução), até dezembro de 1975. A partir de 30 de julho do mesmo ano integra, com Costa Gomes e Vasco Gonçalves, o Diretório, estrutura política de cúpula em que os restantes membros do CR delegaram os seus poderes (mas sem abandonarem o exercício das suas funções).

O seu poder legal era enorme antes de começar a perder o controlo de muitas forças. Em julho, visitou Cuba e discursou, antes de Fidel Castro, na cerimónia do aniversário do ataque ao quartel de Moncada, em Santa Clara. Aí conhece os recém-lançados GDAP (Grupos Dinamizadores de Ação Popular), que o inspiram para o lançamento dos GDUP (Grupos Dinamizadores de Unidade Popular). E pedem a Otelo que transmita a Costa Gomes a pergunta sobre se Cuba deve intervir em Angola e apoiar o MPLA ou se deverá ser Portugal a fazê-lo.

Durante o Verão Quente, ficou célebre a carta de Otelo a Vasco Gonçalves que dizia: “Agora, companheiro, separamo-nos (...) Peço-lhe que descanse, repouse, serene, medite e leia”.

Terá sido Otelo quem sugeriu Pinheiro de Azevedo como Primeiro-Ministro do VI Governo Provisório (tinha sido ele quem sugerira Vasco Gonçalves), após ter recusado a sugestão de Vasco Gonçalves de ser Otelo. E foi Pinheiro de Azevedo, com o Grupo dos Nove, que tirou o poder das mãos de Otelo ao criar o AMI (Agrupamento Militar de Intervenção), comandado por Melo Egídio.

Com o ultimato a Costa Gomes pelo VI Governo Provisório, Otelo foi substituído por Vasco Lourenço como comandante da Região Militar de Lisboa, o que Otelo aceitou. Entretanto, os paraquedistas ocupam bases aéreas e exigem a demissão do CEMFA (Chefe do Estado-Maior da Força Aérea), o que marca o início do golpe de 25 de Novembro, rapidamente neutralizado por um grupo militar liderado por Ramalho Eanes. E Otelo, representante sa ala radical do MFA, viria a ser preso, mas foi solto passados três meses. Participou na criação dos GDUP, que se formaram por todo o país e apoiaram a sua candidatura à Presidência da República. E, embora vencido por Eanes, Otelo continuou seu amigo. Depois das presidenciais, voltou a ser militar no ativo e, por ter participado numa sessão preparatória da criação do MUP (Movimento de Unidade Popular), que não chegou a ser criado, e ter proferido declarações aos jornalistas à saída, foi castigado com 20 dias de prisão disciplinar agravada por Rocha Vieira, CME (Chefe do Estado-Maior do Exército)

***

Todos reconhecem o papel do líder da revolução, mas dizem que é cedo fazer a sua história de vida por mor dos erros e desvios. Assim, Governo e Presidente decidiram pelo não luto nacional com receio de isso cair mal em setores do país. Só me pergunto que revolução não teve desvios e excessos e que políticos não cometem erros. Por isso e como os erros de Otelo já foram justiçados, quer pelo eleitorado, quer pelos tribunais, seria este o momento de o colocar na História e, por ele, homenagear a sério os obreiros de Abril, o que deveria ter sido feito aquando da publicação da Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro, que extinguiu o CR. Tem, pois, razão Alegre ao querer luto nacional por Otelo e Eanes ao defender que Otelo tem direito a um “lugar de proeminência histórica”, pois “foi ele quem liderou a preparação operacional do 25 de Abril, a mobilização dos jovens capitães [e] o comando da operação militar bem-sucedida”. Eanes aqui sabe do que fala (a sua tese doutoral é Sociedade Civil e Poder Político em Portugal)!

2021.07.26 – Louro de Carvalho

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