Dê
por onde der a figura político-militar que se finou no passado dia 25 de julho
é a figura de proa da revolução abrilina e como tal deve ser considerada, do
meu ponto de vista.
Otelo
Nuno Romão Saraiva de Carvalho não é das figuras humanas, políticas e militares
em que me reveja. Sei dos seus excessos, erros e até ingenuidades. Reconheço as
suas contradições em relação ao encaminhamento do percurso político do país. Censuro,
na justa medida, as ações criminosas que, pelos vistos, praticou in solidum com outros e compreendo o
sofrimento e a revolta das pessoas que tais atos vitimaram. Todavia, não posso
deixar de reconhecer, que antes da revolução, apesar da perceção da iniquidade e
da falência do regime, foi um militar distinto e cumpridor, mesmo que, por
vezes, a contragosto e dotado de grande generosidade.
Estranho
que a cada passo, mormente em cerimónias alusivas à revolução, à liberdade e à
democracia, muitos encham a boca com loas aos capitães de abril, mas, aquando
do termo da sua missão neste mundo, as entidades estatais se limitem a curvar a
cabeça e venerar a suas memórias, endereçar condolências aos familiares e à
Associação 25 de Abril, que nem sequer é ouvida previamente para a produção de
legislação militar, mas não haja luto nacional, alegadamente para não criar
precedentes, nem cerimónia protocolar que o Estado protagonize, ao invés do que
tem sucedido com figuras civis consideradas pais ou mães da democracia.
É
certo que já faleceram capitães de abril que desempenharam altas funções políticas
e militares, como se finaram outros cuja participação na revolução foi eminente
e outros cuja participação foi meramente episódica (prender
o comandante X, impedir que o comandante Y entrasse no seu regimento ou
comandar interinamente a unidade a que pertenciam). Agora, porém, morreu o
estratego das operações militares, em termos da preparação e comando
operacional. É certo que a revolução andou no ar pela mão de centenas de
militares e o programa foi gizado por cérebros eminentes. E, embora o militar
destinado ao comando operacional tenha sido Vasco Lourenço, que foi impedido de
desempenhar essa missão, já que, por via do abortamento da intervenção de
Caldas da Rainha, fora transferido para os Açores, contudo as coisas são como
são e as circunstâncias ditam, por vezes, o perfil dos homens. Assim, como responsável
pelo setor operacional da Comissão Coordenadora e Executiva do MFA (Movimento
das Forças Armadas),
elaborou o plano de operações militares do 25 de Abril de 1974. E comandou, assessorado
por outros militares, as operações a partir do posto de Comando, instalado no
Regimento de Engenharia n.º 1, na Pontinha onde permaneceu desde o fim da tarde
de 24 de abril até ao dia 26 de abril de 1974.
Depois da
revolução, foi graduado em brigadeiro (mais tarde foi graduado em general de três estrelas) e nomeado Comandante Adjunto do
COPCON (Comando
Operacional do Continente) e da Região Militar de Lisboa, com polémica atuação durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso).
Integrou o Conselho
dos 20 e o Conselho da Revolução (CR),
e é considerado um dos elementos mais carismáticos do MFA. Nos anos 1980,
participou da luta armada em prol da revolução proletária como membro
da organização terrorista Forças Populares 25 de Abril (FP 25), tendo estão preso preventivamente 5 anos e sido
condenado a 15 anos de prisão por associação terrorista em
1986. Em 1991, Otelo Saraiva de Carvalho recebeu indulto presidencial
pelos seus crimes, que foram amnistiados parlamentarmente em 2004.
Inicia a
formação como cadete em 1955, na Escola do Exército, mais tarde Academia
Militar (AM). Em 1959, termina o curso e é promovido a aspirante
a oficial, fazendo o tirocínio na EPA (Escola Prática de Artilharia) até agosto de 1960. Admira António Sérgio como
figura da oposição e Humberto Delgado e toma contacto, devido a uma viagem a
Paris, com as ideias de libertação dos países africanos francófonos.
É promovido
a alferes do QPE (Quadro Permanente do Exército) em novembro de 1960. Em 1961, eclode a Guerra
Colonial, e embarca para Luanda na sua 1.ª comissão em África a 3 de junho
de 1961, como alferes de Artilharia em Angola (1961-1963). Percebe a face negra do colonialismo, diferente da
propaganda na Metrópole, e conhece o tenente-coronel de Cavalaria António
de Spínola, com quem se cruzará várias vezes ao longo da História.
Em 1963 foi
nomeado a contragosto instrutor da LP (Legião Portuguesa), múnus que desempenhou só durante dois meses e que lhe
permitiu contactar com a realidade do corporativismo e a sua sustentação junto
dos pequenos funcionários. Em agosto de 1965, já capitão de Artilharia,
parte para a 2.ª comissão em Angola, é colocado em Mucaba, e voltou em
setembro de 1967.
Entre 1967
até cerca de 1968 foi professor na Escola Central de Sargentos, em Águeda.
A 16 de setembro
de 1970 é colocado na Guiné, na 3.ª comissão, no Quartel-General (QG) do Comando Chefe, para substituir um capitão morto em
desastre de helicóptero que também vitimara três deputados da
Ala Liberal em visita à Guiné. Ocupa o lugar de chefe da Secção de
Radiodifusão e Imprensa da Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica,
repartição liderada por Lemos Pires, donde pôde ver a guerra do lado dum
QG, depois de duas comissões no mato. Com Spínola, agora general e
Comandante-Chefe da Forças da Guiné. Otelo muda para a Secção de Ação
Psicológica, Subsecção de Operações Psicológicas, em Forte de Amura.
Em junho de
1971 é nomeado para a direção do Centro de Informação e Turismo da Guiné, cargo
de que será demitido por Spínola. No mesmo ano, organiza o Congresso do
Povo da Guiné e emociona-se com a leitura do programa do PAIGC. Ao longo
desta comissão, aumentam a sua consciência política e o seu desgosto pela
guerra colonial.
As
atividades de contestação ao regime deram-se aquando da preparação do Congresso
dos Combatentes do Ultramar (realizado de 1 a 3 de junho de 1973, no Porto). Exigiu, com os outros oficiais em Bissau, a
participação de oficiais do QP, participando na recolha de cerca de 400
assinaturas em documento em que declaravam que o congresso não os representava.
A pari, houve várias ações em Lisboa
encabeçadas por Eanes, Hugo dos Santos e Vasco Lourenço.
Foi depois
um dos principais dinamizadores do movimento de contestação ao Decreto-lei n.º
353/73, de 13 de julho, que originou o Movimento dos Capitães (MC), que depois se transformou em MFA e que faria
entrar para o QP das Forças Armadas (FA), como capitães ou majores, muitos com qualificação e tempo de aprendizagem
inferiores às dos oficiais do quadro, o que levou a grande descontentamento da
maioria dos elementos do QP. Em Bissau foi criada a CMC (Comissão do
Movimento dos Capitães), em que
Otelo teve papel de relevo, tendo angariado 51 assinaturas, enviando-as à
Metrópole e fazendo uma exposição ao Ministro do Exército, a 7 de setembro
de 1973. Reunidos em Évora, 136 capitães assinam um documento semelhante,
seguidos por 94 em Angola e 106 em Moçambique. A contestação foi tal que o decreto
foi revogado (e um seguinte ‘resolvia’ o problema dos majores), mas, o movimento já estava lançado.
Acabada a
comissão na Guiné, a 1 de setembro de 1973, Otelo é promovido a major,
passando a ter grande ligação com os outros membros do MC em Lisboa, enquanto
ingressa na AM como professor adjunto de Tática de Artilharia, a 15
de novembro. Participa num sem-número de reuniões, que acontecem em sua casa ou
nas de outros oficiais. A 1 de dezembro de 1973, há um plenário em Óbidos mascarado
de confraternização e é criado o MOFA (Movimento de Oficiais das Forças
Armadas), cujo nome, por razões óbvias mudaria
para MFA dias antes do 25 de Abril por sugestão de Spínola (que aceito
o programa e depois quer alterações). E Otelo pertence
à direção.
Nessa
altura, o Movimento tinha como principal objetivo garantir o prestígio das FA.
A situação agudizou-se com os incidentes em Vila Pery (Moçambique), a 14 de janeiro de 1974, em que o exército foi
insultado pela população. Estava a preparar-se um programa do movimento. Foi de
José Maria Azevedo, mas, a 6 de fevereiro de 1974, é tido por insuficiente e foi
nomeada uma comissão de redação, com Costa Brás, Melo Antunes, José Maria Azevedo
e Sousa e Castro. A 5 de março, surge documento político do MOFA, que ficou a
ser trabalhado por Melo Antunes e outros. O documento político final foi
apresentado a Otelo e aos outros a 20 de abril de 1974.
Após o
fracasso das Caldas a 16 de março, em que vários militares foram presos e Otelo
não o foi por um triz, tomou a seu cargo desenhar o plano militar de operações
que originou o golpe militar de abril. Vítor Alves e Hugo dos Santos
discordavam do plano, mas anuíram. Otelo acreditava no sucesso em 12 horas com
uma probabilidade de 80%. Além de ter feito inúmeros contactos com antigos
colegas e conhecidos, distribuiu, na tarde do dia 23, os aparelhos de rádio
necessários para assegurar as transmissões dos revoltosos.
Otelo teve
grande atividade de contactos e troca de informações com muitos elementos das
FA. No atinente à Marinha, Almada Contreiras menciona passeios
de trabalho ao longo do passeio de Santa Apolónia em vários meses
antes do 25 de Abril.
Responsável
pelo setor operacional da Comissão Coordenadora do MFA, dirigiu as
operações do 25 de Abril a partir do posto de comando, já dito. Foi,
pois, além do estratego, o comandante militar do 25 de Abril. Entre as decisões
que teve de tomar, junto com os outros militares ali presentes, conta-se a
aceitação de que fosse Spínola a receber o poder das mãos de Marcelo
Caetano, em vez de alguém do MFA. Spínola telefona a Otelo, que apresenta a
questão aos outros que lá estavam, incluindo Vítor Alves e Franco Charais. E
autoriza Spínola a representar o MFA, do que será criticado mais tarde por
outros elementos do MFA (vg: Vasco Lourenço).
Otelo seguiu
de perto os acontecimentos do Largo do Carmo, até escrevendo a ordem manuscrita
para Salgueiro Maia iniciar o fogo contra o Quartel do Carmo.
Um dos
poucos objetivos do Plano Geral de Operações do 25 de Abril que não foi
atingido foi a tomada da PIDE/DGS por um grupo de comandos, devido à recusa
de Jaime de a tentar, o que levou à alteração do Plano final e a
variadas demarches no seio das FA afetas ao 25 de Abril.
Após o 25 de
Abril, Otelo quer voltar à vida de professor, mas os acontecimentos precipitam-se
e é chamado pelos outros elementos do MFA a participar nas decisões e no futuro
do país. Em junho de 1974, Spínola (presidente da República), nomeou-o Comandante-Adjunto do COPCON (em
setembro passou a ter na prática o comando) sob a dependência do General Francisco da Costa Gomes, CEMGFA (Chefe do
Estado-Maior General das Forças Armadas), cargo que
acumulou com o de Comandante da Região Militar de Lisboa, tomando posse a 13 de
julho.
Na véspera
de 28 de setembro, Otelo foi convocado por Spínola para o Palácio de
Belém, onde ficou detido até que poder ir para o COPCON às 3 da manhã. Vasco
Lourenço conseguiu forçar a volta física do Otelo ao COPCON, com um ultimato de
que senão o MFA atacaria Belém. Spínola é sucedido na Presidência por Costa
Gomes e vê gorado o seu projeto de poder pessoal.
A 11 de
março de 1975, um golpe spinolista para tomar o poder, marcado pela
desorganização nas FA, resultou no assalto ao RALIS pelos paraquedistas, que
foi rapidamente neutralizado.
Entretanto,
foi graduado em General de Divisão e passou a ser o comandante do
COPCON a 23 de junho. E integrou o CR desde que este foi criado, a 14 de
março de 1975 (então como Conselho Superior da Revolução), até dezembro de 1975. A partir de 30 de julho do mesmo ano integra, com
Costa Gomes e Vasco Gonçalves, o Diretório, estrutura política de cúpula em
que os restantes membros do CR delegaram os seus poderes (mas sem
abandonarem o exercício das suas funções).
O seu poder
legal era enorme antes de começar a perder o controlo de muitas forças. Em
julho, visitou Cuba e discursou, antes de Fidel Castro, na cerimónia do
aniversário do ataque ao quartel de Moncada, em Santa Clara. Aí conhece os
recém-lançados GDAP (Grupos Dinamizadores de Ação Popular), que o inspiram para o lançamento dos GDUP (Grupos Dinamizadores
de Unidade Popular). E pedem a
Otelo que transmita a Costa Gomes a pergunta sobre se Cuba deve intervir em
Angola e apoiar o MPLA ou se deverá ser Portugal a fazê-lo.
Durante o Verão
Quente, ficou célebre a carta de Otelo a Vasco Gonçalves que dizia: “Agora, companheiro, separamo-nos (...)
Peço-lhe que descanse, repouse, serene, medite e leia”.
Terá sido
Otelo quem sugeriu Pinheiro de Azevedo como Primeiro-Ministro do VI
Governo Provisório (tinha sido ele quem sugerira Vasco Gonçalves), após ter recusado a sugestão de Vasco Gonçalves de
ser Otelo. E foi Pinheiro de Azevedo, com o Grupo dos Nove, que tirou
o poder das mãos de Otelo ao criar o AMI (Agrupamento Militar de Intervenção),
comandado por Melo Egídio.
Com o
ultimato a Costa Gomes pelo VI Governo Provisório, Otelo foi substituído por
Vasco Lourenço como comandante da Região Militar de Lisboa, o que Otelo aceitou.
Entretanto, os paraquedistas ocupam bases aéreas e exigem a demissão do CEMFA (Chefe do
Estado-Maior da Força Aérea), o que marca
o início do golpe de 25 de Novembro, rapidamente neutralizado por um grupo
militar liderado por Ramalho Eanes. E Otelo, representante sa ala radical
do MFA, viria a ser preso, mas foi solto passados três meses.
Participou na criação dos GDUP, que se formaram por todo o país e apoiaram a sua
candidatura à Presidência da República. E, embora vencido por Eanes, Otelo
continuou seu amigo. Depois das presidenciais, voltou a ser militar no ativo e,
por ter participado numa sessão preparatória da criação do MUP (Movimento
de Unidade Popular), que não
chegou a ser criado, e ter proferido declarações aos jornalistas à saída, foi
castigado com 20 dias de prisão disciplinar agravada por Rocha Vieira, CME
(Chefe do
Estado-Maior do Exército).
***
Todos reconhecem
o papel do líder da revolução, mas dizem que é cedo fazer a sua história de vida
por mor dos erros e desvios. Assim, Governo e Presidente decidiram pelo não
luto nacional com receio de isso cair mal em setores do país. Só me pergunto que
revolução não teve desvios e excessos e que políticos não cometem erros. Por isso
e como os erros de Otelo já foram justiçados, quer pelo eleitorado, quer pelos tribunais,
seria este o momento de o colocar na História e, por ele, homenagear a sério os
obreiros de Abril, o que deveria ter sido feito aquando da publicação da Lei
Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro, que extinguiu o CR. Tem, pois,
razão Alegre ao querer luto nacional por Otelo e Eanes ao defender que Otelo tem
direito a um “lugar de proeminência histórica”, pois “foi ele quem liderou a
preparação operacional do 25 de Abril, a mobilização dos jovens capitães [e] o
comando da operação militar bem-sucedida”. Eanes aqui sabe do que fala (a sua tese doutoral é “Sociedade
Civil e Poder Político em Portugal”)!
2021.07.26 – Louro de Carvalho
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