Com
a publicação da Carta Apostólica em forma de Motu Proprio “Traditionis custodes” sobre o uso da Liturgia Romana anterior à
Reforma de 1970, o Santo Padre limita a celebração da Missa segundo o Missal de
São Pio V, reformado por São João XXIII em 1962, lamentando os abusos, o
crescimento dos grupos que o usam esse missal e o aproveitamento dele por alguns
para descredibilizar a ortodoxia do Missal elaborado no espírito do Concílio
Vaticano II, promulgado por São Paulo VI e revisto por São João Paulo II.
Desde logo, o preâmbulo considera que os
Bispos, como guardiões da tradição em
comunhão com o Papa, são o princípio visível e o fundamento da unidade nas
Igrejas particulares a eles confiadas, governando-as sob a orientação do
Espírito Santo, mediante o anúncio do Evangelho e a celebração da Eucaristia.
Assinala que, em nome da concórdia e da unidade, com solicitude paternal, São
João Paulo II e Bento XVI concederam e regulamentaram a faculdade de utilizar o
Missal Romano de 1962, para “facilitar a comunhão eclesial aos católicos
que se sentem ligados às formas litúrgicas anteriores” e não a outras.
Por iniciativa de Bento XVI de convidar os bispos para avaliação da
aplicação do Motu Proprio “Summorum
Pontificum”, três anos após a sua publicação, a CDF (Congregação para a Doutrina da Fé) fez uma ampla consulta aos bispos em 2020, cujos resultados foram considerados
à luz da experiência entretanto acumulada. Pelo que, atendendo ao desejo do
episcopado e ouvida a CDF, para continuar ainda mais na busca da comunhão
eclesial, Francisco estabelece:
Os livros litúrgicos promulgados por São Paulo VI e São João Paulo II de
acordo com os decretos conciliares são a única expressão da lex orandi do
Rito Romano.
Ao Bispo diocesano, enquanto responsável pela regulamentação das celebrações
litúrgicas na diocese, compete em exclusivo autorizar o uso do Missale
Romanum de 1962 na diocese, seguindo as orientações da Sé Apostólica.
Os Bispos, nas dioceses em que até agora haja um ou mais grupos que
celebram segundo aquele missal, devem: verificar que esses grupos não excluem a
validade e a legitimidade da reforma litúrgica, dos ditames do Vaticano II e do
Magistério dos Sumos Pontífices; indicar um ou mais lugares onde tais fiéis
possam reunir para a celebração da Eucaristia (não nas igrejas
paroquiais nem erigindo novas paróquias pessoais); fixar no local indicado os dias de permissão das
celebrações eucarísticas com a utilização daquele Missal, devendo, em tais
celebrações, as leituras ser proclamadas em vernáculo, utilizando as traduções
da Sagrada Escritura para uso litúrgico, aprovadas pela Conferência Episcopal;
nomear um sacerdote que, como delegado do bispo, se encarregue das celebrações
e da pastoral desses grupos, o qual deve ser idóneo para a tarefa, competente
no uso do Missale Romanum de 1962, ter conhecimento do latim
que lhe permita compreender as rubricas e os textos litúrgicos e ser animado
por viva caridade pastoral e sentido de comunhão eclesial, pois é necessário
que se preocupe com a digna celebração da liturgia e com o bem pastoral e
espiritual dos fiéis; proceder, nas paróquias pessoais erigidas em benefício
destes fiéis, a adequada avaliação da sua utilidade para o crescimento
espiritual, ponderando se as mantém ou não; e acautelar a não criação de mais
grupos desses.
Os sacerdotes ordenados após a publicação do presente Motu proprio,
que desejem celebrar com o Missale Romanum de 1962, devem
apresentar pedido formal ao Bispo diocesano, que consultará a Sé Apostólica antes
de conceder a autorização; os que já celebram segundo esse Missal, pedirão ao
Bispo diocesano autorização para continuar a manter aquela faculdade; os Institutos
de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica instituídos pela
Pontifícia Comissão Ecclesia Dei passam a ser da competência
da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica;
e a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos e a
Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida
Apostólica, para os assuntos da sua competência, exercerão a autoridade da
Santa Sé, velando pela observância destas disposições.
Revogam-se as regras, instruções, concessões e costumes anteriores que não
se enquadrem no disposto neste Motu
Proprio.
***
À
semelhança do que fez Bento XVI com o “Summorum Pontificum”, Francisco
enviou uma carta aos Bispos de todo o mundo para apresentar o “Traditionis custodes” e explicar as razões que o levaram a tal
decisão. E fê-lo com confiança e parrésia em nome da partilhada “solicitude
por toda a Igreja, que muito contribui para o desenvolvimento da Igreja universal”,
como recorda o Vaticano II (vd LG 23).
A
faculdade de usar o Missal Romano promulgado por São Pio V e editado por São
João XXIII para a celebração do Sacrifício Eucarístico, concedida por indulto
da Congregação para o Culto Divino em 1984 e confirmada por São João Paulo
II no Motu proprio “Ecclesia Dei”, de
1988, foi motivada pelo desejo de recomposição do cisma com o movimento do Arcebispo
Lefebvre, acolhendo as justas aspirações dos fiéis. Tinha, portanto, um motivo
eclesial: a reconstrução da unidade da Igreja.
Esta
faculdade, interpretada por muitos como a possibilidade de usar livremente o
Missal Romano de São Pio V, resultando em uso paralelo ao do Missal Romano de São
Paulo VI, mereceu a intervenção de Bento XVI, pelo Motu proprio “Summorum Pontificum”, de 2007, para
regular este facto da vida da Igreja, já que muitos sacerdotes e comunidades “usaram
com gratidão a possibilidade oferecida pelo Motu proprio” de São João Paulo II, vincando
que esta evolução não fora prevista em 1988. Assim, Bento XVI quis introduzir
uma “regulamentação jurídica mais clara” para facilitar o acesso daqueles (também jovens) que descobrem esta forma
litúrgica, se sentem atraídos por ela e nela encontram um caminho adequado para
eles em demanda do mistério da Santíssima Eucaristia. Porém,
declarou que o Missal Romano de São Pio V e editado por São João XXIII deve
ser considerado como expressão extraordinária da mesma Lex orandi, concedendo uma possibilidade mais ampla de utilização
desse Missal, convicto de que a medida não poria em causa uma das decisões
essenciais do Concílio Vaticano II, minando a sua autoridade.
Nestes
termos, o Missal promulgado por São Paulo VI é a expressão ordinária da Lex
orandi da Igreja Católica de Rito Latino; e o reconhecimento do Missal
de São Pio V como “expressão extraordinária da própria lex orandi”
não teve a intenção de ignorar a reforma litúrgica, mas foi ditado pelo desejo
de atender aos pedidos destes fiéis, concedendo-lhes que celebrassem o
Sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano promulgado por São
João XXIII, que nunca foi revogado, como forma extraordinária da liturgia da
Igreja.
Bento
XVI declarou como infundado o receio de divisões nas comunidades paroquiais,
pois “as duas formas de utilização do rito romano podem enriquecer-se
mutuamente”. Por isso, instou os bispos a superarem dúvidas e temores e a
abraçarem as normas, “para que tudo se desenvolva em paz e serenidade”, com a
promessa de que “se surgissem sérias dificuldades, buscar-se-iam caminhos para o
remédio ”na aplicação das regras após“ a entrada em vigor do Motu proprio”.
Passados
13 anos, Francisco incumbiu a CDF de enviar aos Bispos um questionário sobre a
aplicação do “Summorum Pontificum”. E
as respostas revelam preocupante situação e postulam a sua intervenção. Infelizmente,
a intenção pastoral dos Sumos Pontífices, que envidaram “todos os esforços para
que todos aqueles que verdadeiramente desejam a unidade possam permanecer nesta
unidade ou reencontrá-la”, o que foi tantas vezes ignorado, levou ao aumento de
distâncias, endurecimento de diferenças e construção de oposições que ferem a
Igreja, lhe impedem o progresso e a expõem ao risco de divisão.
O
Pontífice sente-se magoado com os muitos abusos na celebração da liturgia,
deplorando que em muitos lugares não fosse celebrada de modo fiel às prescrições
do novo Missal, antes fosse entendida como autorização e mesmo como dever de
criatividade, bem como lamentando o uso instrumental do Missal de 1962, cada
vez mais caraterizado pela rejeição da reforma litúrgica e do próprio Vaticano
II, com a alegação de que traiu a Tradição e a “verdadeira Igreja”. Com
efeito, o caminho da Igreja deve ser compreendido no dinamismo da Tradição, “que
deriva dos Apóstolos e progride na Igreja com o auxílio do Espírito Santo” (DV 8). E o Vaticano II
constitui a mais recente fase deste dinamismo, em que o episcopado católico se
pôs à escuta para discernir o caminho que o Espírito indicava à
Igreja. Duvidar do Concílio é duvidar intenções dos Padres, que exerceram
solenemente o seu poder colegial cum Petro et sub Petro e, em
última instância, duvidar do próprio Espírito Santo que guia a Igreja.
No
Concílio Vaticano II, que ilumina a decisão de rever a concessão dada pelos predecessores
de Francisco, entre os votos que os Bispos assinalaram
com maior insistência está o da participação plena, consciente e ativa de todo
o Povo de Deus na liturgia conforme o que o Venerável Pio XII afirmou na
encíclica “Mediator Dei”, sobre
a renovação da liturgia. E a Constituição “Sacrosanctum Concilium” confirmou tal voto deliberando
sobre “a promoção e reforma da Liturgia” e indicando os princípios que a
devem nortear. E dispôs que tais princípios se referiam ao rito romano,
enquanto, para os demais ritos legitimamente reconhecidos, pediu que fossem “integralmente
revistos com prudência, de acordo com a sã tradição e lhes fosse dado novo
vigor, tendo em conta as circunstâncias e necessidades de hoje” (SC 4). Assim, com base
nestes princípios, fez-se a reforma litúrgica, que tem a sua expressão máxima
no Missal Romano, publicado na editio typica por São Paulo
VI e revisto por São João Paulo II. Portanto, o rito romano,
adaptado várias vezes ao longo dos séculos às necessidades dos tempos, não só
foi preservado, como foi renovado seguindo fielmente a tradição. E quem
desejar celebrar com devoção segundo a forma litúrgica anterior encontra no
Missal Romano, reformado segundo o Vaticano II, todos os elementos do Rito
Romano, especialmente o Cânone Romano, que é um de seus elementos mais caraterísticos.
Depois,
é cada vez mais evidente nas palavras e atitudes de muitos a estreita relação
entre a escolha das celebrações de acordo com os livros litúrgicos anteriores ao
Vaticano II e a rejeição de Igreja e suas instituições em nome do que dizem ser
a “verdadeira Igreja”, comportamento que contradiz a comunhão,
alimentando aquele impulso de divisão “Eu
sou de Paulo; eu sou da Apollo; eu sou de Cefas; Eu pertenço a
Cristo” – contra o que o apóstolo reagiu com firmeza. É para defender a unidade
do Corpo de Cristo que o Papa se obriga a revogar a faculdade concedida pelos seus
predecessores. O uso distorcido que dela se vem fazendo contraria os
motivos que levaram à concessão da liberdade de celebrar a Missa com o Missale
Romanum de 1962. Como “as ações litúrgicas não são ações privadas, mas
celebrações da Igreja, que é sacramento da unidade, devem realizar-se em
comunhão com a Igreja, estando na Igreja com o corpo e o coração. E
Francisco recorda aos Bispos que a “Sacrosanctum
Concilium” explicou que a Igreja é sacramento da unidade porque é “um povo
santo reunido e ordenado sob a direção dos Bispos” (SC 3). E a “Lumen Gentium”, recordando que o Bispo
de Roma “é o fundamento perpétuo e a unidade visível tanto dos Bispos como da
multidão dos fiéis”, afirma que os Bispos são “a fonte visível e o fundamento
da unidade nas suas Igrejas particulares nas quais e com base na qual a Igreja
Católica se constitui” (LG 23).
Assim,
o Santo Padre vem considerar os livros litúrgicos promulgados pelos Santos
Pontífices Paulo VI e João Paulo II, de acordo com os decretos do Concílio
Vaticano II, como única expressão da lex orandi do Rito
Romano. Com efeito, também após o Concílio de Trento, São Pio V revogou
todos os ritos não dotados de comprovada antiguidade, estabelecendo um
único Missale Romanum para toda a Igreja latina, que foi, durante
4 séculos, a principal expressão da lex orandido Rito Romano,
cumprindo uma função unificadora na Igreja. Sem contrariar a dignidade e a
grandeza desse rito, os Bispos reunidos num concílio ecuménico apelaram à sua
reforma para que os fiéis “não assistissem a este mistério da fé como estranhos
e mudos espectadores, mas, entendendo-o através dos ritos e orações,
participassem consciente, piedosa e ativamente na ação sagrada” e se
permitisse à Igreja elevar, na variedade de línguas, “uma mesma oração”
expressando a sua unidade, unidade que deve ser restabelecida em toda a Igreja
de Rito Romano.
O
Vaticano II, ao descrever a catolicidade do Povo de Deus, recorda que na
comunhão eclesiástica há legitimamente Igrejas particulares, que gozam das suas
tradições, permanecendo intocável o primado da cátedra de Pedro, que preside à
assembleia universal da caridade, protege as diferenças legítimas e garante que
elas sirvam à unidade em vez de a prejudicarem. Neste sentido, o Papa pede a
cada Bispo que partilhe este encargo como forma de participação na solicitude
por toda a Igreja, cabendo-lhe, segundo o Motu Proprio, regular as celebrações
litúrgicas. Portanto, cabe aos Bispos, como ordinários locais, autorizar
nas suas Igrejas o uso do Missal Romano de 1962, aplicando as normas do Motu
Proprio e, acima de tudo, trabalhar pelo retorno a uma forma unitária de
celebração, verificando caso a caso a realidade dos grupos que celebram com
aquele Missale Romanum .
As
indicações sobre o modo de proceder nas dioceses são ditadas por dois
princípios: prover ao bem dos que estão enraizados na forma anterior de
celebração e precisam de tempo para retornar ao atual Rito Romano; e
interromper a ereção de novas paróquias pessoais, ligadas mais ao desejo e à
vontade de cada um dos sacerdotes do que à necessidade real do Povo de Deus.
Mais
compete ao Bispo assegurar que cada liturgia seja celebrada com decoro e
fidelidade aos livros litúrgicos promulgados depois do Concílio Vaticano II,
sem excentricidades e abusos, no que devem ser
educados os seminaristas e os novos presbíteros.
Seja!
2021.07.17
– Louro de Carvalho
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