sábado, 17 de julho de 2021

Derrota jurídica, mas vitória política

 

Pelo seu Acórdão n.º 545/2021, de 14 de julho, o Tribunal Constitucional (TC), dado a conhecer através de comunicado também de 14 de julho, declarou, a pedido do Governo, e como se esperava, a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da Lei n.º 16/2021, de 7 de abril, que aditou, por apreciação parlamentar, o art.º 4.º-C ao Decreto-lei n.º 8-B/2021, de 22 de janeiro, na parte em que modifica os artigos 23.º e 24.º do Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de março e, ainda, por conexão instrumental, a norma do art.º 2.º da Lei n.º 16/2021, na parte em que adita a alínea b) ao art.º 1.º do Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, com fundamento em violação do disposto no art.º 169.º, n.º 1 e no art.º 167.º, n.º 2, da Constituição; a norma do art.º 2.º da Lei n.º 16/2021, que alterou, por apreciação parlamentar, o art.º 3.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 8-B/2021, com fundamento em violação do disposto no art.º 167.º, n.º 2, da Constituição; e a norma do art.º 2.º da Lei n.º 15/2021, de 7 de abril, que alterou, por apreciação parlamentar, o art.º 3.º, n.os 1 e 6 do Decreto-lei n.º 6-E/2021, de 15 de janeiro, com fundamento em violação do disposto nos artigos 13.º e 167.º, n.º 2, da Constituição.

Em suma, o TC chumbou a aprovação de leis da Assembleia da República (AR) que, à revelia do Governo, aumentam a despesa pública em apoios sociais, constituindo tal decisão uma salutar reafirmação do valor da estabilidade orçamental assegurada pela “norma-travão e uma clara derrota política das oposições que aprovaram tais diplomas numa coligação antigovernamental, bem como do Presidente da República (PR), que as promulgou, com base numa sua abstrusa “interpretação conforme à Constituição”, sem nenhuma consistência num exercício fútil de “ficção constitucional”, no entendimento de Vital Moreira.

O Primeiro-Ministro tinha pedido que o TC se manifestasse sobre a constitucionalidade dos reforços dos apoios sociais, sobretudo os que implicavam reforço dos apoios aos trabalhadores independentes e sócios-gerentes. Assim, os juízes consideraram, por unanimidade, que as medidas violavam a “norma-travão”, que impede a AR de tomar a iniciativa de aprovar medidas que aumentem a despesa no ano corrente. É certo que observaram que não era possível o custo das medidas ser o referido pelo Governo que, em alguns casos, poderia levar à triplicação do valor da prestação, mas, por outro lado, reiteraram que são “vedadas” à AR “as iniciativas legislativas que importem aumento de despesa pública, independentemente da incerteza sobre o seu montante”, no ano da execução do Orçamento do Estado (OE). E foram mais longe ao dizer que tais propostas nem deveriam ser aceites pela mesa da AR. Esta decisão é, por isso, decisiva, politicamente. António Costa governa em minoria e pretendeu, com estes recursos, que fiquem claros os direitos de um governo minoritário. Aliás, Tiago Antunes, Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro referiu que as normas abriam “um precedente grave de imprevisibilidade, instabilidade e insegurança”, sendo que o TC deu agora uma “garantia de estabilidade política indispensável para viabilizar a existência de governos minoritários”, contra as coligações negativas na AR, pois quem governa é o Governo, não a AR.

***

Perante o predito acórdão, o PR admite a derrota, mas diz que valeu a pena a promulgação do alargamento dos apoios sociais, pois os portugueses não ficaram desprotegidos neste período.

Marcelo já tinha dito que “ganhava sempre” e reagiu ao chumbo do TC aos apoios sociais por si promulgados como quem arrecada uma vitória, dizendo:

Todos os efeitos sociais que importava garantir foram garantidos e garantidos a tempo, quando cada dia valia por uma eternidade”.

E sublinhou que o acórdão salvaguarda que quem recebeu apoios não tem de os devolver, que o novo decreto-lei do Governo mantém “praticamente tudo” e que “não era possível melhor solução”, concluindo pela derrota jurídica, mas vitória política.

Com efeito, revisitando o que disse há dois meses (“ganho sempre”) ao ser questionado sobre o risco de ter uma derrota junto do TC, é de recordar que o PR via garantidas quatro virtualidades: mostrar que as instituições constitucionais funcionam; não questionar a parte em que uma das leis já não seria aplicável (a telescola logo, na altura, terminada)não atingir o essencial, os apoios económicos mais importantes, pois o Governo elaborou um decreto-lei a cobrir matéria das leis da AR; e ressalvar, por parte do TC, os efeitos já produzidos pelas leis.

E, remetendo para o decreto-lei aprovado pelo Governo a apoiar o decretado na AR, concluiu:

Assim aconteceu: as leis foram, em 3 dos 5 pontos suscitados, declaradas inconstitucionais – numa apreciação que não é a minha, mas, obviamente, respeito – e todos os efeitos sociais úteis, que importava garantir, foram garantidos, e garantidos a tempo, durante mais de três meses, o que me parecia fundamental (…) Prosseguem para futuro.”.  

Na verdade, o acórdão do TC que dá razão ao Governo, apesar de declarar inconstitucionais tais diplomas por violarem o teto de despesa previsto no OE, salvaguarda “por motivos de segurança jurídica e de equidade” os direitos produzidos “até à publicação deste acórdão em Diário da República pelas normas que declarou inconstitucionais”. Assim, quem beneficiou dos apoios em causa não os devolverá. Eram três tipos de apoios e um deles – o apoio aos pais devido à suspensão das aulas presenciais – já deixou de ter efeito. Os outros dois eram o apoio excecional à família e apoios sociais extraordinários aos trabalhadores independentes e empresários em nome individual. Só estes últimos ainda estão em vigor e deixarão de ser aplicados logo que a decisão do Palácio Ratton for publicada em Diário da República, o que sucederá nos próximos dias. Para o PR, serão compensados pelos que o Governo, motu proprio, entretanto aprovou.

A par da derrota jurídica junto do TC, que chumbou por unanimidade os diplomas promulgados pelo PR dando assim razão ao Primeiro-Ministro, que sempre considerou os apoios em causa violadores da Constituição, Marcelo observa que ganhou política e socialmente. Efetivamente os preditos apoios resultaram duma ‘coligação negativa’ de todos os partidos da oposição a que o PR deu total cobertura por entender que a situação de crise pandémica, social e económica que o país atravessa os justificava inteiramente. Como Professor de Direito Constitucional, Marcelo preparou-se para o que sabia inevitável, mas jogou politicamente no sentido que entendeu justificar-se, até porque tinha advertido as oposições para o risco de eventuais novas coligações negativas que violem a “norma-travão”, que impede iniciativas de deputados que impliquem aumentos de despesa ou cortes de receita não previstos nos OE.

Como é que o PR diz que teve ganho político, se o TC o contradisse na especialidade (ciência política e direito constitucional) e se num segundo mandato presidencial não lhe quadram ambições de ascensão a novo cargo político? Quererá, com o finca-pé com o Governo, ficar bem na selfie com os descontentes? Terá esperança de repor no poder executivo a área política liderada pelo partido de que foi líder? Prematura ideia a partir das sondagens e que não o abona mais que os antecessores! E, a este respeito, Vital Moreira, no blogue “Causa Nossa”, comenta:    

Lamentável é a despropositada reação do Presidente da República a este acórdão, que não só insiste na sua posição rotundamente ‘chumbada’ pelo Tribunal, mas também clama uma ‘vitória política’, com base no argumento de que, mercê da salvaguarda dos efeitos entretanto produzidos pelas referidas leis, decretada pelo TC (como é usual), conseguiu o que desejava com a promulgação abusiva dos diplomas, ou seja, fazer realizar a referida despesa pública adicional, assim sobrepondo o seu juízo político ao do Governo em matéria de políticas públicas, à custa do atropelo da Constituição”.

E, pondo os pontos nos ii, esclarece:

Ora, no nosso sistema constitucional, quem governa é o Governo, não a Assembleia da República, nem muito menos o Presidente da República”.

Vital Moreira interpela o PR no sentido de se, “após esta incontornável decisão do TC”, irá, em futuros casos semelhantes, “suscitar a questão prévia da constitucionalidade ou vai continuar a promulgar tais diplomas, como fez neste caso”. E, assinalando a asserção do BE de que o acórdão não tem efeito, pois, “quanto a efeitos práticos, assim é, por causa da salvaguarda, pelo TC, dos efeitos entretanto produzidos e do facto de o Governo ter assumido a realização da despesa envolvida, como estava no seu poder”, pergunta:

Depois de o TC ter consolidado o entendimento constitucional de que a AR não pode aumentar a despesa pública durante a execução do orçamento, vai o Bloco continuar a propor e a aprovar medidas dessas, afrontando o TC?”.

***

Porém, o PR continua, no lastro da alegada vitória política, a promulgar diplomas da AR dando cobertura a coligações negativas na AR.

Está neste caso a promulgação, em 2 de julho, do decreto da AR sobre ensino artístico, publicado como Lei n.º 46/2021, de 13 de julho, que determina a abertura: dum concurso de vinculação extraordinária de docentes das componentes técnico-artísticas do ensino artístico especializado para o exercício de funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, nos estabelecimentos públicos de ensino; e dum processo negocial com as estruturas sindicais, para aprovação dum regime específico de seleção e recrutamento de docentes daquele ensino.

E, pelas razões invocadas aquando da promulgação do predito decreto da AR e, como fez noutras ocasiões em que o Parlamento aprovou soluções de caráter programático, na fronteira da delimitação de competências administrativas, como no caso da Lei do OE 2021, em ambos os casos, pacificamente, fazendo doutrina, o PR promulgou o Decreto n.º 158/XIV da AR que procede à revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente do ensino básico e secundário, determinando a abertura dum processo negocial com as estruturas sindicais para a revisão do regime de recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário estabelecido pelo Decreto-lei n.º 132/2012, de 27 de junho.

***

Respaldado pela vitória jurídica no TC contra a leitura do PR e da oposição, o Governo quer partir para outra guerra constitucional, por mais aquelas duas medidas aprovadas pela AR e já promulgadas por Marcelo. Considera o Governo que os dois diplomas violam a Constituição no atinente à separação de poderes e, por isso, apenas aguarda o que o PR faria com o último diploma, o mais pesado por interferir com a vida de milhares de professores, para tomar a decisão de pedir a fiscalização sucessiva da constitucionalidade.

Segundo o Executivo, os dois diplomas não podiam ser aprovados pelos deputados por não estarem na sua esfera de competência e violarem a “reserva de administração”. É esta norma que está em causa no que poderá ser o novo pedido de Costa ao TC, contra algo decidido pela oposição à revelia do Executivo e com a chancela do PR. Quer, pois, embalado pela decisão do TC, travar os ímpetos do que Tiago Antunes chamou “governo de Assembleia” e disse:

Quem governa é o Governo, o Parlamento fiscaliza a ação governativa, apoiando ou censurando, mas não se substitui ao Governo”.

E, abrindo a porta a novo pedido, declarou:

Se for necessário, fá-lo-emos. É o normal funcionamento do Estado de direito.”.

A sustentar a tese de que estas medidas “interferem com o domínio específico da atuação governamental”, há um acórdão de 2011, base jurídica para a defesa de que “violam a jurisprudência do TC”, apesar de os diplomas não especificarem um regime de recrutamento (2.º caso) ou definirem o concurso (1.º caso) e de só inscreverem a obrigação de negociação com os sindicatos. Isto porque o tal acórdão que analisou a suspensão do modelo de avaliação de desempenho de professores aprovado por uma coligação contra o Governo Sócrates, analisou também a norma em que a AR definia para o Governo a obrigação de iniciar o processo de negociação sindical para um novo modelo, tendo o TC considerou que enfermava de “violação do princípio de separação e interdependência de poderes” pois o Governo é constitucionalmente o “órgão superior da administração pública” e “é autónomo no exercício da função governativa e da função administrativa”. Assim, a AR, não pode dar ordens neste aspeto, tendo de recorrer a outros expedientes, como projetos de resolução. Contudo, aquele acórdão teve votos vencidos e declarações de voto, o que pode levar a que uma nova composição do TC (a votar a 22 de Julho com 3 juízes indicados pelo PSD e um pelo PS) tenha outras interpretações.

Qualquer que seja a inclinação maioritária do TC, Marcelo não viu razões para não promulgar os diplomas. O argumento utilizado para a promulgação do primeiro decreto da AR e de outras leis consideradas constitucionalmente “na fronteira”, os “interesses superiores em causa”, foi novamente invocado. Para Marcelo a jurisprudência não é clara em matéria de competências administrativas do Governo. Mas sobretudo o rumo suas decisões vai para lá das avaliações meramente jurídicas. E, segundo Belém, a linha do Presidente tem, alegadamente, sido salvar o que pode em função dos interesses superiores em causa, pois já seguiu este princípio quando, o ano passado, havia dúvidas constitucionais sobre o OE 2021 e este acabou promulgado. O próprio Marcelo disse em público, quando rebentou o conflito com o Governo por causa do diploma dos apoios sociais, que só na base duma avaliação flexível do que estava em jogo ele pôde assinar alguns Orçamentos. E, agora, Belém avisa: “O Governo tem de pensar duas vezes, porque se vai ser assim tão rígido tem que acautelar melhor os Orçamentos de Estado” e publicar o decreto de execução orçamental, que não é publicado há dois anos.

***

Formalmente haveria violação da separação de poderes e invasão da AR, se o Governo tivesse regulamentado estas matérias por decreto regulamentar, caso do apreciado pelo predito acórdão de 2011. Porém, ao invés do preceituado no art.º 24.º do ECD (estatuto da carreira docente), legislou ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º 198.º da CRP, em concorrência com a AR. Em termos materiais e como diz Catarina Martins, pelo menos, o 2.º diploma define princípios, cabendo ao Governo regulamentar. E os princípios são: respeito pela graduação profissional e eliminação de ultrapassagens; vinculação de docentes contratados, mais célere e sistemática; inclusão dos horários incompletos para efeitos de mobilidade interna; e alteração dos intervalos horários.

Todavia, parece excessiva constitucionalmente a imposição de negociação com os sindicatos e a definição de um prazo de 30 dias. Veremos o que decidirá o TC!

Por fim, gostava de saber como é que Marcelo fez doutrina e pacificamente, se foi contraditado nos pressupostos e teve pé de ferro como Costa? Como continua a substituir-se ao TC? Mal é quando o académico quer protagonizar a governação…

2021.07.16 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário