Pelo seu Acórdão n.º
545/2021, de 14 de julho, o Tribunal Constitucional (TC), dado a
conhecer através de comunicado também de 14 de julho, declarou, a pedido do Governo, e como se esperava, a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, da Lei n.º 16/2021,
de 7 de abril, que
aditou, por apreciação parlamentar, o art.º 4.º-C ao Decreto-lei n.º 8-B/2021,
de 22 de janeiro, na parte em que modifica os artigos 23.º e 24.º do Decreto-lei
n.º 10-A/2020, de 13 de março e, ainda, por conexão instrumental, a norma do
art.º 2.º da Lei n.º 16/2021, na parte em que adita a alínea b) ao
art.º 1.º do Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, com fundamento em
violação do disposto no art.º 169.º, n.º 1 e no art.º 167.º, n.º 2, da
Constituição; a norma do art.º 2.º da Lei n.º 16/2021, que alterou, por apreciação
parlamentar, o art.º 3.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 8-B/2021, com fundamento em
violação do disposto no art.º 167.º, n.º 2, da Constituição; e a norma do art.º
2.º da Lei n.º 15/2021, de 7 de abril, que alterou, por apreciação parlamentar,
o art.º 3.º, n.os 1 e 6 do Decreto-lei n.º 6-E/2021, de 15 de
janeiro, com fundamento em violação do disposto nos artigos 13.º e 167.º, n.º
2, da Constituição.
Em suma, o
TC chumbou a aprovação de leis da Assembleia da República (AR) que, à revelia do Governo, aumentam a despesa
pública em apoios sociais, constituindo tal decisão uma salutar
reafirmação do valor da estabilidade orçamental assegurada pela “norma-travão” e uma clara derrota política das
oposições que aprovaram tais diplomas numa coligação antigovernamental, bem
como do Presidente da República (PR), que as
promulgou, com base numa sua abstrusa “interpretação conforme à
Constituição”, sem nenhuma consistência num exercício fútil de “ficção
constitucional”, no entendimento de Vital Moreira.
O Primeiro-Ministro tinha pedido que o TC se manifestasse
sobre a constitucionalidade dos reforços dos apoios sociais, sobretudo os que
implicavam reforço dos apoios aos trabalhadores independentes e
sócios-gerentes. Assim, os juízes consideraram, por unanimidade, que as medidas
violavam a “norma-travão”, que impede
a AR de tomar a iniciativa de aprovar medidas que aumentem a despesa no ano
corrente. É certo que observaram que não era possível o custo das medidas ser o
referido pelo Governo que, em alguns casos, poderia levar à triplicação do
valor da prestação, mas, por outro lado, reiteraram que são “vedadas” à AR “as
iniciativas legislativas que importem aumento de despesa pública, independentemente
da incerteza sobre o seu montante”, no ano da execução do Orçamento do Estado (OE). E foram mais longe ao dizer que tais propostas nem
deveriam ser aceites pela mesa da AR. Esta decisão é, por isso, decisiva,
politicamente. António Costa governa em minoria e pretendeu, com estes
recursos, que fiquem claros os direitos de um governo minoritário. Aliás, Tiago
Antunes, Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro referiu que as
normas abriam “um precedente grave de imprevisibilidade, instabilidade e insegurança”,
sendo que o TC deu agora uma “garantia de estabilidade política indispensável
para viabilizar a existência de governos minoritários”, contra as coligações
negativas na AR, pois quem governa é o Governo, não a AR.
***
Perante o predito acórdão, o PR admite a derrota, mas diz que
valeu a pena a promulgação do alargamento dos apoios sociais, pois os
portugueses não ficaram desprotegidos neste período.
Marcelo já
tinha dito que “ganhava sempre” e reagiu ao chumbo do TC aos apoios sociais por
si promulgados como quem arrecada uma vitória, dizendo:
“Todos os
efeitos sociais que importava garantir foram garantidos e garantidos a tempo,
quando cada dia valia por uma eternidade”.
E sublinhou que o acórdão salvaguarda que quem recebeu apoios não tem de os
devolver, que o novo decreto-lei do Governo mantém “praticamente tudo” e que
“não era possível melhor solução”, concluindo pela derrota jurídica, mas
vitória política.
Com efeito, revisitando o que disse há dois meses (“ganho
sempre”) ao ser questionado sobre o risco de
ter uma derrota junto do TC, é de recordar que o PR via garantidas quatro
virtualidades: mostrar que as instituições constitucionais
funcionam; não questionar a parte em que uma das leis já não seria aplicável (a telescola logo, na altura, terminada); não atingir
o essencial, os apoios económicos mais importantes, pois o Governo
elaborou um decreto-lei a cobrir matéria das leis da AR; e ressalvar, por parte do TC, os efeitos
já produzidos pelas leis.
E, remetendo para o decreto-lei aprovado pelo Governo a apoiar o decretado
na AR, concluiu:
“Assim
aconteceu: as leis foram, em 3 dos 5 pontos suscitados, declaradas
inconstitucionais – numa apreciação que não é a minha, mas, obviamente,
respeito – e todos os efeitos
sociais úteis, que importava garantir, foram garantidos, e garantidos a tempo,
durante mais de três meses, o que me parecia fundamental (…) Prosseguem para futuro.”.
Na verdade, o acórdão do TC que dá razão ao Governo, apesar de
declarar inconstitucionais tais diplomas por violarem o teto de despesa
previsto no OE, salvaguarda “por motivos de segurança jurídica e de equidade”
os direitos produzidos “até à publicação deste acórdão em Diário da República pelas normas que declarou
inconstitucionais”. Assim, quem beneficiou dos apoios em causa não os devolverá.
Eram três tipos de apoios e um deles – o apoio aos pais devido à suspensão das
aulas presenciais – já deixou de ter efeito. Os outros dois eram o apoio excecional
à família e apoios sociais extraordinários aos trabalhadores independentes e
empresários em nome individual. Só estes últimos ainda estão em vigor e
deixarão de ser aplicados logo que a decisão do Palácio Ratton for publicada em
Diário da República, o que sucederá nos próximos dias. Para o PR, serão
compensados pelos que o Governo, motu proprio, entretanto aprovou.
A par da derrota jurídica junto do TC, que chumbou por unanimidade os diplomas
promulgados pelo PR dando assim razão ao Primeiro-Ministro, que sempre
considerou os apoios em causa violadores da Constituição, Marcelo observa que ganhou política e
socialmente. Efetivamente os preditos apoios resultaram duma ‘coligação
negativa’ de todos os partidos da oposição a que o PR deu total cobertura por
entender que a situação de crise pandémica, social e económica que o país
atravessa os justificava inteiramente. Como Professor de Direito
Constitucional, Marcelo preparou-se para o que sabia inevitável, mas jogou
politicamente no sentido que entendeu justificar-se, até porque tinha advertido
as oposições para o risco de eventuais novas coligações negativas que violem a “norma-travão”, que impede iniciativas de
deputados que impliquem aumentos de despesa ou cortes de receita não previstos
nos OE.
Como é que o PR diz que teve ganho político, se o TC o contradisse na especialidade
(ciência política
e direito constitucional) e se num
segundo mandato presidencial não lhe quadram ambições de ascensão a novo cargo
político? Quererá, com o finca-pé com o Governo, ficar bem na selfie com os descontentes? Terá
esperança de repor no poder executivo a área política liderada pelo partido de
que foi líder? Prematura ideia a partir das sondagens e que não o abona mais
que os antecessores! E, a este respeito, Vital Moreira, no blogue “Causa Nossa”, comenta:
“Lamentável é
a despropositada reação do Presidente da República a este acórdão, que não
só insiste na sua posição rotundamente ‘chumbada’ pelo Tribunal, mas também
clama uma ‘vitória política’, com base no argumento de que, mercê da
salvaguarda dos efeitos entretanto produzidos pelas referidas leis, decretada
pelo TC (como é usual), conseguiu o que desejava com a promulgação abusiva dos
diplomas, ou seja, fazer realizar a referida despesa pública adicional, assim
sobrepondo o seu juízo político ao do Governo em matéria de políticas públicas,
à custa do atropelo da Constituição”.
E, pondo os pontos
nos ii, esclarece:
“Ora, no nosso sistema
constitucional, quem governa é o Governo, não a Assembleia da República,
nem muito menos o Presidente da República”.
Vital Moreira
interpela o PR no sentido de se, “após esta incontornável decisão do TC”, irá,
em futuros casos semelhantes, “suscitar a questão prévia da constitucionalidade
ou vai continuar a promulgar tais diplomas, como fez neste caso”. E, assinalando
a asserção do BE de que o acórdão não tem efeito,
pois, “quanto a efeitos práticos, assim é, por causa da salvaguarda, pelo TC,
dos efeitos entretanto produzidos e do facto de o Governo ter assumido a
realização da despesa envolvida, como estava no seu poder”, pergunta:
“Depois
de o TC ter consolidado o entendimento constitucional de que a AR não pode
aumentar a despesa pública durante a execução do orçamento, vai o Bloco
continuar a propor e a aprovar medidas dessas, afrontando o TC?”.
***
Porém, o PR
continua, no lastro da alegada vitória política, a promulgar diplomas da AR
dando cobertura a coligações negativas na AR.
Está neste
caso a promulgação, em 2 de julho, do decreto da AR sobre ensino artístico, publicado como Lei n.º
46/2021, de 13 de julho, que determina
a abertura: dum
concurso de vinculação extraordinária de docentes das componentes
técnico-artísticas do ensino artístico especializado para o exercício de
funções nas áreas das artes visuais e dos audiovisuais, nos estabelecimentos
públicos de ensino; e dum processo negocial com as estruturas sindicais, para
aprovação dum regime específico de seleção e recrutamento de docentes daquele
ensino.
E, pelas razões invocadas
aquando da promulgação do predito decreto da AR e, como fez noutras ocasiões em
que o Parlamento aprovou soluções de caráter programático, na fronteira da
delimitação de competências administrativas, como no caso da Lei do OE 2021, em
ambos os casos, pacificamente, fazendo doutrina, o PR promulgou o Decreto n.º 158/XIV da AR que procede à revisão do regime de recrutamento
e mobilidade do pessoal docente do ensino básico e secundário, determinando a abertura
dum processo negocial com as estruturas sindicais para a revisão do regime de
recrutamento e mobilidade do pessoal docente dos ensinos básico e secundário
estabelecido pelo Decreto-lei n.º 132/2012, de 27 de junho.
***
Respaldado pela vitória jurídica no TC contra a leitura do PR e da
oposição, o Governo quer partir para outra guerra constitucional, por mais aquelas
duas medidas aprovadas pela AR e já promulgadas por Marcelo. Considera o
Governo que os dois diplomas violam a Constituição no atinente à separação de
poderes e, por isso, apenas aguarda o que o PR faria com o último diploma, o
mais pesado por interferir com a vida de milhares de professores, para tomar a
decisão de pedir a fiscalização sucessiva da constitucionalidade.
Segundo o Executivo, os dois diplomas não podiam ser
aprovados pelos deputados por não estarem na sua esfera de competência e
violarem a “reserva de administração”. É esta norma que está em causa no que
poderá ser o novo pedido de Costa ao TC, contra algo decidido pela oposição à
revelia do Executivo e com a chancela do PR. Quer, pois, embalado pela decisão
do TC, travar os ímpetos do que Tiago Antunes chamou “governo de Assembleia” e disse:
“Quem governa é o Governo, o Parlamento
fiscaliza a ação governativa, apoiando ou censurando, mas não se substitui ao
Governo”.
E, abrindo a porta a novo pedido, declarou:
“Se for necessário, fá-lo-emos. É o normal
funcionamento do Estado de direito.”.
A sustentar a tese de que estas medidas “interferem com o
domínio específico da atuação governamental”, há um acórdão de 2011, base
jurídica para a defesa de que “violam a jurisprudência do TC”, apesar de os
diplomas não especificarem um regime de recrutamento (2.º caso) ou definirem o concurso (1.º caso) e de só inscreverem a obrigação de
negociação com os sindicatos. Isto porque o tal acórdão que analisou a
suspensão do modelo de avaliação de desempenho de professores aprovado por uma
coligação contra o Governo Sócrates, analisou também a norma em que a AR definia
para o Governo a obrigação de iniciar o processo de negociação sindical para um
novo modelo, tendo o TC considerou que enfermava de “violação do princípio de
separação e interdependência de poderes” pois o Governo é constitucionalmente o
“órgão superior da administração pública” e “é autónomo no exercício da função
governativa e da função administrativa”. Assim, a AR, não pode dar ordens neste
aspeto, tendo de recorrer a outros expedientes, como projetos de resolução.
Contudo, aquele acórdão teve votos vencidos e declarações de voto, o que pode
levar a que uma nova composição do TC (a votar a 22 de Julho com 3 juízes indicados pelo PSD e um
pelo PS) tenha outras
interpretações.
Qualquer que seja a inclinação maioritária do TC, Marcelo não
viu razões para não promulgar os diplomas. O argumento utilizado para a
promulgação do primeiro decreto da AR e de outras leis consideradas
constitucionalmente “na fronteira”, os “interesses superiores em causa”, foi novamente
invocado. Para Marcelo a jurisprudência não é clara em matéria de competências
administrativas do Governo. Mas sobretudo o rumo suas decisões vai para lá das avaliações
meramente jurídicas. E, segundo Belém, a linha do Presidente tem, alegadamente,
sido salvar o que pode em função dos interesses superiores em causa, pois já
seguiu este princípio quando, o ano passado, havia dúvidas constitucionais
sobre o OE 2021 e este acabou promulgado. O próprio Marcelo disse em público,
quando rebentou o conflito com o Governo por causa do diploma dos apoios
sociais, que só na base duma avaliação flexível do que estava em jogo ele pôde
assinar alguns Orçamentos. E, agora, Belém avisa: “O Governo tem de pensar duas vezes, porque se vai ser assim tão rígido
tem que acautelar melhor os Orçamentos de Estado” e publicar o decreto de
execução orçamental, que não é publicado há dois anos.
***
Formalmente haveria violação da separação de poderes e
invasão da AR, se o Governo tivesse regulamentado estas matérias por decreto
regulamentar, caso do apreciado pelo predito acórdão de 2011. Porém, ao invés
do preceituado no art.º 24.º do ECD (estatuto da carreira docente), legislou ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º
198.º da CRP, em concorrência com a AR. Em termos materiais e como diz Catarina
Martins, pelo menos, o 2.º diploma define princípios, cabendo ao Governo regulamentar.
E os princípios são: respeito pela graduação profissional e eliminação de
ultrapassagens; vinculação de docentes contratados, mais célere e sistemática;
inclusão dos horários incompletos para efeitos de mobilidade interna; e alteração
dos intervalos horários.
Todavia, parece excessiva constitucionalmente a imposição de negociação
com os sindicatos e a definição de um prazo de 30 dias. Veremos o que decidirá
o TC!
Por fim, gostava de saber como é que Marcelo fez doutrina e pacificamente,
se foi contraditado nos pressupostos e teve pé de ferro como Costa? Como
continua a substituir-se ao TC? Mal é quando o académico quer protagonizar a
governação…
2021.07.16 – Louro de Carvalho
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