Foi com base nesta disposição constitucional
estabelecida na alínea b) do n.º 1 do art.º 165.º da Constituição da República
Portuguesa (CRP) que
o Tribunal Constitucional (TC) decidiu
declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas
constantes dos n.os 1 e 3 do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de
7 de agosto, por violação do predito preceito constitucional.
Na verdade, a Lei n.º 38/2018, de 7
de agosto, que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de
género e expressão de género e o direito à proteção das caraterísticas sexuais
de cada pessoa, dedica ao tema o art.º 12.º sob epígrafe “Educação e ensino”, estabelecendo:
“1
– O Estado deve garantir a adoção de medidas no sistema educativo (sublinhei), em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o
exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de
género e do direito à proteção das caraterísticas sexuais das pessoas, nomeadamente
através do desenvolvimento de:
“a)
Medidas de prevenção e de combate contra a discriminação em função da
identidade de género, expressão de género e das caraterísticas sexuais;
“b)
Mecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco que coloquem em
perigo o saudável desenvolvimento de crianças e jovens que manifestem uma
identidade de género ou expressão de género que não se identifica com o sexo
atribuído à nascença;
“c)
Condições para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de
género e das caraterísticas sexuais, contra todas as formas de exclusão social
e violência dentro do contexto escolar, assegurando o respeito pela autonomia,
privacidade e autodeterminação das crianças e jovens que realizem transições
sociais de identidade e expressão de género;
“d)
Formação adequada dirigida a docentes e demais profissionais do sistema
educativo no âmbito de questões relacionadas com a problemática da identidade
de género, expressão de género e da diversidade das caraterísticas sexuais de
crianças e jovens, tendo em vista a sua inclusão como processo de integração
socioeducativa.
“2
– Os estabelecimentos do sistema educativo, independentemente da sua natureza
pública ou privada, devem garantir as condições necessárias para que as crianças
e jovens se sintam respeitados de acordo com a identidade de género e expressão
de género manifestadas e as suas caraterísticas sexuais.
“3
– Os membros do Governo responsáveis pelas áreas da igualdade de género e da
educação adotam, no prazo máximo de 180 dias, as medidas administrativas
necessárias para a implementação do disposto no n.º 1.”.
Face
ao teor destas normas, um grupo de 86 deputados à Assembleia da República (AR), dos Grupos Parlamentares do Partido Social Democrata (PSD), do CDS-Partido Popular (CDS-PP) e do Partido
Socialista (PS), em julho de 2019, ainda na anterior legislatura, requereu a declaração sucessiva, com força
obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos n.ºs 1
e 3 do artigo 12.º da Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, relativa ao direito à
autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das
caraterísticas sexuais de cada pessoa. Os requerentes alegando que as normas em
causa violam, quer as disposições conjugadas do n.º 2 do artigo
43.º e do n.º 2 do art.º 18.º, quer as dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1,
alínea b), todos da Constituição.
Assim,
a teor do requerimento – elaborado
pelos deputados do PSD Miguel Morgado, Nilza Sena e Bruno Vitorino, que mereceu
a assinatura de, entre outros, do líder parlamentar do PSD, Fernando Negrão, dos
sociais-democratas Maria Luís Albuquerque, Hugo Soares, Adão Silva e Marques
Guedes, e dos democratas-cristãos João Almeida, Pedro Mota Soares, Telmo
Correia e Filipe Anacoreta Correia, totalizando um número muito acima dos 23
parlamentares exigidos pela Constituição para estes pedidos –, está em causa a
violação do preceito constitucional segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos” (n.º 2 do art.º 18.º); do que estabelece que “o Estado não pode programar a educação e a
cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas,
ideológicas ou religiosas” (n.º 2 do art.º 42.º); e do que estabelece que “é da exclusiva competência da Assembleia da
República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
(…) direitos, liberdades e garantias;” (…) (alínea b) do n.º 1 do art.º 165.º).
É ainda de registar que os requerentes admitem que
as normas em causa contrariam o art.º 2.º da CRP, que define a República Portuguesa como “um Estado de direito democrático, baseado na
soberania popular, no pluralismo
de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de
efetivação dos direitos e
liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica,
social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
O TC acolhe, pelo menos em subtexto, a alegação da
violação da separação dos poderes, embora não a valorize expressamente na
decisão final. Todavia, não reconhece densidade suficiente às normas em causa
para constituírem violação do estabelecido no n.º 2 do art.º 42.º.
Talvez para acautelar a observância do estipulado no
n.º 2 do art.º 18.º, que exige formalmente a lei para obter a proporcional
restrição de direitos,
liberdades e garantias, o TC acolheu a parte do requerimento que contesta a
legitimidade do Governo para adotar as medidas administrativas necessárias para
a implementação do disposto no n.º 1 do art.º 12.º, em virtude da competência
da reserva relativa de competência legislativa da AR estipulada no art.º 165.º
da CRP.
Efetivamente,
regra geral, Governo e Parlamento legislam, nos termos constitucionais, em
termos de concorrência e os decretos da AR, que se denominam leis por força da
promulgação, como os do Governo, que se denominam decretos-lei por força da
promulgação, têm igual valor e podem ser objeto de veto político presidencial
ou mesmo remetidos para o TC para fiscalização prévia da constitucionalidade de
suas normas.
Porém,
há matérias que são da exclusiva reserva da AR. E podem ser de reserva
absoluta, não podendo o Governo legislar sobre elas, e pode ser relativa, só
podendo o Governo legislar sobre elas mediante autorização parlamentar. No primeiro
caso estão as matérias contempladas no art.º 164.º como “eleições dos titulares
dos órgãos de soberania”, “bases do sistema de ensino”, etc.; no segundo, estão
matérias como “estado e capacidade das pessoas”, “direitos, liberdades e
garantias”, etc. Não obstante, os decretos-lei podem ser objeto de apreciação
parlamentar, a requerimento de 30 deputados, em resultado da qual o decreto-lei
pode ser rejeitado mediante resolução ou alterado por lei.
Porém,
nada impede o Governo de fazer proposta de lei à AR sobre qualquer matéria.
As leis de autorização legislativa
devem definir o objeto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a
qual pode ser prorrogada, mas “caducam com a demissão do Governo a que tiverem
sido concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da AR”, a não
ser que sejam concedidas na lei do orçamento e que incidam sobre matéria
fiscal, caso em que “só caducam no termo do ano económico a que respeitam”.
Como se vê, pode constitucionalmente
sobressair a relevância da AR sobre o Governo.
Assim, segundo o respetivo comunicado, o TC “chumbou”,
a 29 de junho, a regulação pelo Governo da autodeterminação da identidade de
género nas escolas, por considerar que a matéria é competência exclusiva da AR. Não obstante, não
se pronunciou “sobre a substância daquelas normas, no que diz respeito à
proibição da programação ideológica do ensino pelo Estado e à liberdade de
programação do ensino particular”, esclarecendo instituição que esta “decisão
deixa intocada a garantia do direito à identidade de género e de expressão de
género e a proibição de discriminação no sistema educativo”.
O TC sustentou que a Lei n.º 38/2018, de 7 de agosto, a
propósito da autodeterminação da identidade de género e expressão de géneros
“diz toda ela respeito a matéria de direitos, liberdades e garantias”, uma vez
que a Constituição estabelece o “direito à autodeterminação da identidade de
género e expressão de género e o direito à proteção das caraterísticas”. Por
isso, considerou que o conteúdo “não pode ser definido através de regulamento
administrativo (decreto
regulamentar ou portaria),
por se tratar de competência legislativa reservada” da AR.
O TC também “entendeu que as normas em causa ficam muito
aquém desse nível de exigência quanto à extensão da regulação legal”.
O plenário do TC apreciou a constitucionalidade das normas presentes
nos n.os 1 e 3 do 12.º art.º da lei de 2018, relativas à adoção de
medidas no sistema educativo para promover o exercício do direito à
autodeterminação da identidade de género e expressão.
O n.º 1 deste artigo refere que incumbe ao Estado desenvolver
“medidas de prevenção e de combate contra a discriminação em função da
identidade de género, expressão de género e das caraterísticas sexuais” e
mecanismos para detetar e intervir sobre “situações de risco que coloquem em
perigo o saudável desenvolvimento de crianças e jovens que manifestem uma
identidade de género ou expressão de género que não se identifica com o sexo
atribuído à nascença”. E explicita que têm de ser garantidas as “condições para
uma proteção adequada da identidade de género” contra quaisquer configurações
de exclusão no contexto escolar, assim como a formação dos profissionais
escolares em questões relacionadas com a “problemática da identidade de género,
expressão de género e da diversidade das caraterísticas sexuais de crianças e
jovens”, com vista à inclusão “como processo de integração socioeducativa”.
Já o n.º 3 dispõe que os membros do Governo com as tutelas da
igualdade de género e da educação têm de adotar, “no prazo máximo de 180 dias,
as medidas administrativas necessárias” à execução dessas medidas. Face a esta
disposição, observa o TC:
“Entendeu-se que se, como defendiam os
requerentes, a definição do conteúdo das medidas de proteção previstas na lei
tem lugar, não no nível do diploma legal que as prevê, mas no nível
administrativo para o qual este reenvia a sua regulamentação, a principal
questão de constitucionalidade diz respeito a saber se o objeto do reenvio
integra a reserva de lei”.
Os deputados das três bancadas também pediram a apreciação
constitucional sobre o que entendiam ser a imposição da aprendizagem de uma
“ideologia de género” nas escolas, sustentando com a “proibição da programação
ideológica do ensino pelo Estado e a liberdade de programação do ensino
particular”, como está consagrado na Constituição. Porém, o TC, ficando-se pela
inconstitucionalidade orgânica, declarou que “as normas legais não têm
densidade suficiente para a apreciação” desse fundamento.
Nestes termos, o TC, pelo acórdão n.º 474/2021, apenas declarou a inconstitucionalidade das
normas, com fundamento na violação da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da
Constituição.
***
A
este respeito, devo dizer que a invocação do art.º da CRP ou é excrescente ou
deveria invocar-se para a elaboração de qualquer norma ou para a oposição à
mesma, pois assim dá-se implicitamente a entender que democratas são apenas os
que usam do direito de contestação.
Estranho
que se faça tanto finca-pé na relevância da exclusiva competência da AR em
matéria de direitos, liberdades e garantias, quando, noutros casos, como por exemplo no
estatuto da carreira docente, esta exigência ficou esquecida, tanto em 1990, ano da
sua elaboração, como em 2007, ano de sua profunda e maléfica alteração.
Por
outro lado, a garantia do respeito e proteção das opções e orientações pessoais
em matéria sexual não é uma invenção da presente lei, mas radica no teor do
n.º1 do art.º 26.º da CRP e foi acolhida por vários diplomas legais, mesmo no âmbito
da escola, nomeadamente a partir da Lei de Bases do Sistema Educativo, logo em
1986. A formulação do art.º 12.º da presente lei não envolve em si qualquer
atropelo à liberdade pessoal, nem mesmo à “liberdade de aprender e de ensinar”
garantida pelo n.º 1 do art.º 43.º da CRP.
Depois,
o olhar para o n.º 2 do art.º 42.º da CRP cheira a hipocrisia. Com efeito, os
currículos escolares são definidos por quem a não ser pelo Governo, que age em
nome do Estado? Não são os programas de cada disciplina – e mesmo a estratégia
nacional de educação para a cidadania – elaborados por grupos de trabalho,
nomeados por despacho ministerial e por despacho ministerial homologados, tudo
em nome do Estado? E querem dizer-me que determinadas disciplinas estão imunes
a determinadas orientações ideológicas e que sempre os programas estão sustentados
em suficiente pluralismo? Todavia, reza-se e canta-se:
“O Estado não pode programar a educação e a
cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas,
ideológicas ou religiosas”.
Por
fim, devo dizer que o Estado deve promover a formação das pessoas, sobretudo
através da escola, pelo respeito pelas diferenças, opções, mas não pode expor,
muito menos impor, como dever de aceitação comum algo que não colhe
indiscutível evidência científica, como é ainda o caso da identidade de género.
Igualdade, diversidade de orientação, sim; identidade, ao menos para já, não.
A
CRP deve ser observada na totalidade, não?!
2021.07.05 – Louro de Carvalho
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