A liturgia
do XV domingo do Tempo Comum no Ano B apresenta-nos homens divinamente
vocacionados com vista a partirem desinteressadamente a profetizar pela palavra
e congruentes gestos, interessando-lhes, não tanto a aceitação que venham a
ter, mas a fidelidade à missão.
Logo em 1.ª
leitura (Am 7,12-15), surge Amós, o profeta da justiça
social, que profetizou no reino do Norte por volta de 762 a. C., no reinado de
Jeroboão II, tempo de prosperidade económica e tranquilidade política, pois,
com o alargamento dos limites do reino, evidenciou-se o afluxo de tributos dos
povos vencidos; desenvolveram-se o comércio e a indústria (mineira
e têxtil); e as
construções burguesas atingiram luxo e magnificência inéditos.
Porém, a prosperidade da elite contrastava com a miséria das
classes baixas. Comerciantes sem escrúpulo, que detinham o sistema de
distribuição, aproveitando o bem-estar económico, especulavam com os preços dos
bens essenciais e as famílias de menores recursos endividavam-se até se verem
espoliadas de suas terras em prol dos latifundiários. A classe dirigente
dominava os tribunais e subornava os juízes, impedindo que o tribunal fizesse
justiça aos mais pobres. A religião florescia num inusitado esplendor:
grandiosas festas, opíparos sacrifícios de animais, culto pomposo… Mas esse
culto estava desencarnado da vida quotidiana: os seus praticantes praticavam
injustiças contra o pobre e cometiam toda a espécie de atropelos ao direito; os
ricos ofereciam a Deus abundantes ofertas para tranquilização das suas
consciências culpadas e blasfema obtenção da cumplicidade de Deus para os seus
negócios escusos; e o influxo da religião cananeia levava os israelitas para o
sincretismo religioso, misturando o culto a Javé com rituais dos cultos a Baal
e Astarte, o que punha em risco a ortodoxia da fé javista.
Neste ambiente surge Amós, natural de Técua (aldeia sita no deserto de Judá). Era um importante criador de gado e
agricultor ao serviço do rei Uzias (787-736), o maior rei de Judá em política e desenvolvimento, que em muito
desenvolveu a agricultura, como se pode ver pela descrição do cronista (2Cr 26,10). Seria um alto funcionário agrícola
de Uzias. Mas, quando Deus o chamou, Amós despojou-se da sua riqueza e sucesso
e foi do Sul para o Norte, munido apenas com a mensagem que Deus o incumbiu. Profeta
não é uma profissão, função ou herança. Não passa de pai a filho. É, sim,
vocação e missão. E é a Palavra de Deus que, incidindo sobre ele, marca um
final e inaugura uma vida nova: constitui-o profeta: “Não era profeta eu, nem filho de profeta eu, mas o Senhor…” (Am 7,14-15). Não era, pois um profeta, mas,
chamado por Deus, deixa a sua terra e parte para o reino vizinho para gritar à
classe dirigente a sua denúncia. E a rudeza do discurso e a afoiteza da fé,
próprias do ambiente desértico, contrastam com a indolência e o luxo da
sociedade israelita.
O episódio relatado no texto em apreço leva-nos ao santuário
de Betel, no centro da Palestina. Segundo Gn 35,1-8, Jacob construiu aí um
altar e dedicou-o a Javé. Mais tarde, aparece como o local onde se reúne a
assembleia de todo o Israel para consultar Deus (cf Jz 20,18), chorar ante Deus a sua infelicidade (cf Jz 20,26) e se encontrar com Deus (cf Jz 21,2). Tendo-se divido o Povo em dois
reinos, com a morte de Salomão (932 a.C.), os
reis do Norte potenciam o culto em Betel, para impedir que os súbditos se desloquem
a Jerusalém. Assim, Betel transformou-se em santuário oficial do regime e o seu
culto é financiado, em grande parte, pelo rei, sendo o sacerdote oficiante um
funcionário real e zelador dos interesses do rei. Na época de Amós, o sacerdote
do santuário era Amasias. Terá mesmo existido em Betel uma imagem dum bezerro a
representar Javé, que era adorado pelos fiéis (cf Os 10,5). Daí ser este um lugar onde ressoou a denúncia de Amós, que
pôs a nu as injustiças cometidas pelo rei e pela classe dirigente e um culto
aliado da injustiça, tentando cumpliciar Deus com os esquemas corruptos dos
poderosos.
O trecho em referência evidencia o confronto entre Amasias e Amós.
É um texto-chave para o entendimento da missão do profeta e da sua liberdade face
aos interesses do mundo e aos poderes instituídos. Amasias, comprometido com os
poderes, está interessado na intocabilidade do sistema que assegura os
benefícios mútuos – do trono e do altar, tendo muito a perder se as coisas não
correrem de feição, pois, como funcionário real cuja função é defender os
interesses do rei, alimenta uma religião escrava dos interesses, ajoelhada ante
os poderosos e totalmente fechada aos desafios de Deus (que, escutados e acolhidos, podiam
britar o sistema).
Nestes termos, a denúncia de Amós é rebelião contra os interesses enlaçados do
poder e religião, doutrina subversiva que põe em causa as estruturas e abala os
fundamentos da ordem estabelecida. Por isso, é de usar a força do sistema para
calar esta voz. Amós é, assim, denunciado, convidado a deixar o santuário e
voltar à sua terra para “ganhar aí o seu pão”.
Amós deixa claro que é um homem livre, não agindo por
interesses humanos – próprios ou alheios –, mas por mandato de Deus. A
iniciativa não foi sua. Foi Deus quem veio ao seu encontro, lhe interrompeu a
normalidade de vida e o convocou para a missão. Nem a profecia é, para ele,
ocupação profissional ou modo de satisfação de interesses pessoais. O profeta
não está preocupado com os interesses do rei ou com os do sacerdote, nem com a
perpetuação de uma ordem social injusta e opressora. Foi convocado para ser voz
humana de Deus e só lhe interessa cumprir a missão que Deus lhe confiou. A sua
missão tem autoridade por si própria, porque vem de Deus e Deus é infinitamente
maior que o rei. Equipado com essa autoridade que o legitima na ação profética
e o obriga à fidelidade à missão que Deus lhe confiou, anunciou o castigo para
o rei, para Amasias e para a nação infiel, como relatará o texto mais à frente (cf Am 7,16-17).
***
A passagem
do Evangelho que narra o envio em missão dos Doze (Mc 6,7-13) situa-se nevralgicamente entre a rejeição de Jesus na
sua pátria (Mc 6,1-6) e o
martírio de João Batista (Mc 6,14-29). Neste
contexto, emerge “intenso e dramático” o destino dos missionários: entre a
rejeição e martírio. Mais, como anota sabiamente Dom António Couto, tal destino
fica mais evidente se considerarmos que o martírio do Batista (Mc 6,14-29) está entre o envio em missão dos Doze (Mc 6,7-13) e o seu regresso (Mc 6,30). Portanto, é inegável o entrelaçamento de destinos de
Jesus, do Batista e dos missionários. Sempre a rejeição e o martírio decorrem
do facto de os destinatários da missão não acreditarem que a missão provém de
Deus.
Voltando um
pouco atrás, será de vincar que a
primeira parte do Evangelho de Marcos (cf Mc 1,14-8,30) está montada em torno da ideia
de que Jesus é o Messias que proclama o Reino de Deus, tendo como ponto de
partida o sumário-anúncio inicial (cf Mc 1,14-15) onde se proclama a chegada do
Reino; a seguir, Jesus apresenta a proposta do Reino a um grupo de discípulos,
que escutam o apelo e aceitam embarcar na aventura do Reino de Deus (cf
Mc 1,16-20); e, depois,
Marcos descreve como Jesus, com palavras e gestos concretos, vai propondo a
nova realidade do Reino e intercalando as suas propostas com as respostas
positivas ou negativas dos fariseus, do povo e dos próprios discípulos (cf
Mc 1,21-8,30). E, à
medida que o caminho do Reino avança, os discípulos aparecem cada vez mais ligados
a Jesus e mais implicados no projeto do Reino. Chamados por Jesus, respondem
positivamente ao chamamento e seguem-No; depois, durante a caminhada que fazem
com Ele, escutam os seus ensinamentos e testemunham os seus gestos e sinais.
Formados por Jesus na escola do Reino, podem ser enviados ao mundo a fim de
anunciar a todos os homens a chegada do mundo novo que Jesus chamava o “Reino
de Deus”.
Porém, este
envio em missão dos Doze tem de ser visto no seguimento de Marcos 3,13-15, em
que, do alto da montanha, Jesus chamou os que quis (“proskaleîtai hoùs êlthelen autós”) (eleição), deles fez
“Doze” (“epoíêsen dôdeka”) (criação), para que estivessem com Ele (“hína ôsin met’ autoû”) (aliança,
companhia), para Ele os enviasse a pregar (“hína apostéllê autoús kêrýssein”) (missão). Assim, o texto
desta dominga torna operativo este último aspeto, mas sem diluir aquele “estar
com Ele”, pois, quando regressarem da missão, todos se reúnem à volta de Jesus (“synágontai prós tòn Iêsoûn”: Mc 6,30), que é assim apresentado como o marco e a referência
fundamental da vida deles.
Adverte o
Bispo de Lamego que os verbos, tanto os narrativos como os elocutivos, mostram que
a iniciativa da missão dos Doze é de Jesus, que é o verdadeiro Senhor da missão
(tal como
sucedeu com Deus e Amós, digo eu): é Ele que
chama para a missão, que envia em missão, que dá autoridade para o serviço da
missão (Mc 6,7-8), que define a leveza do equipamento (Mc 6,8-10) e o modus
operandi no serviço da missão (Mc 6,10-11). Aquelas recomendações negativas: só um cajado (segundo
Mateus e Lucas, os discípulos não deviam levar cajado – cf Mt 10,10; Lc 9,3), mas nada para o caminho, nem pão, nem alforge, nem
dinheiro, nem duas túnicas (Mc 6,8) tornam os
Doze materialmente mais pobres que os destinatários a quem são enviados. Não é,
pois, o volume das coisas a medida do mundo dos discípulos de Jesus. Este
despojamento ou leveza está na base da credibilidade da mensagem que transmitirão.
O narrador
anota no final que os Doze cumpriram as diretivas de Jesus (Mc 6,12-13), boa forma de testemunhar que a palavra de Jesus tem
sobre os missionários caráter performativo, pois, não tendo nada de seu para
oferecer, desempenham o encargo recebido e transmitem a mensagem que lhes foi
confiada. O emprego do verbo ‘anunciar’ (kêrýssô), que significa transmitir, não a própria opinião, mas
ter a posição de arautos do seu Senhor, define os Doze como dependentes de
Jesus. E a exiguidade do equipamento realça a importância da mensagem, que não
deixa margem para a ocupação de nenhum outro múnus.
A presente passagem de Marcos pretende ser uma catequese
sobre a missão dos discípulos de Jesus no meio do mundo. As instruções postas
na boca de Jesus conservam o seu sentido e valor para os discípulos de todo o
tempo e lugar.
O evangelista deixa claro que a iniciativa do chamamento dos
discípulos é de Jesus, como foi dito. Não há explicação sobre os critérios que
levaram àquela escolha: vocação e eleição são um mistério insondável, que
depende de Deus e que o homem nem sempre consegue compreender e explicar. Depois,
sobressai o número dos discípulos que são enviados, “Doze”. Trata-se dum número
simbólico, que lembra as doze tribos que formavam o antigo Povo de Deus. Estes
Doze simbolizam a totalidade do Povo de Deus, do novo Povo de Deus. Ao fim e ao
cabo, é todo o Povo de Deus que é enviado em missão.
O envio dos Doze “dois a dois” terá a ver com o costume
judaico de viajar acompanhado para ter ajuda e apoio em caso de necessidade e com
as exigências da lei judaica, segundo a qual eram necessárias duas testemunhas
para dar credibilizar um anúncio (cf Dt 19,15; Mt 18,16). Por outro lado, a exigência de partir em missão dois a dois
sugere que a evangelização tem sempre dimensão comunitária. Os discípulos nunca
devem trabalhar sós, à margem do resto da comunidade e não podem anunciar as
suas ideias, mas a fé da Igreja. O pregoeiro do Evangelho, anuncia-o em nome da
comunidade; e o anúncio estará em sintonia com a fé da comunidade.
Depois, Marcos define a missão (“deu-lhes poder sobre os espíritos impuros). Os espíritos impuros representam
tudo o que escraviza o homem e o impede de chegar à vida. A missão dos
discípulos é, pois, lutar contra tudo (de caráter físico e de caráter espiritual) o que destrói a vida e a felicidade (a missão dos discípulos é lutar
contra o “pecado”). É da
ação libertadora dos discípulos (que agem por mandato de Jesus) que nasce o mundo de homens livres – o mundo do “Reino”.
E as instruções para a missão (Mc 6,8-9) implicam a partida num despojamento total de todos os bens e
seguranças. Podem levar um cajado (segundo Mateus e Lucas, nem isso), mas não devem levar nem pão, nem
alforge, nem moedas (as
pequenas moedas de cobre que o viajante levava consigo para as suas pequenas
necessidades), nem duas
túnicas. Os discípulos devem ser totalmente livres e não estar apegados a bens
materiais; caso contrário, a preocupação com os bens materiais pode roubar-lhes
a liberdade e a disponibilidade para a missão. Por outro lado, a atitude de
pobreza e de despojamento ajudá-los-á a perceber que a eficácia da missão não
depende da abundância dos bens materiais, mas da ação de Deus. E a sobriedade e
o desapego são sinais de que o discípulo confia em Deus e contribuem para a credibilização
do testemunho. Em paralelo, ressalta o comportamento dos discípulos face à
hospitalidade que lhes for oferecida (Mc 6,10-11). Uma vez acolhidos numa casa, devem aí permanecer algum tempo (para formar comunidade) e não saltar de lugar para lugar, ao
sabor das amizades, interesses e conveniências próprias ou alheias; e, se não
forem recebidos num lugar, devem sacudir o pó dos pés ao abandonar esse lugar:
trata-se de gesto dos judeus no regresso de território pagão a simbolizar a renúncia
à impureza. Aqui, significa o repúdio pelo fechamento à proposta libertadora de
Deus, mas não o abandono dos destinatários, que devem concitar a atenção e tentativa
de nova missão junto deles.
Finalmente, Marcos descreve a realização da missão (Mc 6,12-13): pregavam o arrependimento, expulsavam
demónios, ungiam os doentes e curavam-nos, ou seja, propunham a metanoia (mudança radical de mentalidade, valores,
atitudes, um voltar-se para Jesus e acolher o seu projeto). É a missão de Jesus: libertar o homem
de tudo o que o oprime e lhe rouba a vida, para fazer aparecer um mundo de
homens livres e salvos. O anúncio confiado aos discípulos é o anúncio que Jesus
fazia; os gestos que os discípulos são convidados a fazer para anunciar o Reino
são os de Jesus. Ao apresentar a missão dos discípulos em paralelo e em
absoluta continuidade com a sua missão, Jesus insta a Igreja a continuar na
história a obra que Ele iniciou em prol do homem.
***
Também Paulo é modelo de quem se sente amado e escolhido por
Deus desde a eternidade (Ef
1,3-14). Por isso, não
recalcitra, mas exulta e exalta o único verdadeiro Senhor da sua vida, de quem
dá a conhecer os desígnios da sua vontade, para que também nós o possamos servir
e amar de coração indiviso. O seu texto é um hino de ação de graças pela ação
do Pai (cf Ef 1,3-6), do Filho (cf Ef 1,7-12) e do Espírito Santo (cf Ef 1,13-14), em oferecer aos homens a salvação.
***
João, Jesus,
os Doze, Amós, Paulo, os missionários são figuras em contracorrente da
sociedade rica, insensível, anestesiada, autossuficiente, autorreferente e
indiferente. Porque sabe que é rica, sente-se agora em crise. Os textos de hoje
ensinam-nos que a boa e verdadeira crise é desencadeada em nós pela Palavra de
Deus. Só Deus interpela e salva. É preciso estar com Ele!
2021.07.11 – Louro de Carvalho
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