domingo, 11 de julho de 2021

Chamados para irem totalmente livres em missão profética

 

A liturgia do XV domingo do Tempo Comum no Ano B apresenta-nos homens divinamente vocacionados com vista a partirem desinteressadamente a profetizar pela palavra e congruentes gestos, interessando-lhes, não tanto a aceitação que venham a ter, mas a fidelidade à missão.

Logo em 1.ª leitura (Am 7,12-15), surge Amós, o profeta da justiça social, que profetizou no reino do Norte por volta de 762 a. C., no reinado de Jeroboão II, tempo de prosperidade económica e tranquilidade política, pois, com o alargamento dos limites do reino, evidenciou-se o afluxo de tributos dos povos vencidos; desenvolveram-se o comércio e a indústria (mineira e têxtil); e as construções burguesas atingiram luxo e magnificência inéditos.

Porém, a prosperidade da elite contrastava com a miséria das classes baixas. Comerciantes sem escrúpulo, que detinham o sistema de distribuição, aproveitando o bem-estar económico, especulavam com os preços dos bens essenciais e as famílias de menores recursos endividavam-se até se verem espoliadas de suas terras em prol dos latifundiários. A classe dirigente dominava os tribunais e subornava os juízes, impedindo que o tribunal fizesse justiça aos mais pobres. A religião florescia num inusitado esplendor: grandiosas festas, opíparos sacrifícios de animais, culto pomposo… Mas esse culto estava desencarnado da vida quotidiana: os seus praticantes praticavam injustiças contra o pobre e cometiam toda a espécie de atropelos ao direito; os ricos ofereciam a Deus abundantes ofertas para tranquilização das suas consciências culpadas e blasfema obtenção da cumplicidade de Deus para os seus negócios escusos; e o influxo da religião cananeia levava os israelitas para o sincretismo religioso, misturando o culto a Javé com rituais dos cultos a Baal e Astarte, o que punha em risco a ortodoxia da fé javista.

Neste ambiente surge Amós, natural de Técua (aldeia sita no deserto de Judá). Era um importante criador de gado e agricultor ao serviço do rei Uzias (787-736), o maior rei de Judá em política e desenvolvimento, que em muito desenvolveu a agricultura, como se pode ver pela descrição do cronista (2Cr 26,10). Seria um alto funcionário agrícola de Uzias. Mas, quando Deus o chamou, Amós despojou-se da sua riqueza e sucesso e foi do Sul para o Norte, munido apenas com a mensagem que Deus o incumbiu. Profeta não é uma profissão, função ou herança. Não passa de pai a filho. É, sim, vocação e missão. E é a Palavra de Deus que, incidindo sobre ele, marca um final e inaugura uma vida nova: constitui-o profeta: “Não era profeta eu, nem filho de profeta eu, mas o Senhor…(Am 7,14-15). Não era, pois um profeta, mas, chamado por Deus, deixa a sua terra e parte para o reino vizinho para gritar à classe dirigente a sua denúncia. E a rudeza do discurso e a afoiteza da fé, próprias do ambiente desértico, contrastam com a indolência e o luxo da sociedade israelita.

O episódio relatado no texto em apreço leva-nos ao santuário de Betel, no centro da Palestina. Segundo Gn 35,1-8, Jacob construiu aí um altar e dedicou-o a Javé. Mais tarde, aparece como o local onde se reúne a assembleia de todo o Israel para consultar Deus (cf Jz 20,18), chorar ante Deus a sua infelicidade (cf Jz 20,26) e se encontrar com Deus (cf Jz 21,2). Tendo-se divido o Povo em dois reinos, com a morte de Salomão (932 a.C.), os reis do Norte potenciam o culto em Betel, para impedir que os súbditos se desloquem a Jerusalém. Assim, Betel transformou-se em santuário oficial do regime e o seu culto é financiado, em grande parte, pelo rei, sendo o sacerdote oficiante um funcionário real e zelador dos interesses do rei. Na época de Amós, o sacerdote do santuário era Amasias. Terá mesmo existido em Betel uma imagem dum bezerro a representar Javé, que era adorado pelos fiéis (cf Os 10,5). Daí ser este um lugar onde ressoou a denúncia de Amós, que pôs a nu as injustiças cometidas pelo rei e pela classe dirigente e um culto aliado da injustiça, tentando cumpliciar Deus com os esquemas corruptos dos poderosos.

O trecho em referência evidencia o confronto entre Amasias e Amós. É um texto-chave para o entendimento da missão do profeta e da sua liberdade face aos interesses do mundo e aos poderes instituídos. Amasias, comprometido com os poderes, está interessado na intocabilidade do sistema que assegura os benefícios mútuos – do trono e do altar, tendo muito a perder se as coisas não correrem de feição, pois, como funcionário real cuja função é defender os interesses do rei, alimenta uma religião escrava dos interesses, ajoelhada ante os poderosos e totalmente fechada aos desafios de Deus (que, escutados e acolhidos, podiam britar o sistema). Nestes termos, a denúncia de Amós é rebelião contra os interesses enlaçados do poder e religião, doutrina subversiva que põe em causa as estruturas e abala os fundamentos da ordem estabelecida. Por isso, é de usar a força do sistema para calar esta voz. Amós é, assim, denunciado, convidado a deixar o santuário e voltar à sua terra para “ganhar aí o seu pão”.

Amós deixa claro que é um homem livre, não agindo por interesses humanos – próprios ou alheios –, mas por mandato de Deus. A iniciativa não foi sua. Foi Deus quem veio ao seu encontro, lhe interrompeu a normalidade de vida e o convocou para a missão. Nem a profecia é, para ele, ocupação profissional ou modo de satisfação de interesses pessoais. O profeta não está preocupado com os interesses do rei ou com os do sacerdote, nem com a perpetuação de uma ordem social injusta e opressora. Foi convocado para ser voz humana de Deus e só lhe interessa cumprir a missão que Deus lhe confiou. A sua missão tem autoridade por si própria, porque vem de Deus e Deus é infinitamente maior que o rei. Equipado com essa autoridade que o legitima na ação profética e o obriga à fidelidade à missão que Deus lhe confiou, anunciou o castigo para o rei, para Amasias e para a nação infiel, como relatará o texto mais à frente (cf Am 7,16-17).

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A passagem do Evangelho que narra o envio em missão dos Doze (Mc 6,7-13) situa-se nevralgicamente entre a rejeição de Jesus na sua pátria (Mc 6,1-6) e o martírio de João Batista (Mc 6,14-29). Neste contexto, emerge “intenso e dramático” o destino dos missionários: entre a rejeição e martírio. Mais, como anota sabiamente Dom António Couto, tal destino fica mais evidente se considerarmos que o martírio do Batista (Mc 6,14-29) está entre o envio em missão dos Doze (Mc 6,7-13) e o seu regresso (Mc 6,30). Portanto, é inegável o entrelaçamento de destinos de Jesus, do Batista e dos missionários. Sempre a rejeição e o martírio decorrem do facto de os destinatários da missão não acreditarem que a missão provém de Deus.

Voltando um pouco atrás, será de vincar que a primeira parte do Evangelho de Marcos (cf Mc 1,14-8,30) está montada em torno da ideia de que Jesus é o Messias que proclama o Reino de Deus, tendo como ponto de partida o sumário-anúncio inicial (cf Mc 1,14-15) onde se proclama a chegada do Reino; a seguir, Jesus apresenta a proposta do Reino a um grupo de discípulos, que escutam o apelo e aceitam embarcar na aventura do Reino de Deus (cf Mc 1,16-20); e, depois, Marcos descreve como Jesus, com palavras e gestos concretos, vai propondo a nova realidade do Reino e intercalando as suas propostas com as respostas positivas ou negativas dos fariseus, do povo e dos próprios discípulos (cf Mc 1,21-8,30). E, à medida que o caminho do Reino avança, os discípulos aparecem cada vez mais ligados a Jesus e mais implicados no projeto do Reino. Chamados por Jesus, respondem positivamente ao chamamento e seguem-No; depois, durante a caminhada que fazem com Ele, escutam os seus ensinamentos e testemunham os seus gestos e sinais. Formados por Jesus na escola do Reino, podem ser enviados ao mundo a fim de anunciar a todos os homens a chegada do mundo novo que Jesus chamava o “Reino de Deus”.

Porém, este envio em missão dos Doze tem de ser visto no seguimento de Marcos 3,13-15, em que, do alto da montanha, Jesus chamou os que quis (“proskaleîtai hoùs êlthelen autós”) (eleição), deles fez “Doze” (“epoíêsen dôdeka”) (criação), para que estivessem com Ele (“hína ôsin met’ autoû”) (aliança, companhia), para Ele os enviasse a pregar (“hína apostéllê autoús kêrýssein”) (missão). Assim, o texto desta dominga torna operativo este último aspeto, mas sem diluir aquele “estar com Ele”, pois, quando regressarem da missão, todos se reúnem à volta de Jesus (“synágontai prós tòn Iêsoûn”: Mc 6,30), que é assim apresentado como o marco e a referência fundamental da vida deles.

Adverte o Bispo de Lamego que os verbos, tanto os narrativos como os elocutivos, mostram que a iniciativa da missão dos Doze é de Jesus, que é o verdadeiro Senhor da missão (tal como sucedeu com Deus e Amós, digo eu): é Ele que chama para a missão, que envia em missão, que dá autoridade para o serviço da missão (Mc 6,7-8), que define a leveza do equipamento (Mc 6,8-10) e o modus operandi no serviço da missão (Mc 6,10-11). Aquelas recomendações negativas: só um cajado (segundo Mateus e Lucas, os discípulos não deviam levar cajado – cf Mt 10,10; Lc 9,3), mas nada para o caminho, nem pão, nem alforge, nem dinheiro, nem duas túnicas (Mc 6,8) tornam os Doze materialmente mais pobres que os destinatários a quem são enviados. Não é, pois, o volume das coisas a medida do mundo dos discípulos de Jesus. Este despojamento ou leveza está na base da credibilidade da mensagem que transmitirão.

O narrador anota no final que os Doze cumpriram as diretivas de Jesus (Mc 6,12-13), boa forma de testemunhar que a palavra de Jesus tem sobre os missionários caráter performativo, pois, não tendo nada de seu para oferecer, desempenham o encargo recebido e transmitem a mensagem que lhes foi confiada. O emprego do verbo ‘anunciar’ (kêrýssô), que significa transmitir, não a própria opinião, mas ter a posição de arautos do seu Senhor, define os Doze como dependentes de Jesus. E a exiguidade do equipamento realça a importância da mensagem, que não deixa margem para a ocupação de nenhum outro múnus.

A presente passagem de Marcos pretende ser uma catequese sobre a missão dos discípulos de Jesus no meio do mundo. As instruções postas na boca de Jesus conservam o seu sentido e valor para os discípulos de todo o tempo e lugar.

O evangelista deixa claro que a iniciativa do chamamento dos discípulos é de Jesus, como foi dito. Não há explicação sobre os critérios que levaram àquela escolha: vocação e eleição são um mistério insondável, que depende de Deus e que o homem nem sempre consegue compreender e explicar. Depois, sobressai o número dos discípulos que são enviados, “Doze”. Trata-se dum número simbólico, que lembra as doze tribos que formavam o antigo Povo de Deus. Estes Doze simbolizam a totalidade do Povo de Deus, do novo Povo de Deus. Ao fim e ao cabo, é todo o Povo de Deus que é enviado em missão.

O envio dos Doze “dois a dois” terá a ver com o costume judaico de viajar acompanhado para ter ajuda e apoio em caso de necessidade e com as exigências da lei judaica, segundo a qual eram necessárias duas testemunhas para dar credibilizar um anúncio (cf Dt 19,15; Mt 18,16). Por outro lado, a exigência de partir em missão dois a dois sugere que a evangelização tem sempre dimensão comunitária. Os discípulos nunca devem trabalhar sós, à margem do resto da comunidade e não podem anunciar as suas ideias, mas a fé da Igreja. O pregoeiro do Evangelho, anuncia-o em nome da comunidade; e o anúncio estará em sintonia com a fé da comunidade.

Depois, Marcos define a missão (“deu-lhes poder sobre os espíritos impuros). Os espíritos impuros representam tudo o que escraviza o homem e o impede de chegar à vida. A missão dos discípulos é, pois, lutar contra tudo (de caráter físico e de caráter espiritual) o que destrói a vida e a felicidade (a missão dos discípulos é lutar contra o “pecado”). É da ação libertadora dos discípulos (que agem por mandato de Jesus) que nasce o mundo de homens livres – o mundo do “Reino”.

E as instruções para a missão (Mc 6,8-9) implicam a partida num despojamento total de todos os bens e seguranças. Podem levar um cajado (segundo Mateus e Lucas, nem isso), mas não devem levar nem pão, nem alforge, nem moedas (as pequenas moedas de cobre que o viajante levava consigo para as suas pequenas necessidades), nem duas túnicas. Os discípulos devem ser totalmente livres e não estar apegados a bens materiais; caso contrário, a preocupação com os bens materiais pode roubar-lhes a liberdade e a disponibilidade para a missão. Por outro lado, a atitude de pobreza e de despojamento ajudá-los-á a perceber que a eficácia da missão não depende da abundância dos bens materiais, mas da ação de Deus. E a sobriedade e o desapego são sinais de que o discípulo confia em Deus e contribuem para a credibilização do testemunho. Em paralelo, ressalta o comportamento dos discípulos face à hospitalidade que lhes for oferecida (Mc 6,10-11). Uma vez acolhidos numa casa, devem aí permanecer algum tempo (para formar comunidade) e não saltar de lugar para lugar, ao sabor das amizades, interesses e conveniências próprias ou alheias; e, se não forem recebidos num lugar, devem sacudir o pó dos pés ao abandonar esse lugar: trata-se de gesto dos judeus no regresso de território pagão a simbolizar a renúncia à impureza. Aqui, significa o repúdio pelo fechamento à proposta libertadora de Deus, mas não o abandono dos destinatários, que devem concitar a atenção e tentativa de nova missão junto deles.

Finalmente, Marcos descreve a realização da missão (Mc 6,12-13): pregavam o arrependimento, expulsavam demónios, ungiam os doentes e curavam-nos, ou seja, propunham a metanoia (mudança radical de mentalidade, valores, atitudes, um voltar-se para Jesus e acolher o seu projeto). É a missão de Jesus: libertar o homem de tudo o que o oprime e lhe rouba a vida, para fazer aparecer um mundo de homens livres e salvos. O anúncio confiado aos discípulos é o anúncio que Jesus fazia; os gestos que os discípulos são convidados a fazer para anunciar o Reino são os de Jesus. Ao apresentar a missão dos discípulos em paralelo e em absoluta continuidade com a sua missão, Jesus insta a Igreja a continuar na história a obra que Ele iniciou em prol do homem.

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Também Paulo é modelo de quem se sente amado e escolhido por Deus desde a eternidade (Ef 1,3-14). Por isso, não recalcitra, mas exulta e exalta o único verdadeiro Senhor da sua vida, de quem dá a conhecer os desígnios da sua vontade, para que também nós o possamos servir e amar de coração indiviso. O seu texto é um hino de ação de graças pela ação do Pai (cf Ef 1,3-6), do Filho (cf Ef 1,7-12) e do Espírito Santo (cf Ef 1,13-14), em oferecer aos homens a salvação.

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João, Jesus, os Doze, Amós, Paulo, os missionários são figuras em contracorrente da sociedade rica, insensível, anestesiada, autossuficiente, autorreferente e indiferente. Porque sabe que é rica, sente-se agora em crise. Os textos de hoje ensinam-nos que a boa e verdadeira crise é desencadeada em nós pela Palavra de Deus. Só Deus interpela e salva. É preciso estar com Ele!

2021.07.11 – Louro de Carvalho

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