sexta-feira, 29 de março de 2024

Serviço militar obrigatório ou voluntário garantido

 

As Forças Armadas (FA), como braço armado do povo, garantem a defesa militar do Estado, necessária para prevenir eventual invasão externa e para apoiar a população em caso de catástrofe natural ou provocada por mão humana. Servem também para dar cumprimento aos desígnios do poder político no quadro dos compromissos internacionais, na linha da promoção e manutenção da paz, em atos humanitários de grande envergadura e em operações de salvamento.

Até 2004, Portugal contemplava o serviço militar obrigatório (SMO) para os cidadãos do sexo masculino, com base no seu recenseamento militar obrigatório, a par do serviço voluntário para indivíduos de ambos os sexos (para o sexo feminino, a partir de 1975).

Não foi devidamente explicado o real motivo para a abolição do SMO, o que levou alguns a pensar que o fim da guerra colonial e do império não justificava a manutenção da obrigatoriedade deste serviço. Porém, outros opinam que a ideia da sua abolição surgiu nas juventudes partidárias, não por não justificação, mas por hedonismo.  

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Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, a questão voltou ao debate. E, apesar de a então ministra da Defesa Nacional entender que o problema não se coloca no país e de o ex-secretário de Estado da Defesa Nacional dizer que isso é ideia do passado, um estudo feito, em julho de 2022, por investigadores da Universidade Lusófona, citado pela CNN Portugal, mostra que mais de metade dos inquiridos é a favor do regresso do SMO, em Portugal, e de um exército único europeu.

De acordo com os dados, 52,35% dos inquiridos “concorda” ou “concorda totalmente” com o regresso do SMO, enquanto, 32,75% referiu “discordar” ou “discordar totalmente”. E 55.83% dos inquiridos “concorda” ou “concorda totalmente” com a criação do exército único europeu. Os Portugueses pensam que isto ajudará a União Europeia (UE) a reduzir a dependência face aos Estados Unidos da América (EUA). Aliás, 73.94% dos Portugueses pensa que esse exército contribuiria para uma maior afirmação da UE no Mundo.

A análise das respostas revela que as gerações mais velhas têm maior predisposição para concordar com o regresso do SMO e com a criação do exército único europeu.

José Carochinho, investigador do Centro de Investigação em Ciência Política, Relações Internacionais e Segurança da Universidade Lusófona, realça que os indivíduos de esquerda e de direita são contra o SMO, sendo os  do centro que são “manifestamente a favor”.

Já a ideia de criação do exército único europeu acentuou-se com o início da guerra na Ucrânia. “Naturalmente, que a guerra teve a sua influência”, refere o coautor da análise.

O estudo contou com a participação de Portugueses de várias faixas etárias (dos 18 aos 72 anos). A maioria é residente em meio urbano (88,1%) e tem licenciatura ou grau académico superior.

Em maio, a ministra da Defesa Nacional defendeu que “não tem sentido reinstituir um serviço militar obrigatório”, defendendo que esse sistema “não responde às necessidades estratégicas” das FA, que precisam de “militares qualificados”, com “tecnicidade”.

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Entretanto, recentemente, o chefe Estado-Maior da Armada (CEMA), almirante Henrique Gouveia e Melo, veio a terreiro, no Expresso, repropor o debate, considerando que o cansaço ocidental com a guerra na Ucrânia, a reconfirmação da liderança da Rússia, as próximas eleições nos EUA e a emergência de um novo ator global a ensaiar a alteração à ordem internacional nos fazem sentir “a brisa quente e abafada, prenunciadora das tempestades”.

O CEMA lança a hipótese de estarmos ante o fim da Ordem Ocidental, não no confronto ideológico entre o capitalismo e o comunismo, mas “entre dois blocos que se vão agregando entre democracias e autocracias”. Seja como for, não é opção ignorar que “viveremos tempos perigosos. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e a UE, pilares da segurança da e prosperidade ocidentais, podem ser submetidos às maiores provações e testes de stresse. Além disso, Portugal, na sua posição geoestratégica, apesar de afastado da frente de batalha, não pode ignorar as tempestades que se aproximam. É “falsa a segurança que a distância à Ucrânia nos dá”, acentua o almirante, explanando: “Só em 2023 a Marinha Portuguesa efetuou o seguimento e controlo de mais de 40 passagens de navios de guerra russos ou afins, nas águas sob soberania ou jurisdição nacional. A maior parte dos mísseis de cruzeiro russos podem atingir diretamente o nosso território, sem sequer termos de equacionar os mísseis balísticos. Poderão ser disparados da Federação Russa, ou de qualquer seu aliado, ou proxy em África, ou mesmo de navios e submarinos nas nossas águas.”

A seguir, chama a atenção para o facto de, no mar, a fronteira com a Rússia estar “ao alcance da nossa vista”. Basta, para nos atacarem, haver um alvo remunerador, militar, psicológico ou comunicacional, e estarem criadas as condições políticas de confronto. Ora, pertencendo Portugal à NATO e à UE, se o conflito se alastrar à Europa seremos envolvidos. Entretanto, podemos ser alvo de outras ações em fases cinzentas do conflito, como a destruição de cabos submarinos ou ações híbridas de difícil atribuição, por estarmos em “zona de elevado valor geoestratégico para a coligação ocidental” e, igualmente, para a Rússia. Portanto, segundo o CEMA, temos de “reagir enquanto sociedade, sair do estado do comodismo e indiferença”, pois, “a defesa dos nossos interesses, das nossas vidas”, exige “uma atitude prospetiva, proativa e vigilante”.

O confronto na Ucrânia, onde o futuro da Europa pode ser decidido, leva a refletir que o produto interno bruto (PIB) da Rússia é de cerca de 1,5 triliões de dólares; e deste, cerca de 9% são despesa militar. Este esforço excessivo para uma sociedade carenciada de tudo, só possível em autocracia, corresponde à despesa previsível, em 2024, de cerca de 132 mil milhões de dólares. Se a UE quisesse igualar o esforço económico da Rússia com a Defesa, bastar-lhe-ia despender cerca de 0,7% do seu PIB conjunto para esta área. Porém, a média atual é superior, situando-se perto dos 1,8% e, em Portugal, nos 1,4%.

Por isso, nada indicia a necessidade do aumento na despesa militar da UE, em percentagem do PIB. Todavia, esta conclusão tem fragilidades a considerar, usando a fórmula de Ray S. Cline, analista dos serviços de inteligência dos EUA – que operou na II Guerra Mundial e, depois, na Ásia – e académico reconhecido de Harvard, que quantifica o poder (P) relativo das nações como a multiplicação de dois fatores, o conexo com a capacidade (C) de um país e o conexo com fatores associados à vontade (V), ou seja: P=CxV. Assim, a fórmula expandida é: poder = (massa crítica + economia + capacidade militar) x (estratégia + vontade). A massa crítica seria a soma da dimensão do território com a da população.

Esta formulação mostra que só o pilar europeu da NATO terá mais capacidade do que a Rússia, mas que o poder efetivo pode ser muito diminuído e reduzido, se for multiplicada por uma vontade pequena, correspondente à segunda parte da equação simplificada.

Mesmo numa análise puramente quantitativa é de ter em conta que a despesa militar se subdivide em três megarubricas: pessoal, material e infraestruturas. Nos Estados ocidentais, com exércitos profissionais, o peso da componente humana ronda os 50% a 70% do investimento na Defesa. Embora o modelo seja vantajoso para a Armada e para a Força Aérea, é desvantajoso em custos e capacidade humana para forças terrestres, num cenário idêntico ao ucraniano, de carnificina em baixas diárias. Outra desvantagem é o serviço militar profissionalizado reduzir o conhecimento na população dos assuntos militares a um núcleo pequeno de cidadãos, retirando capacidade de mobilização em larga escala, em curto espaço de tempo. Um Estado autocrático com salários baixos e com um modelo de conscrição alargada gera, para o mesmo orçamento equivalente, uma capacidade humana mais significativa e disponível, em caso de necessidade.

Os exércitos requerem elevada especialização, mas não são homogéneos nessa necessidade. Por exemplo, a Infantaria continua a ser uma parte em que massa humana e números têm importância crucial. Se Vladimir Putin mobilizar um exército de 500 mil militares adicionais rapidamente e a Europa não o fizer, pode criar-se um desequilíbrio perigoso. Estando a UE e a NATO em estratégia de contenção na Ucrânia, suportando a Defesa desse país contra a invasão contrária à lei internacional da parte da Rússia, deve-se ter em conta que a melhor opção será dissuadir, com elevada credibilidade, Moscovo de crer que pode agredir, com sucesso, outros países europeus.

Tendo indústria tecnologicamente capaz, com acesso a fontes energéticas, a matérias-primas e a tecnologia, com baixos salários e reduzidos direitos sociais, produzirá muito mais para os orçamentos equivalentes no Ocidente. Por isso, estima-se que, num conflito prolongado, a UE tenha de despender (considerando o apoio necessário ao conflito tampão da Ucrânia) entre 2% e 3% do respetivo PIB, para manter equilibrada a balança do poder.

Assim, é de reequacionar o SMO ou outra variante adequada para equilibrar o rácio despesa-resultados e para gerar maior disponibilidade da população para a Defesa, pela capacidade de mobilizar, rapidamente, os recursos humanos necessários e pelo efeito que este tipo de serviço criará, no Ethos nacional e na consciencialização do coletivo, do seu interesse superior.

Devem ser as posições extremadas e preocupantes de Donald Trump lidas num contexto mais alargado às administrações americanas. Os EUA precisam de que os aliados partilhem mais o fardo da segurança coletiva do Ocidente, pois a liderança global destes e, indiretamente, do Mundo ocidental, está perante um desafio decisivo da parte da China e, futuramente, da Índia. A China já alcançou um PIB da dimensão europeia e dos EUA.

O facto de Trump expor, enfaticamente e truculentamente, as fragilidades militares da UE, criando pressão para rearmamento, corresponderá a inteligente estratégia de reforço do complexo militar-industrial dos EUA, o único disponível para garantir resposta em breve tempo. Não financiar a Ucrânia pode ser uma faceta dessa estratégia, que obrigará a UE a adquirir material militar americano em larga escala, tornando esta economia ainda mais diferenciada e pujante.

É urgente que a UE reative uma indústria militar, sob pena de vulnerabilizar a segurança europeia e ocidental. A Rússia tem a sua máquina industrial a “todo o vapor”, com três turnos diários, a contribuir para o crescimento económico e para o desenvolvimento tecnológico desta. É lei da sobrevivência, onde se inserem a guerra na Ucrânia e o regime de Putin.

Se a Europa não reforçar depressa um complexo industrial-militar sólido que reponha stocks e crie forte efeito dissuasor, podem ocorrer três situações: insuficiência militar; incapacidade de competir tecnologicamente à escala global; e significativa vulnerabilidade geoestratégica a curto e médio prazo. Desde 1998, a Rússia, então com uma despesa militar de cerca de 20 mil milhões de dólares, vem desenvolvendo a sua capacidade militar, tendo, agora, um investimento seis vezes superior a esse período, o que significa, em conjugação com os eventos de 2014, claro sinal ignorado pela UE adormecida e confiante na proteção dos EUA.

A Rússia não terá de atacar todo o Ocidente de uma vez, só precisa de uma estratégia progressiva, começando por anexar as franjas, paralisando a resposta pela conjugação do medo nuclear, do comodismo dos ‘civilizados’, do egoísmo e das divisões interaliadas, da perturbação periférica em África e no Médio Oriente e pela junção de uma grande coligação antissistema.

Após a queda do Muro de Berlim, o Ocidente negligenciou a Rússia. Não se faz isso a potência nuclear da dimensão da Rússia, a população com fortes tradições nacionalistas e numerosa, a um território euro-asiático de dimensão quase continental e repleto de recursos. Putin é só a resposta ao desleixo coletivo e ao complexo de superioridade que ditaram políticas erradas. A paz na Europa, segundo Gouveia e Melo, só se realizará com a futura integração da Rússia na economia e na estratégia ocidental.

A UE e nós, à dimensão dos nossos interesses, temos de perscrutar o horizonte com realismo, pondo em ação um plano efetivo de defesa coletiva, percebendo que o conflito-tampão da Ucrânia é decisivo para a segurança europeia, que importa desenvolver um forte complexo militar-industrial europeu, que é preciso reequacionar o sistema de recrutamento e que o reforço do pilar europeu da NATO é urgente. Com efeito o chapéu protetor dos EUA, que funcionou nos últimos 78 anos, não será posto em causa por Trump, mas pelos desafios que os EUA enfrentarão. Ora, não havendo espaço para cooperar, dissuadir será melhor e mais económico do que combater.

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À reflexão do CEMA veio justapor-se a do general Eduardo Ferrão chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), a defender que deve ser avaliada a rein­trodução do SMO.

Efetivamente, em declarações ao Expresso, um dia depois de o CEMA ter defendido, em artigo de opinião no mesmo jornal, que “reequacionar o serviço militar obrigatório ou outra variante mais adequada poderá ser uma medida necessária”, o CEME sustenta que “uma reintrodução do SMO justifica-se ser estudada e avaliada sob várias perspetivas”, e considera que “a passagem pelas fileiras equivale à frequência de uma escola de cidadania”. O SMO contribui “para o desenvolvimento de uma cultura de Defesa Nacional e de sensibilização dos jovens”, observa.

O general recorda que, até 2004, ano da eliminação do SMO, “os recursos humanos nas Forças Armadas estavam ajustados à realidade”, mas o país, agora, confronta-se com “outra realidade, e com a necessidade de recrutar e reter efetivos que garantam os níveis de prontidão definidos”.

Porém, o general assume que o SMO “não iria solucionar a falta de efetivos num exército moderno e tecnológico”, onde se exige que os militares, de todas as categorias “disponham de competências mais complexas”, num quadro que “não se coaduna com o recrutamento obrigatório”.

Por fim, é de considerar que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, já no seu terceiro ano, e a ameaça de que Putin a estenda a países da NATO (o que ele desmente) abriram, nos últimos meses, o debate em vários países da UE sobre a necessidade de recuperar o SMO. Assim, a Dinamarca, estabeleceu o SMO também para as raparigas e o presidente da Letónia, Edgars Rinkēvičs, apelou à Europa para que faça um debate sério sobre a reintrodução do SMO. “Ninguém quer lutar no exército. Mas ninguém quer ser invadido como aconteceu na Ucrânia”, enfatizou o líder letão.

A NATO quer que os países-membros invistam 2% do PIB na Defesa. Ora, do meu ponto de vista, se se quer manter umas FA eficazes, não basta atirar dinheiro para cima delas: é preciso qualificá-las, dar-lhes equipamento e efetivos com formação adequada. Não pode haver mais comandantes do que comandados. Por isso, é preciso apostar no SMO e/ou num amplo quadro permanente de praças, mas este no enquadramento de uma carreira militar longa e bem paga. Caso contrário, teremos umas FA exíguas, pouco mais do que simbólicas. E Portugal não é o Vaticano!

2024.03.29 – Louro de Carvalho

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