segunda-feira, 11 de março de 2024

A Quaresma não é um fim, mas a caminhada para a Páscoa

 

A liturgia quaresmal, recheada de intenso conteúdo teológico e concitadora de suficiente ascética, restaura e reforça o vigor da vivência cristã para a frutuosa celebração da Páscoa do Senhor e para que a nossa peregrinação na Terra seja a caminhada irreversível para Deus.

Assim, a Quaresma tem função instrumental em ordem à Páscoa, tal como a nossa peregrinação terrestre a fornece para o Além. Não obstante, Peregrinação e Quaresma são fonte de instrução discipular, tempo da supremacia do Espírito, que une anima, ensina e fortalece, ocasião para a libertação dos temores e dos perigos e cenário para o cenário para o exercício de apóstolos.

O 4.º domingo da Quaresma, Domingo da Alegria (Domingo Laetare), confronta-nos com o desígnio salvador de Deus. A salvação é iniciativa de Deus que, independentemente dos nossos méritos, nos oferece a Vida, cabendo a cada um decidir como acolhe essa oferta e que resposta lhe dá. A nossa resposta deve ser levada na alegria, marca essencial do Evangelho.

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primeira leitura (2Cr 36,14-16.19-23) adverte que, ainda que o homem prescinda de Deus e escolha caminhos de autossuficiência, Deus nunca desiste dos seus filhos: dá-lhes sempre a possibilidade de reconstruir a vida.

O Livro das Crónicas, de autor anónimo, propõe-se contar a História de Israel, desde a criação do Mundo até ao Exílio. Integra um bloco, em conjunto com os livros de Esdras e de Neemias, que se designa como “Obra do Cronista”. Privilegia a História do reino do Sul (Judá), destacando o rei David e os seus descendentes e dando algum relevo à tribo de Levi, ligada às questões litúrgicas. Porém, ignora a História do reino do Norte (Israel).

Aponta-se como certo um processo de redação em várias etapas: por volta de 515 a.C. teria surgido uma primeira edição, para legitimar o culto no segundo Templo (o reconstruído pelos Judeus regressados do Exílio na Babilónia); entre 400 e 375 a.C., uma segunda edição para vincar a autoridade de Esdras como legislador e intérprete da Tora; e, entre 350 e 300 a.C., uma terceira edição, para animar, fortalecer e consolidar a comunidade judaica, face à hostilidade dos vizinhos, particularmente dos Samaritanos. O objetivo fundamental é propor a fidelidade a Deus e à Aliança, que se deve manifestar no cumprimento da Lei e no culto do Templo de Jerusalém.

O trecho em apreço surge na parte final do segundo volume do Livro das Crónicas. O cronista refere dois factos históricos separados por quase 50 anos: a queda de Jerusalém nas mãos de Nabucodonosor (586 a.C.) e a autorização de Ciro, rei persa, de regresso dos exilados a Jerusalém, após a queda da Babilónia (538 a.C.). Entretanto, o Povo de Deus conheceu a dramática experiência do Exílio na Babilónia. Contudo, mais do que a narração pormenorizada dos factos, importa a interpretação teológica. Na verdade, o hagiógrafo não é historiador ou analista político, mas um crente preocupado em ler a História à luz da fé e em tirar daí as conclusões que se impõem.

A destruição de Jerusalém, o incêndio do Templo e a deportação para a Babilónia são vistas como o resultado lógico dos pecados da nação. “Os chefes de Judá, os sacerdotes e o Povo multiplicaram as suas infidelidades”; ignoraram os avisos de Deus através dos profetas e desdenharam os seus apelos. Por isso, a ira do Senhor abateu-se sobre o Povo.

Cita-se a profecia de Jeremias que fala do castigo de Deus que se abateria sobre a terra desolada de Judá durante 70 anos. Este número, que o Exílio, afinal, não durou, é simbólico, correspondente ao espaço de uma geração, um grande jubileu forçado por Deus, um tempo de compensação por todos os anos sabáticos que o Povo não respeitou, não cumprindo as obrigações para com Javé.

A Lei de Deus previa que, de sete em sete anos, a terra fosse deixada um ano a descansar e que, depois de sete vezes sete anos, no quinquagésimo, se celebrasse um “ano jubilar”, um tempo acrescido de descanso para a terra e para os seus habitantes. Porém, a ganância levou o Povo a não respeitar Lei, não deixando a terra descansar. E Deus compensa-a, enviando o Povo para o Exílio, o que induz a terra de Deus, martirizada pelo pecado, a descansar durante setenta anos, até ser renovada e voltar a ser a “casa” do Povo de Deus. Subjacente a esta leitura está um dos dogmas fundamentais da fé israelita: a retribuição. Segundo os teólogos, Deus retribui ao homem conforme as ações que pratica. Se o Povo vive na fidelidade à Aliança e aos mandamentos, Deus oferece-lhe a vida; se o Povo é infiel aos compromissos, recebe em paga morte e desgraça.

Esta imagem de Deus é surpreendente e chocante. Um Deus contabilista, que assenta débitos e créditos da pessoa para lhe pagar em conformidade, não é o Deus da bondade e da misericórdia cujo rosto Jesus nos revelou. Porém, subjaz a esta ideia uma intuição real: as opções erradas redundarão em sofrimento e infelicidade para nós e para os que caminham connosco.

Seja como for, o castigo não é a última palavra de Deus. Há sempre a esperança e a oportunidade do recomeço. Por trás da referência à libertação operada por Ciro e ao édito que autorizou os habitantes de Judá a regressar à sua terra, está a ideia do Deus que não abandona o seu Povo e que lhe dá, em cada momento, a possibilidade de recomeçar.

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No Evangelho (Jo 3,4-21), João apresenta, em palavras de Jesus, o plano amoroso de salvação de Deus. Por amor, Deus enviou ao nosso encontro o seu Filho Unigénito, que nos oferece a salvação. Quem acreditar em Jesus e aprender a lição do amor até ao extremo, nascerá para a Vida nova.

Jesus tinha ido a Jerusalém para a celebração da Páscoa. Lá encontrou-se e conversou com o fariseu Nicodemos, “uma autoridade entre os judeus”.

Os fariseus distinguiam-se pela adesão e fidelidade à Lei de Moisés. Os membros deste partido tinham grande influência entre o povo pela fama de observância e de prática religiosa. E João refere que Nicodemos era uma autoridade, o que pode significar que era membro do Sinédrio, um representante do judaísmo oficial.

O seu encontro com Jesus dá-se de noite. Isto pode significar que não queria ser visto com Jesus, para não prejudicar a sua posição; pode ter a ver com o hábito dos fariseus de estudar a Lei à noite; e pode querer dizer que Nicodemos estava às escuras, pois ainda não fora iluminado pela luz de Jesus. É possível que Nicodemos se situasse no judaísmo erudito que se interessava por Jesus e que queria compreendê-lo. Com efeito, aparecerá, mais tarde, a defender Jesus, perante os chefes dos fariseus, e estará presente aquando da descida de Cristo da cruz e da sua colocação no túmulo.

Na conversa noturna entre Jesus e Nicodemos, há três pontos marcantes. Primeiro, Nicodemos reconhece a autoridade de Jesus, em virtude das suas poderosas obras, mas Jesus releva que isso não basta, pois o essencial é reconhecê-Lo como o enviado do Pai, O que veio do alto revelar Deus. Segundo, Jesus sustenta que, para entender a sua proposta, é preciso “nascer de Deus” e que esse novo nascimento é o “da água e do Espírito”. Terceiro, Jesus considera que o projeto de salvação de Deus é iniciativa do Pai, tornada presente na vida dos homens através do Filho e que se concretizará pela cruz/exaltação de Jesus. Com efeito, não há Páscoa, nem ressurreição sem a cruz, mas também, se a cruz fosse o fim de linha, a missão de Jesus seria o fracasso. A cruz só é exaltada porque dela resultou a dinâmica da reunião dos filhos de Deus que andavam dispersos e a ressurreição de Jesus, que nos torna ressuscitados por Ele e com Ele, vivos para Deus Pai.  

O trecho evangélico em referência, carregado de densidade teológica, integra o teor do terceiro dos pontos acima referidos. A missão de Jesus consiste em trazer aos homens o amor de Deus e em ensiná-los a viver no amor. Será na cruz que Ele o mostrará, de forma eminente. Por isso, diz que o Messias tem de “ser levantado ao alto”, como “Moisés levantou a serpente” no deserto.

Esta referência evoca o episódio em que, no deserto, os hebreus, mordidos pelas serpentes, olhavam a serpente de bronze levantada num estandarte por Moisés e se curavam. Do mesmo modo, Jesus tem de ser levantado na cruz, para ser a fonte de vida e de salvação para aqueles que O contemplarem, pois é na cruz que Jesus manifesta o seu amor até ao extremo e que indica aos homens o caminho que devem percorrer para alcançar a salvação.

Nicodemos pensava que a Lei dava a Vida, mas a Vida plena brota do amor de Deus, expresso na cruz em que Jesus Se oferece até à última gota de sangue. Quem acredita no Homem alçado na cruz e adere a Ele e à sua proposta de Vida aprende com Ele a fazer da sua vida dom total a Deus e aos irmãos. Terá a vida eterna, pode integrar a comunidade do Reino.

Depois destas considerações, o evangelista entra em mais pormenores do plano de salvação.

Jesus, o “Filho único” de Deus enviado pelo Pai ao nosso encontro, para nos trazer a vida, é o grande dom do amor de Deus à Humanidade. A expressão “Filho único” evoca o sacrifício de Isaac: Deus comporta-Se como Abraão, capaz de se desprender do próprio filho por amor (Abraão, por amor a Deus; Deus, por amor aos homens). O “Filho único” de Deus veio ao Mundo para cumprir o plano do Pai em prol dos homens. Para isso, encarnou na nossa História humana, com o risco de assumir a nossa fragilidade; e, como consequência de uma vida gasta a lutar contra as forças das trevas, foi preso, torturado e morto numa cruz. A cruz é o último ato de uma vida vivida no amor, na doação, na entrega. A cruz, a expressão suprema do amor de Deus pelos homens, dá-nos a dimensão do incomensurável amor de Deus pela Humanidade.

Ao enviar ao Mundo o “Filho único”, Deus não tinha uma intenção negativa. O Messias não veio com uma missão judicial, nem veio excluir ninguém da salvação. Ao invés, veio oferecer a todos a Vida definitiva, ensinando-os a amar sem medida e dando-nos o Espírito que nos transforma em Homens Novos. Deus não enviou o seu Filho ao encontro de homens perfeitos e santos, mas de homens pecadores, egoístas, autossuficientes, para lhes apresentar um estilo de vida. E foi o amor de Jesus – e o Espírito que Jesus deixou – que transformou os homens autossuficientes e os inseriu num dinamismo de vida nova e plena.

Diante da oferta de salvação, cada pessoa tem de fazer a sua escolha. Quando aceita Jesus e adere a Ele, escolhe a vida; e, se prefere continuar escrava de esquemas de autossuficiência, rejeita Deus e autoexclui-se da salvação. A salvação ou a condenação não são o prémio ou o castigo que Deus dá à pessoa pelo seu bom ou mau comportamento, mas são o resultado da escolha livre da pessoa, face à oferta incondicional de salvação que Deus lhe faz. Todavia, a oferta de salvação, da parte de Deus, nunca é retirada; continua aberta e à espera da resposta da pessoa. A responsabilidade pela Vida definitiva ou pela morte eterna não recai sobre Deus, mas sobre cada um de nós. Nesta ótica, também não há um julgamento no final dos tempos, no qual Deus pesa na balança os pecados dos homens, a ver se salva ou condena: o juízo realiza-se aqui e agora e depende da atitude que a pessoa assume ante a proposta de Jesus.

Por fim, João repete o tema da opção pela Vida (Jesus, “a Luz”) ou pela morte (“as trevas”). Por vezes, os homens rejeitam a proposta de Deus e preferem a escravidão e as trevas. Essa opção já constitui uma sentença e são os homens que a pronunciam, pois rejeitaram a Vida. Porém, outros veem a beleza do amor, escolhem a luz e vivem no amor. Animados pelo Espírito de Jesus, são sinais de Deus no Mundo, com obras a refletir o amor e a traduzi-lo em gestos de serviço simples e humilde, de cuidado, de entrega, de doação. São os que nasceram de novo, do alto (da contemplação do Homem levantado na cruz), da água e do Espírito.

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segunda leitura (Ef 2, 4-10) mostra que, apesar da nossa fragilidade, Deus nos ofereceu, em Cristo, a Vida e a salvação. Não o fez pelos nossos méritos, mas por oferta totalmente gratuita, em resultado do amor que nos tem.

Éfeso, na costa ocidental da Ásia Menor, grande e próspera, era a capital da Província Romana da Ásia. O seu porto ligava o interior da Ásia Menor com as demais cidades do Mediterrâneo.

Quando Paulo lá chegou, na terceira viagem missionária, encontrou alguns cristãos escassamente preparados. Procurou instruí-los e dar-lhes adequada formação. Permaneceu na cidade durante mais de dois anos, ensinando na sinagoga e, depois, na “escola de Tirano”. Assim, reuniu à sua volta um número considerável de pessoas convertidas ao “Caminho”. E foi aos anciãos da Igreja de Éfeso que Paulo confiou, em Mileto, o seu testamento espiritual, apostólico e pastoral.

Todavia, a carta aos Efésios é bastante impessoal e não reflete a relação de afeto do apóstolo com eles. Por isso, alguns comentadores duvidam de que a carta venha de Paulo, mas outros pensam que o texto que chegou até nós é um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia Menor, inclusive à comunidade cristã de Éfeso.

Seja como for, a carta apresenta-se como um escrito de Paulo quando o apóstolo está na prisão. O portador terá sido Tíquico. Estamos por volta dos anos 58/60 perante um texto de grande riqueza temática, de reflexão amadurecida e completa, com uma síntese da teologia paulina.

O trecho em causa integra a parte dogmática da carta, ou seja, uma reflexão sobre o papel de Cristo na salvação do homem. Começa por verificar a situação de pecado em que o homem vive e da qual, por si só, não pode sair.

Deus é rico em misericórdia e ama os seus filhos com imenso amor. Por isso, à nossa situação de pecadores, Deus responde com a graça. O amor libertador de Deus não é condicional, derramando-se sobre os homens, se e quando se convertem, mas incondicional, atingindo-os, mesmo quando percorrem caminhos de pecado e de morte.

Aos homens, orgulhosos e autossuficientes, Deus ofereceu, por meio de Cristo, uma nova vida. Tornados membros de Cristo, ressuscitaram com Cristo e sentaram-se com Ele nos céus.

O autor da Carta aos Efésios não se refere à ressurreição do homem e à sua glorificação como coisa futura, mas como facto já conseguido (usa o aoristo grego, que tem significado de passado). No entanto, essa ação passada afeta o presente e tem implicações nele: unido a Cristo, o cristão já ressuscitou e já foi glorificado. Continua a viver na terra, sujeito à finitude e às limitações da vida presente, mas é já, aqui e agora, cidadão do céu, pois Deus já introduziu na débil e frágil natureza humana os dinamismos da vida eterna. A vida do cristão está, por isso, marcada pela dupla condição da fragilidade e da eternidade. Apesar das suas limitações, o cristão tem de testemunhar e anunciar a vida nova que Deus já lhe ofereceu.

Elemento incontornável ao qual a carta dá grande importância é a gratuidade da ação salvadora de Deus. A salvação não é conquista nossa, nem resulta das nossas obras ou méritos, mas é puro dom de Deus, fruto do seu amor incondicional. Portanto, não há lugar a sentimento de orgulho ou a atitude de autoglorificação. A salvação é oferta gratuita de Deus aos seus filhos, mesmo que a não mereçam. Dela nasce a nova Humanidade que pratica boas obras. As boas obras não são condição para se receber a salvação, mas o resultado da ação da graça de Deus, derramada gratuitamente sobre nós.

2024.03.11 – Louro de Carvalho

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