sábado, 2 de março de 2024

É preciso ter coragem para apurar a verdade e a expor

 

Nem sempre a verdade se mostra simpática no devir de cada dia e, por vezes, é muito incómoda e até dolorosa. Isto sucede em todas os setores da vivência pessoal e comunitária e em todas as camadas da sociedade e em todos os setores da vida pública.

A cada passo, as pessoas são confrontadas com a verdade (ou com a falta dela) na sua vida e na relação com os demais. Não raro, tendem a não encarar ou a mascarar qualquer situação de ignorância, de inadvertência, de lapso, de erro ou de mentira em que tenham incorrido. E, no que respeita a apontar falhas a outrem, as situações são díspares: ou são ousadas e apontam aos outros tudo quanto neles lhes parece ser mentira, ignorância, erro, inadvertência ou lapso (a ordem dos conceitos não é inócua); ou, inibidas por temor reverencial, medo, cobardia ou incapacidade de expressão, calam o que deveriam denunciar; ou ainda, levadas pela hipocrisia ou pelo interesse, ocultam a verdade dos outros e enveredam pela via da adulação.  

Muitas vezes, no exercício de uma profissão na empresa privada ou no serviço público, a ânsia de progressão e de promoção ou da conquista de um prémio de desempenho e do reconhecimento do mérito concita um comportamento de falsidade; e, no caso de empresários ou de trabalhadores independentes, não raro, se falta a compromissos assumidos, se vende gato por lebre e se faz publicidade enganosa ou marketing não condicente com a realidade. 

Em Política, emerge o leilão de promessas de reformas, de benesses e de melhorias, muitas delas sem suporte financeiro, e useira e vezeira é a atribuição da culpa do que está mal ao governo anterior ou ao povo, que escolhe mal; no sistema financeiro e nas grandes empresas, tudo serve de pretexto para “reestruturação” e para mascarar lucros ou prejuízos; e, na Justiça, investiga-se ao mínimo indício, se convém assim, e protela-se a investigação para momento oportuno, se convier de outra forma, como se instauram processos gigantescos, os ditos megaprocessos que são demasiado morosos e que, habitualmente, dão em nada ou em muito pouco.

Em política, a prestação de contas resolve-se com a demissão ou com o fim de mandato, em que o eleitorado não faz propriamente um juízo moral sobre a governação anterior, mas vota de acordo com a posição política a que os diversos eleitores se encostam naturalmente ou conforme a propaganda que enforma a campanha eleitoral, tantas vezes feita de casos, de lapsos, de mentiras, de promessas e de meias verdades sobre o que é proposto para o futuro por cada força partidária.

A banca e as seguradoras emolduram os contratos e as alterações contratuais com um montão de papéis, em que muito do texto é redigido em carateres de mínima dimensão, bem como por decisões unilaterais, dando ao cliente a possibilidade de denunciar o contrato, caso não concorde.

A Justiça escapa à prestação de contas a coberto da autonomia do Ministério Público (MP) e da independência dos tribunais. A prestação de contas esgota-se dentro do sistema, com exceção das, por vezes, notórias divergências entre os juízes e o MP. No entanto, surgem, de vez em quando, da parte do judiciário, tiradas de acusação aos políticos e à administração pública, parecendo fazer crer que há um escol social imune. Além disso, perde-se imenso tempo a distinguir os diversos tipos de responsabilidade: política, disciplinar, civil e criminal. Outras vezes, confunde-se tudo. 

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Todo este arrazoado me ocorreu a propósito do discurso papal na audiência de inauguração do 95.º ano judiciário do Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano, a 2 de março, em que Francisco enfatizou que “é preciso ter coragem enquanto se está empenhado em garantir que os julgamentos sejam realizados de forma justa e se está sujeito a críticas”. Face às injustiças, acrescenta o Pontífice, não se deve resignar, mas expressar indignação e ter a força “para tentar mudar” as realidades inaceitáveis.

Com efeito, a coragem, unida à fortaleza, garante “a constância na busca do bem e torna a pessoa capaz de enfrentar as provações”, por mais críticas que sejam.

O Papa Francisco, no seu discurso, cuja leitura foi confiada a monsenhor Filippo Ciampanelli, da Secretaria de Estado, dada a impossibilidade de o autor o proferir, devido a uma bronquite, refletiu sobre a virtude da coragem que representa “uma qualidade particular da alma, característica de algumas pessoas heroicas”. Todavia, na perspetiva cristã, é também “um traço que é concedido e fortalecido no encontro com Cristo, como fruto da ação do Espírito Santo que qualquer pessoa pode receber, se O invocar.

Por isso, o Papa revelou que a coragem é algo em que pensa, “várias vezes, ao acompanhar os eventos que afetam a administração da Justiça, também no Estado da Cidade do Vaticano”.

Na verdade, a coragem é a força para não se conformar com as injustiças e, ao mesmo tempo, é o antídoto para os corruptos, colocando-os “por assim dizer, num canto, porque os seus corações estão fechados e endurecidos”. A coragem faz resistir ao suborno, à crítica, à pressão.

Mesmo em sociedades bem organizadas, bem regulamentadas e apoiadas por instituições, a coragem pessoal é necessária para lidar com diferentes situações. Sem audácia, corre-se o risco de ceder à resignação e negligenciar muitos pequenos e grandes abusos. Os corajosos não almejam o seu próprio protagonismo, mas a solidariedade com os irmãos e irmãs que carregam o fardo dos seus medos e fraquezas. Vemos, com admiração, essa coragem em tantos homens e mulheres que passam por provações muito difíceis. E o Pontífice exorta a que “pensemos nas vítimas de guerras ou nos que são submetidos a contínuas violações dos direitos humanos, incluindo os muitos cristãos perseguidos”. “Diante dessas injustiças, o Espírito dá-nos força para não nos resignarmos e desperta em nós a indignação e a coragem: indignação diante dessas realidades inaceitáveis e coragem para tentar mudá-las”, considera Francisco.

A acentuar a necessidade da coragem em todos os momentos da vida e em todos os setores da atividade profissional e social, o autor da preleção, enfatizou: “Com coragem, somos chamados “a enfrentar também as dificuldades da vida quotidiana, na família e na sociedade, a comprometermo-nos com o futuro dos nossos filhos, a proteger a casa comum, a assumir as nossas responsabilidades profissionais”. E, dirigindo-se, em particular, aos magistrados do Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano, sustentou que, juntamente com a prudência e a justiça, “a tarefa de julgar exige as virtudes da fortaleza e da coragem, sem as quais a sabedoria corre o risco de permanecer estéril”. “É necessária a coragem”, lembra o Papa, “para ir até no fim no apuramento rigoroso da verdade”.

E isso é especialmente verdadeiro, quando uma conduta particularmente séria e escandalosa surge e deve ser sancionada, ainda mais quando ocorre dentro da comunidade cristã. É preciso coragem, quando se está empenhado em garantir o devido andamento dos processos e se está sujeito a críticasA solidez das instituições e a firmeza da administração da Justiça são demonstradas pela serenidade de julgamento, pela independência e pela imparcialidade dos que são chamados a julgar, nos vários estágios do processo. A melhor resposta é o silêncio diligente e o compromisso sério com o trabalho, que permitem que os tribunais administrem a Justiça com autoridade e imparcialidade, garantindo o devido processo, respeitando as peculiaridades do sistema vaticano.

O Papa não esquece que está perante um tribunal de um Estado cristão, que administra a Justiça em nome do próprio Pontífice. Por conseguinte, considerou, perante os seus magistrados, que a coragem deles deve ser sustentada pela oração. É preciso ter coragem “para implorar em oração que a luz do Espírito Santo ilumine sempre o discernimento necessário para chegar ao resultado de um julgamento justo”, observou.

E, apontando a necessidade do discernimento, lembrou que o discernimento é feito “de joelhos”, implorando o dom do Espírito Santo, para que se possa chegar a decisões que vão na direção do bem dos indivíduos e de toda a comunidade da Igreja. Efetivamente, como afirma a Lei da CCCLI sobre a Ordem do Estado, “administrar a Justiça não é apenas uma necessidade temporal. A virtude cardeal da justiça, de facto, ilumina e sintetiza a própria finalidade do poder judiciário próprio de cada Estado, para cultivar o qual é essencial, em primeiro lugar, o compromisso pessoal, generoso e responsável daqueles a quem é confiada a função judiciária”, discorreu. Esse compromisso postula ser sustentado pela oração. Não se deve ter medo de perder tempo dedicando muito tempo a isso. E isso também requer coragem e fortaleza.

Aos magistrados do Tribunal e da Promotoria, Francisco desejou que, no serviço da Justiça, possam “manter sempre, junto com a prudência, a coragem cristã”.

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Paralelamente ao Tribunal do Estado da Cidade dos Vaticano, a Cúria Romana, para o desempenho papal da jurisdição sobre a Igreja Católica é dotada de dois tribunais: o Tribunal da Rota Romana e a Signatura Apostólica. Este último é o Supremo Tribunal que resolve as disputas decorrentes de atos do poder administrativo eclesiástico.

Com a reforma da Cúria Romana operada pela Constituição Apostólica “Praedicate Evangelium”, (PE) de 19 de março de 2022, faltava ajustar este Tribunal às exigências da reforma. Para colmatar essa lacuna, foi publicada, a 28 de fevereiro, a Carta Apostólica em forma de motu proprio “Munus Tribunalis”, que modifica a Lex propria Supremi Tribunalis Signaturae Apostolicae (LPSA), de 21 de junho de 2008.

“Ao exercer sua função de Supremo Tribunal da Igreja”, diz o preâmbulo, “a Signatura Apostólica coloca-se ao serviço do supremo ofício pastoral do Romano Pontífice e da sua missão universal no Mundo. Assim, ao resolver as controvérsias que surgiram sobre um ato do poder administrativo eclesiástico, o Supremo Tribunal proporciona um julgamento de legitimidade sobre as decisões emitidas pelas instituições curiais no seu serviço ao Sucessor de Pedro e à Igreja universal”.

As mudanças dizem respeito à substituição do termo “clérigos” pelo termo “presbíteros”, no artigo 1.º da lei; à substituição do termo “Dicastério” pelo termo “Tribunal”, no artigo 3.º, e pela designação “Signatura Apostólica”, no artigo 32.º; à substituição do segmento “emitida pelos Dicastérios da Cúria Romana” pelo segmento “emitida pelas Instituições curiais”, no artigo 34.º; à substituição do segmento “promover e aprovar o estabelecimento de tribunais interdiocesanos” pelo segmento “aprovar a ereção de tribunais de todos os géneros constituídos pelos bispos de várias dioceses”, no artigo 35.º; e à substituição do termo “Dicastério” pela designação “Instituição curial”, nos artigos 79.º, 80º, 81.º, 92.º e 105.º.

Como este Supremo Tribunal observa não só a lei universal (ver cânone 1445 CIC: Código de Direito Canónico) e a Constituição Apostólica “Praedicate Evangelium” (ver artigos 194.º-199.º PE), mas também se rege por lei própria, finalizou a reforma da Cúria Romana, nos termos do artigo 250 § 1 PE, é necessária uma harmonização dos referidos textos regulamentares, adaptando o texto da LPSA, não por preciosismo, mas para o fazer corresponder às novas situações.

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Apurar a verdade e prestar contas decorrem da obrigação de responder pelas ações próprias, pelas dos outros ou pelas coisas e tarefas que nos são confiadas. Cedo, a prestação de contas se assumiu como necessidade moral e patrimonial, em que a vida económica do homem primitivo terá feito surgir o que designamos por objeto da contabilidade, quer o confinemos ao património ou massa de bens administráveis, quer o alarguemos a toda a sistematologia económica. Hoje, a prestação de contas é, por natureza histórica, necessidade vital das diversas entidades e é sentida como obrigação financeira que empresas, instituições ou associações e outros devem cumprir.

Sendo imprescindível para os gestores, contribui para a transparência de gastos e de aplicação dos recursos. Ora, a transparência e a verdade, mutatis mutandis, são exigência de toda a atividade política, económico-financeira e judiciária, sobretudo na componente do seu exercício em nome de outrem (na Política e da Justiça, em nome do povo; noutros casos, em nome dos clientes).

Isso implica rigor e, em muitos casos (contra vários tipos de tentação), ousadia e coragem.

2024.03.02 – Louro de Carvalho

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