terça-feira, 26 de março de 2024

O último Conselho de Ministros de Costa: o estertor do “adeus”

 

O primeiro-ministro (PM) cessante, António Costa, convocou, para 25 de março, nas novas instalações do governo – antiga sede da Caixa Geral de Depósitos (CGD) – o seu último Conselho de Ministros (CM), tendo convidado para a ele presidir o Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa, nos termos da alínea i) do artigo 133.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e cuja agenda genérica era o avanço da reforma do Estado.

Lido o respetivo comunicado, tive a sensação de que se passou algo de bizarro nas intervenções do CM, após as eleições legislativas de 10 de março, que ditaram a vitória, por uma unha negra, da Aliança Democrática (AD).

Entendo que o governo tenha querido preparar com solidez os dossiês de transição para o novo governo e que tenha feito questão de, publicamente, fazer gala da proeza. Manifestei, por várias vezes, alguma simpatia pela ação dos três governos do Partido Socialista (PS), que lograram, a princípio, a necessária descrispação e alguma paz social e que até geriram o país em tempo de pandemia, de guerra e de inflação, acabando por dar azo a generalizado mal-estar social, nem sempre com a motivação mais certa e oportuna. Creio, mesmo, que houve ação concertada da contestação da parte de forças políticas opostas, de empresas de comunicação social e de alguns grupos sociais e profissionais.    

Não obstante, não posso inibir-me de apontar a petulância exibida nesta última reunião do governo, a que o PR deu a mão, como se o seu relacionamento com o PM tivesse sido o da paz entre os anjos, sobretudo após a conquista da maioria absoluta do PS em 2022.        

O CM de 25 de março, já depois de indigitado o novo primeiro-ministro, depois do início da madrugada do dia 21 – tendo o PR o cuidado de mencionar que o secretário-geral do PS tinha “reconhecido e confirmado que seria líder da oposição” (o que não é da sua conta) – aprovou os seguintes decretos-leis: o que regula a organização da administração direta do Estado; e o que aprova as orgânicas da Secretaria-Geral do Governo e do Centro de Serviços Comuns.

Também aprovou a Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo 2025-2030, que introduz medidas com enfoque na prevenção e na criação de um sistema integrado de alerta de situações de risco; intervenção personalizada com gestores de caso ao nível local; aumento de soluções de housing first e apartamentos partilhados; intervenção especializada junto de públicos especialmente vulneráveis; e reforço do acompanhamento das redes locais de apoio às pessoas em risco ou que vivenciam a condição de sem-abrigo.

Aprovou, ainda, um conjunto de diplomas, na generalidade, que constam da pasta de transição deixada ao novo executivo e que constituem reformas fundamentais para que seja efetuado o 5.º pedido de pagamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), ou seja, as seguintes propostas de lei: a dos incentivos fiscais com vista ao desenvolvimento do mercado de capitais e à promoção da capitalização das empresas não financeiras; a do novo Estatuto da Carreira de Investigação Científica, garantindo o reforço do emprego científico e académico, assim como a estabilidade profissional ao pessoal docente e de investigação a exercer funções nesses estabelecimentos; a do regime do pessoal docente e de investigação dos estabelecimentos de ensino privado, garantindo o reforço do emprego científico e académico, bem como a estabilidade profissional ao pessoal docente e de investigação a exercer funções nesses estabelecimentos; a do novo enquadramento legal dos incentivos ao financiamento na área da cultura e do estatuto do mecenato cultural, do regime de emissão e atribuição de vales culturais e do Fundo para a Aquisição de Bens Culturais para os Museus e Palácios Nacionais; e a da reforma da propriedade rústica, através da aprovação de alterações legislativas, para reverter o fracionamento da propriedade rústica, e promover o emparcelamento e a gestão ativa e sustentável do território.

Penso que, em certa medida, é excrescente a norma do n.º 5 do artigo 186.º da CRP sobre a limitação do governo “à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a estão dos negócios públicos”, quando não goza da plenitude de poderes. Com efeito, não havendo parlamento em funções, não faz sentido fazer-lhe propostas de lei e as autorizações legislativas caducaram. Portanto, o governo em gestão, como sempre, faz decretos-leis em matéria que não seja da competência exclusiva do parlamento, cabendo ao PR a promulgação ou o veto.   

Dito isto, entendo que os decretos-leis aprovados a 25 de março (como os de 14 e de 21), embora extemporâneos, do meu ponto de vista, podem ter cabimento, a juízo do chefe de Estado. Ao invés, as propostas de lei, agora aprovadas, não passam de fogo-de-vistas sem qualquer validade, denotam pressão política descabida sobre o novo governo e sobre o novo parlamento e são um desconcerto, pois, se o governo não pode fazer propostas a parlamento dissolvido, também não as pode fazer a parlamento que ainda não está em funções ou de que o governo cessante não dimanou.

As pastas de transição deviam estar organizadas e ser entregues em cada ministério, podendo o PM cessante fazer, na praça pública (não institucionalmente) a apologia do trabalho do governo.               

Algo semelhante, embora não tão provocatório, sucedeu com os CM de 14 e 21 de março, após as eleições. O CM de 14 de março aprovou os seguintes decretos-leis: o que altera o Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura (EPAC); o que regulamenta a arbitragem para a apreciação dos fundamentos da denúncia de convenção coletiva e a arbitragem para a suspensão do período de sobrevigência, concretizando compromissos da Agenda do Trabalho Digno; o que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2022/2380, relativa à harmonização da legislação dos Estados-membros respeitante à disponibilização de equipamentos de rádio no mercado; o que assegura a execução na ordem jurídica portuguesa do Regulamento (EU) 2017/745, relativo aos dispositivos médicos; e o que altera o regime jurídico do cadastro predial.

Aprovou a contribuição nacional para o programa, conduzido pela Chéquia, de apoio à Ucrânia, bem como a criação da Estrutura de Missão para o Licenciamento de Projetos de Energias Renováveis 2030 (EMER 2030) enquanto entidade responsável por garantir o cumprimento dos objetivos do Plano Nacional de Energia e Clima 2030 e acelerar a concretização dos projetos de energia renováveis. 

O CM de 21 de março aprovou os seguintes decretos-leis: o que procede à extinção das Administrações Regionais de Saúde, IP (ARS, IP), sendo as atribuições remanescentes sucedidas por outros serviços e entidades, designadamente a Direção-Geral da Saúde (DGS), a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde, IP (DE-SNS), a Administração Central do Sistema de Saúde, IP (ACSS, IP), e o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, IP (INSA,IP); o que introduz alterações legislativas que enquadram o funcionamento do novo sistema de informação «Empresa 2.0», para melhorar os serviços prestados no âmbito do regime de constituição de sociedades online, através da disponibilização de novas soluções tecnológicas e de serviços digitais mais adequados aos tempos atuais; o que estabelece a aplicação do regime do sistema de indústria responsável à atividade de produção de gás, para introduzir a clareza normativa necessária à concretização dos projetos apoiados no âmbito do PRR; e o que procede a correções e clarificações ao Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE).

Como o CM de 24 de março, os de 14 e de 21 de março aprovaram despesas referentes a projetos em desenvolvimento e a obras em curso, bem como resoluções atinentes a questões nacionais ou a compromissos internacionais, presentes ou de continuidade no futuro. Sobre isto nada há a opor.   

Quanto à verborreia legislativa dos últimos dias do mês, só vi parecido com o que se passou com o V Governo Provisório, em 1975, o que deu origem a caricatura de imprensa segundo a qual o Presidente da República, Francisco da Costa Gomes, exclamava: “Já não assino mais nada!”

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Na manhã de 25 de março, o governo veio a terreiro repudiar, por falsas, as acusações de Marques Mendes na SIC, no dia 24, como a de que Bruxelas retém pagamentos do PRR ou as acusações de negligência da ação governativa e até quanto ao conteúdo das propostas que comentou.

Esclareceu ter entrado em gestão a 8 de dezembro de 2023, respeitando, desde então, os limites constitucionais. Assim, não gozava das condições para aprovar diplomas que alteram, de forma estrutural, a organização da Administração Pública Central, nomeadamente no apoio à decisão política. Com a dissolução da Assembleia da República (AR), aumentaram os constrangimentos à atuação do governo, não tendo sido possível submeter e ver aprovar a Proposta de Lei relativa ao mercado de capitais, pelo que não houve negligência em relação às reformas previstas no PRR, mas “um trabalho permanente para a conclusão das medidas e o respeito pelo quadro político que vivemos e que o governo não desejou, nem defendeu”. 

Apesar disso, o governo prosseguiu na preparação dos diplomas relacionados com a Reforma da Administração Pública, que “envolveu um trabalho exaustivo de recolha e tratamento de informação que permitiu a preparação do modelo concetual pelo grupo de trabalho com a missão de executar a reforma funcional e orgânica da Administração Pública”, criado pelo Despacho n.º 14408/2022, de 16 de dezembro de 2022. O grupo de trabalho prosseguiu a elaboração da proposta de acordo com o cronograma proposto, incluindo a auscultação das áreas governativas envolvidas.

Desmentiu que esteja prevista qualquer fusão dos gabinetes de planeamento que, pelo contrário, serão reforçados com esta Reforma. E, declarando que as metas e marcos relativos ao 5.º pedido de pagamento se encontram em fase avançada de concretização, cabendo agora ao novo governo submeter esse pedido, sendo que o governo deixará os dossiês legislativos preparados nas metas a terminar, garantindo que o país continua a beneficiar dos fundos do PRR, rejeita que se esteja ante uma retenção de pagamentos, podendo o próximo governo concluir o processo e ser Portugal o 2.º país em condições de submeter o 5.º pedido de pagamento, em linha com o cronograma estabelecido com a Comissão Europeia. 

Por fim, relevou que “Portugal está na linha da frente da execução, tendo já cumprido 102 marcos e metas relativos a investimentos e reformas, 22% do total do programa, o que permitiu receber quatro pedidos de pagamento, algo que só Itália também conseguiu”. 

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É normal que, em tempo de mudança dos homens do leme, haja galhardetes destes. O comentador da SIC é tendencioso e sabe que todos os grandes projetos conhecem fases de atraso e dificuldades de execução física e financeira, bem como o risco de desvios, a que a fiscalização deve pôr cobro. Por sua vez, o governo entrou em contradição: com poderes limitados, deixou decisões para os futuros governantes, mas, após as eleições, ganhou novo furor decisório e até extrapolou as suas competências, nalguns aspetos, com o escopo, ao menos aparente, de pressão sobre os novos detentores do poder político. É, com alguma razão, o estertor do “adeus” amargurado!

No entanto, António Costa revelou-se um mestre das despedidas com chá: à despedida de Cavaco Silva do seu mandado presidencial, convidou-o para presidir a um CM sobre a temática do mar; e a Marcelo, que já tinha convidado para presidir a um CM, convidou-o, novamente, quando está de saída da chefia do governo. É gesto que lhe fica bem, mas com alguma hipocrisia, não pela presidência do CM pelo PR, mas pelas declarações de ambos. O PR destacou a “solidariedade institucional” entre o executivo e a Presidência da República, desde a chegada do PS ao poder, em 2015, não sendo “fácil encontrar muitos casos na política portuguesa” deste género. E o PM vincou: “Nem sempre coincidimos, mas será difícil encontrar outro período em que as relações tenham seguido de forma tão fluida como com este governo.”

Constrangimentos criados pelo PR, questionando diretamente governantes e exigindo ou sugerindo demissões, dissolução da AR de maioria e censura pública de medidas apresentadas desdizem a propalada solidariedade e a almejada estabilidade. E não vejo como a dita colaboração entre os dois poderes tenha sido “positiva e pedagógica” (como disse o PR).  

2024.03.26 – Louro de Carvalho

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