domingo, 24 de março de 2024

PMO, condição rara que leva a ver os rostos deformados

 

Às pessoas com esta condição os rostos aparecem distorcidos de diversos modos. Por exemplo, umas veem demónios, outras veem elfos (seres belos e/ou mágicos). Até agora, a literatura científica registou 75 casos. Trata-se da prosopometamorfopsia ou PMO, doença rara que se exprime num distúrbio visual caraterizado por perceções alteradas de rostos.

Segundo o “Journal of Clinical Neurology”, 21 de dezembro de 2012, e a “Wiquipedia – The Free Encyclopedia”, as caraterísticas faciais são distorcidas de vários modos, como a queda, o inchaço, a descoloração e as mudanças de posição. É distinta da prosopagnosia, que se carateriza pela incapacidade de reconhecer rostos. Em cerca de metade dos 75 casos relatados, as caraterísticas de ambos os lados do rosto parecem distorcidas. Na outra metade, as distorções ficam restritas a um lado da face (esquerdo ou direito), sendo o distúrbio, neste caso, denominado de hemiprosopometamorfopsia.

Geralmente, os rostos tendem a parecer distorcidos a uma pessoa afetada por essa condição. Quem dela sofre é capaz de reconhecer rostos normalmente, mas percebe-os como estranhamente desfigurados. Tais alucinações faciais são, geralmente, descritas como feias e com proeminentes olhos e dentes. Alguns descreveram os rostos como tendo uma qualidade de desenho animado.

Os rostos são percebidos como contorcidos e com caraterísticas deslocadas. Por exemplo, um paciente descreveu o rosto de uma pessoa com o nariz desviado para o lado, a boca posicionada na diagonal e uma sobrancelha mais alta do que a outra. A PMO pode envolver perceções de toda a face ou só de s um lado da face (geralmente, após lesão no hemisfério direito).

Ainda é desconhecida a causa definitiva da PMO. Contudo, há várias teorias potenciais na literatura desta área. Em geral, tal condição vem associada a danos ou a anormalidades em diversas áreas cerebrais (lobos temporal, occipital, parietal e frontal). Em alguns casos, o desenvolvimento de MPO é manifestação de epilepsia. E pode estar ligada à causalidade a hiperatividade nas áreas centrais ou distribuídas da face (sem lesões).

Estudos de imagem funcional em humanos identificaram uma área no giro fusiforme, ativada seletivamente por estimulação, quando exposta a rostos, a área facial fusiforme (FFA). Outra área conhecida por ser ativada por estímulos faciais é o sulco temporal superior (STS). Esta região é particularmente ativa, quando tem de processar expressões faciais, sobretudo as caraterísticas expressivas relacionadas com os olhos. Por isso, sugeriu-se que olhos proeminentes (caraterística típica das perceções faciais) nas distorções registadas estão mais de acordo com o aumento da atividade (o que causaria uma super-representação dos olhos) dentro do STS, em vez da área da face fusiforme. Paralelamente, descobriu-se que a estimulação das regiões seletivas da face fusiforme posterior e média num paciente com epilepsia resistente a medicamentos resultou em perceções consistentes com as de metamorfoses faciais (o paciente viu a face do experimentador começar a cair), o que permitiu concluir que as distorções percebidas se correlacionaram com alterações de sinal no FFA do paciente, e não no STS.

A PMO é uma alucinação facial incluída no grupo de alucinações visuais complexas. Ao invés de outras formas de alucinações, como a alucinose peduncular ou a síndrome de Charles Bonnet, não predomina num determinado horário do dia; é uma experiência constante. Todavia, pacientes com a síndrome de Charles Bonnet notaram descrições de PMO. Esta forma de distorção percetiva, juntamente com outras, como a macropsia e a micropsia (alteração do tamanho percebido do objeto) e a palinopia (variedades espaciais e temporais e poliopia) são classificadas na categoria da metamorfopsia. Essas distorções podem ocorrer tanto em perceções alucinadas como em perceções verdadeiras (não alucinadas). É atribuída a alterações estruturais do cérebro ou a distúrbios funcionais como a epilepsia, a enxaqueca ou as doenças oculares.

Antidepressivos como o citalopram e o antipsicótico quetiapina foram registados como incapazes de facilitar a melhora desses sintomas. O ácido valproico foi inicialmente usado para tratar uma mulher que teve alucinações com rostos de dragão, o que aliviou totalmente os sintomas, mas, tendo desenvolvido alucinações auditivas como efeito colateral. Foi-lhe prescrita rivastigmina, o que reduziu as alucinações auditivas e os sintomas visuais. Uma mulher de 75 anos foi tratada com infusão intravenosa de heparina e cumadização durante 10 dias, o que permitiu o alívio quase total dos sintomas visuais. O tratamento varia consoante a causa das distorções faciais.

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Um estudo relatou uma mulher de 24 anos que desenvolveu prosopometamorfopsia após o parto. Inicialmente, desenvolveu enxaquecas graves e visão turva, principalmente no hemicampo visual direito, e estava confusa. Os distúrbios visuais persistiram, muito depois de a enxaqueca ter diminuído. A mulher descreveu a metade esquerda dos rostos das pessoas como “fora do lugar” e via tais distorções independentemente de os rostos serem familiares ou desconhecidos. No entanto, foi capaz de visualizar, na sua mente, rostos de pessoas familiares, sem distorções, não relatou perceber distorções em outros estímulos, além de rostos, e demonstrou os mesmos padrões, um ano após as primeiras avaliações. Descobriu-se que tinha uma lesão no hemisfério esquerdo, que resultou em distorções na metade esquerda das faces, às quais foi exposta. O aspeto unilateral do defeito sugere que os estágios iniciais do processamento facial ocorrem em mecanismos paralelos, em ambos os hemisférios, e que o hemisfério direito integra a informação que resulta numa representação facial unitária.

Outro estudo examinou uma mulher de 75 anos que sofreu um início súbito de náusea, de tontura e de visão turva. A parte central dos rostos, especialmente o nariz e a boca, foi descrita como fora de forma. A mulher alegou que os narizes pareciam estreitos e alongados em direção à boca, que parecia pequena e arredondada, independentemente de os rostos lhe serem ou não familiares. Não apresentava quaisquer outras deficiências no desempenho visuopercetual, nem quaisquer deficiências cognitivas ou psiquiátricas. Uma ressonância magnética cerebral ponderada em T2 revelou enfarte no lobo temporo-occipital medial direito, incluindo o giro para-hipocampal (complemento do FFA).

Uma mulher de 52 anos sofria da história, ao longo da vida, de ver rostos a transformarem-se em rostos semelhantes a dragões e relatou ter alucinações com rostos semelhantes, várias vezes ao dia. Inicialmente, reconhecia os rostos reais, mas, uns tempos depois, tornavam-se pretos, cresceriam orelhas longas e pontudas e um focinho protuberante, exibindo pele de réptil e olhos grandes e salientes em cores brilhantes. Via esses rostos a vir na sua direção, várias vezes ao dia, a partir de objetos como tomadas elétricas. E também teve essas alucinações no escuro. Já havia sofrido de dores de cabeça recorrentes, alucinações de passagem (para ver movimentos no canto dos olhos) e zoopsia (via formigas grandes a rastejar sobre as suas mãos). Uma ressonância magnética do cérebro mostrou pequenas anormalidades na substância branca perto do núcleo lentiforme e no centro semioval. As perceções visuais que experimentou foram atribuídas à atividade eletrofisiológica incomum nas regiões do cérebro especializadas no rosto e cor no córtex occipitotemporal ventral.

Uma mulher de 44 anos relatou ter começado a ver distorções faciais. Percebeu que os rostos das pessoas mudariam para parecerem mais caricaturas delas e a sua perceção piorou com o tempo. Tinha histórico de epilepsia, na infância, e sofreu uma concussão, vários anos antes de ter essa condição, embora nenhuma evidência médica de convulsão tenha sido encontrada durante as distorções. Relatou que, ocasionalmente, tinha uma visão pixelizada, como a estática da televisão, e mencionou que tais sintomas ocorriam várias vezes por semana, durando cada evento de alguns minutos a algumas horas.

Victor Sharrah, chef de 58 anos, ao acordar, numa manhã, ficou apavorado, ao ver o colega de apartamento com as orelhas pontiagudas, os olhos gigantescos e a boca na extensão das bordas do rosto. Tentando acalmar-se, decidiu ir passear o cão, mas as pessoas com quem cruzava, na rua, tinham rostos estranhos e distorcidos. “O meu primeiro pensamento foi que tinha acordado num mundo demoníaco”, disse à AFP, ao telefone a partir de casa, em Clarksville, Tennessee, nos Estados Unidos da América (EUA), recordando que até pensou em internar-se “numa unidade psiquiátrica”. No entanto, não tinha “perdido a razão por completo”, como temia. Com a ajuda de especialistas, descobriu que sofre de PMO.

Enquanto Sharrah vê demónios, alguns veem elfos, disse à AFP um estudioso da PMO, Antonio Mello. Para alguns, a metade do rosto que veem aparece derretida. Outros veem rostos roxos ou verdes em constante movimento. Às vezes, essa condição dura poucos dias. Porém, mais de três anos depois daquela manhã novembro de 2020, Sharrah ainda vê demónios.

Este caso é muito particular. Ao invés de outras pessoas com PMO, quando vê rostos em telas planas, eles parecem normais. Isto permitiu a Mello e a outros investigadores do Dartmouth College, nos EUA, criar as primeiras imagens “fotorrealistas”, que representam como as pessoas com PMO veem os rostos, segundo estudo publicado, a 22 de março, na revista científica “The Lancet” e replicado, a 23 de março, no “Diário de Notícias”. Para criar as imagens, os cientistas fizeram Sharrah comparar fotos de Mello e de outra pessoa como apareciam numa tela de computador com as distorções que ele via nos seus rostos reais. E a outros pacientes os rostos nas fotos também aparecem distorcidos.

Sharrah diz que a vida com PMO é “muito mais traumática do que as imagens podem transmitir”. “O que as pessoas não entendem quando veem estas imagens é que, na vida real, esse rosto está em movimento, com as suas expressões ou através da fala”, vinca, para reforçar a estranheza provocada por essas distorções.

Para Jason Barton, neurologista da Universidade de British Columbia, que não participou no estudo, a PMO é um “sintoma, não um transtorno”, e por isso poderia ter múltiplas causas. Na maioria dos casos que pesquisou, “algo aconteceu no cérebro que se correlacionou com o início desta experiência anormal”. Sharrah tem uma lesão no cérebro provocada por um acidente que sofreu enquanto trabalhava como camionista, em 2007. Porém, segundo Mello, não está relacionada com a PMO, porque as ressonâncias magnéticas mostram que a lesão está no hipocampo de Sharrah, parte do cérebro “não associada à rede de processamento facial”.

Mello disse que mais de 70 pacientes contactaram o seu laboratório nos últimos três anos. A natureza assustadora da condição significa que, frequentemente, foi diagnosticada, de forma equivocada, como esquizofrenia ou como psicose.

Sharrah soube da PMO, depois de publicar sobre a sua experiência num grupo de apoio online para pessoas com transtorno bipolar. Foi um grande alívio. “Significava que, afinal, não era um psicótico”, referiu à AFP. Tem a visão perfeita, mandou fazer óculos com lentes verdes que diminuem a gravidade das distorções. O vermelho torna-as mais intensas. Além da cor, a perceção de profundidade parece desempenhar um papel. Embora Sharrah não veja distorções faciais em telas planas, estas começaram a aparecer, quando os investigadores o fizeram usar um capacete de realidade virtual. Porém, adaptou-se, em grande medida, ao seu estranho mundo novo. Três anos depois, não usa os óculos verdes, mas, em locais cheios, como um supermercado, ou com a multidão de demónios ao seu redor, ainda pode ser “assustadora”.

Como o paciente que sofre de PMO sabe que o que está a ver não é real, pode enfrentar uma decisão difícil: se vale ou não a pena falar às pessoas sobre a aparência grotesca que têm, podendo parecer louco. Alguns preferem o silêncio. E Mello conta o caso de um homem que nunca disse à esposa que o seu rosto, depois de muitos anos, lhe parece distorcido. Já Sharrah diz que resolveu compartilhar a sua experiência para que outras pessoas com PMO pudessem evitar ser “internadas por psicose”. “Assim, sabem o que está a acontecer e não vivenciam o trauma por que eu passei.”

Pessoalmente, vi um caso de pessoa a quem pareciam disformes rostos e objetos, como portas, paredes, automóveis (pareciam tortos e batidos), após uma cirurgia, sem sucesso, a descolamento de retina, o que foi corrigido em nova cirurgia. O paciente apenas comunicou o facto, sem dramatismo, e sujeitou-se a nova intervenção.

Enfim, a vida é feita de muitas vicissitudes, umas dramáticas, outras aceitáveis.

2024.03.23 – Louro de Carvalho

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