sexta-feira, 22 de março de 2024

A Basílica onde o Papa quer ser sepultado

 

O Papa Francisco promulgou, a 19 de março, novas regras para a administração da basílica de Santa Maria Maior, a primeira igreja dedicada à mãe de Deus na cristandade e onde Francisco disse querer ser sepultado junto de seis outros papas (Clemente VIII, Honório III, Clemente IX, Nicolau IV, S. Pio V e Sisto V), como será o sítio onde viverá, caso venha a renunciar ao Papado.

Com a publicação das ditas regras, a 20 de março, pela Santa Sé, o Sumo Pontífice pretende reformar o Cabido da Basílica, para relevar o trabalho espiritual pastoral dos cónegos.

O quirógrafo de Sua Santidade Francisco para a aprovação do Estatuto e do Regulamento do Cabido da Basílica de Santa Maria Maior considera que, durante vários séculos, o Cabido guardou a venerada efígie da Salus Populi Romani e a ilustre relíquia do Berço Sagrado, cuidou do decoro das celebrações litúrgicas do Templo da Libéria e acolheu os fiéis que ali se congregam.

A 14 de dezembro de 2021, o Papa confiou a um comissário extraordinário, coadjuvado por uma Comissão especial, a tarefa de providenciar a reorganização da vida do cabido e da basílica, para o maior bem do povo de Deus.

Finda essa comissão, Francisco julgou oportuno “libertar os cónegos das obrigações económicas e administrativas, para que possam dedicar-se plenamente, integralmente e com renovado vigor, ao acompanhamento espiritual e pastoral que os peregrinos de todo o Mundo procuram e desejam encontrar quando cruzam o limiar do primeiro santuário mariano do Ocidente”.

Por isso, inspirado nos princípios e critérios da Constituição Apostólica “Praedicate Evangelium”, foi redigido um novo Estatuto e um novo Regulamento do Cabido da Basílica Papal de Santa Maria Maior que, conforme explicitam os ditos documentos, são aprovados por este quirógrafo.

Ao mesmo tempo, o Papa confere a Dom Rolandas Makrickas, arcipreste coadjutor da Basílica Papal de Santa Maria Maior, todos os poderes necessários para a moderação e aplicação do novo Regulamento e para o governo do cabido. Ordena que o prelado continue no exercício da representação legal do Conselho e que mantenha, até a tomada de posse do Conselho de Administração, o poder de praticar atos de administração ordinária e extraordinária. Por fim, atribui-lhe as funções de vigário do arcipreste, de delegado para a pastoral e de delegado de administração, até às respetivas nomeações.

Tudo o que fica estabelecido no quirógrafo tem validade plena e estável e, sem prejuízo de qualquer disposição em contrário, ainda que mereça menção especial, entrará em vigor no momento da sua publicação no L’Osservatore Romano e será, posteriormente, inserido nas Acta Apostolicae Sedis.

Em 2021, o Papa Francisco nomeou Dom Rolandas Makrickas comissário para cuidar da gestão económica e financeira do cabido da basílica onde se guarda o ícone da Salus Populi Romani, junto do qual o Pontífice costuma rezar antes e depois de cada viagem apostólica para fora de Itália. Agora, “liberta” os cónegos “de todos os deveres de natureza económica e administrativa”.

Segundo o quirógrafo, o objetivo papal é que os clérigos tenham funções espirituais e pastorais junto dos peregrinos. Dom Makrickas mantém “as faculdades necessárias para a moderação e aplicação dos novos regulamentos e para o governo do cabido”, que representa, e tem o poder de praticar atos de administração ordinária e extraordinária até a tomada de posse do Conselho de Administração, continuando também, até essa altura, como vigário do arcipreste, como delegado para a pastoral e como delegado para a administração.

O Estatuto estabelece que os dois delegados, juntamente com o arcipreste que preside, formarão o Conselho de Administração, com um representante do Governatorato do Estado da Cidade do Vaticano e um representante da Administração do Património da Sé Apostólica (APSA), e que só se pode ser cónego por cinco anos, sendo que os maiores de 80 anos não terão mais qualquer função e tudo ficará nas mãos do Conselho de Administração.

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Nenhuma igreja católica é chamada basílica sem autorização apostólica, exceto por tradição e por costume imemorial (no passado, ostentavam o título outras igrejas, como Santa Maria dos Anjos, em Assis). Santa Maria Maior é uma das quatro que podem utilizar o título de “basílica maior”. As outras são S. Pedro, S. Paulo Extramuros e S. João de Latrão. Junto com elas, Santa Maria é uma “basílica papal”, título que existe desde 2006, quando o Papa Bento XVI  renunciou ao título de “Patriarca do Ocidente” e as basílicas patriarcais (as quatro maiores e S. Lourenço Extramuros) passaram a ser chamadas papais, para mitigar a relação que tinham com os antigos patriarcados latinos. Santa Maria era até então a sede do Patriarcado Latino de Antioquia. As cinco basílicas papais, com a Basílica de Santa Cruz, em Jerusalém (que é propriedade de Roma) e com S. Sebastião Extramuros são as igrejas de peregrinação em Roma, visitadas por peregrinos durante uma peregrinação a Roma, um itinerário de mais de 20 quilómetros criado por S. Filipe de Néri, a 25 de fevereiro de 1552, especialmente pelos que buscam uma indulgência plenária num jubileu. Para o Grande  Jubileu de 2000, o Papa S. João Paulo II substituiu S. Sebastião pelo Santuário da Mãe do Divino Amor.

Santa Maria Maior ou Basílica de Santa Maria Maior é a maior igreja mariana de Roma. Foi a primeira igreja do Ocidente dedicada a Maria em honra de Jesus Cristo e tem uma celebração específica na liturgia católica a assinalar o facto: a Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior, a 5 de agosto. Após o Tratado de Latrão, de 1929, firmado entre a Santa Sé e o Reino da Itália, Santa Maria Maior permaneceu como parte do território italiano e não do Vaticano. Porém, a Santa Sé é a proprietária do edifício e do terreno onde ele está e o governo italiano é obrigado, legalmente, a reconhecer o facto e a conceder-lhe a imunidade concedida pelo Direito Internacional às embaixadas de agentes diplomáticos de estados estrangeiros.

Desde 28 de dezembro de 2016, o arcipreste protetor da basílica é Stanislaw Rylko, cardeal-diácono da diaconia do Sagrado Coração do Cristo Rei e, a 20 de março de 2024, foi nomeado arcipreste coadjutor da basílica Rlandas Makrickas. Antigamente, o arcipreste era o Patriarca Latino de Antioquia, título abolido em 1964.

A basílica é também chamada de “Nossa Senhora das Neves”, designação no Missal Romano, entre 1568 e 1969, com referência à festa litúrgica da dedicação do edifício a Nossa Senhora, em 5 de agosto, denominada Dedicatio Sanctae Mariae ad Nives”, em Latim. A designação tornou-se popular no século XIV, referindo a tradição lendária que a Enciclopédia Católica (1911) descreve: “No pontificado de Libério, o patrício romano João e a esposa, que não tinham filhos, fizeram voto de que doariam todas as suas posses à Virgem Maria. Rezaram para que lhes indicasse como deveriam desfazer-se das suas posses para homenageá-La. A 5 de agosto, numa noite, no auge do verão romano, nevou no alto do monte Esquilino. Obedecendo a uma visão na mesma noite, o casal construiu a basílica em homenagem a Ela, no local exato que estava coberto de neve. Baseado no facto de não haver menção alguma a este milagre até séculos depois, nem mesmo por Sisto IIII em sua inscrição dedicatória de oito linhas, é provável que esta lenda não tenha nenhuma base histórica.”

A lenda só foi mencionada depois do ano 1000. O nome continuava a ser utilizado no século XV, como demonstra a pintura do “Milagre da Neve”, de Masolino da Panicale. A festa da dedicação da igreja era celebrada apenas em Roma, até ser incluída, pela primeira vez no Calendário Geral Romano, já com o título “ad Nives”. Uma congregação nomeada pelo Papa Bento XIV, em 1741, propôs a remoção do título lendário e que voltasse a ser conhecida pelo nome original, mas nada foi feito até 1969, quando foi removido e a festa passou a ser chamada de “In dedicatione Basilicae S. Mariae”. Porém, a lenda ainda é evocada com o lançamento, do alto da cúpula, de pétalas de rosas brancas, durante a celebração da missa e nas Vésperas II da festa.

A primitiva igreja construída no local era conhecida como Basílica Liberiana ou Santa Maria Liberiana, em homenagem ao Papa Libério (r. 352-366). O nome ter-se-á originado na lenda do “Milagre da Neve”, só que foi o papa e, não João e a esposa, que teria sido avisado em sonho sobre a vindoura queda de neve. Foi para o local em procissão e marcou o local onde a igreja seria construída. É possível inferir o nome implícito na descrição do “Liber Pontificalis” (século XIII) sobre o papa Libério: “Ele construiu a basílica que leva seu nome [“Basílica Liberiana”] perto do Macelo de Lívia.” O título “Liberiana” aparece em algumas versões do nome da basílica e “Basílica Liberiana” pode ser utilizado tanto como o nome atual como o histórico da basílica.

Contudo, pode o nome “Basílica Liberiana” não ter relação alguma com a lenda, pois, segundo Pius Parsch, o Papa Libério transformou um palácio da família Sicinini numa igreja que passou a ser conhecida como “Basílica Sicinini”. Este edifício foi, depois, substituído, por Sisto III (r. 432-440), pelo edifício atual. Alguns afirmam que esta transformação se fez na década de 420 com o Papa Celestino I, antecessor de Sisto III.

Muito antes dos mais antigos vestígios da história do “Milagre da Neve”, a basílica era conhecida como Santa Maria do Presépio (em Latim: Sancta Maria ad Praesepe), referência às relíquias da manjedoura de Jesus abrigadas ali, quatro tábuas de sicómoro que, juntamente com uma quinta tábua, teriam sido levadas para lá, no tempo do Papa Teodoro I (r. 640-649). O nome aparece nas edições tridentinas do Missal Romano como o local (“estação”) da missa do papa na noite do Natal, enquanto que o nome “Maria Maior” aparece como o nome da igreja onde está a estação da missa do Natal.

A igreja atual foi construída no pontificado de Sisto III (r. 432-440), como atesta a inscrição dedicatória no arco triunfal: “Sixtus Episcopus plebi Dei” (“Sisto bispo ao povo de Deus”). Além desta igreja, no topo do monte Esquilino, Sisto III realizou diversas obras por toda cidade, que foram continuadas por S. Leão Magno, seu sucessor. O edifício atual preserva a parte central da estrutura original, após diversas as reformas e reconstruções e os danos do sismo de 1348.

A construção de igrejas, em Roma, neste período, inspirava-se na ideia de que Roma não era apenas o centro do Mundo romano, mas o centro do novo Mundo cristão. E Santa Maria Maior, uma das primeiras igrejas dedicadas à Virgem Maria, foi erigida logo depois do Primeiro Concílio de Éfeso (431), que proclamou Maria como “Mãe de Deus”. E a atmosfera gerada pelo concílio inspirou os mosaicos que adornam o interior da inscrição dedicatória: “… seja qual for a conexão precisa entre o concílio e a igreja, é claro que os que projetaram a decoração pertencem a um período de concentrados debates sobre a natureza e o status da Virgem frente ao Cristo encarnado.”

A magnificência dos mosaicos da nave e do arco triunfal, vistos como “pedras angulares na representação da Virgem”, mostram cenas da “Vida de Maria” e da “Vida de Cristo”, além de cenas do Antigo Testamento, como Moisés a abril o mar Vermelho e os Egípcios a afogarem-se.

Richard Krautheimer atribuiu este esplendor às abundantes receitas disponíveis para o papa, ao tempo, oriundas de diversas propriedades adquiridas pela Igreja, nos séculos IV e V, na Península Itálica. Algumas destas propriedades eram controladas localmente; a maioria, no início do século V, eram administradas diretamente de Roma, com grande eficiência: foi desenvolvido um sistema de contabilidade centralizado na chancelaria papal, foi preparado rigoroso orçamento, indo uma parte da receita para a administração papal, outra para sustentação das necessidades do clero, a terceira para a manutenção das igrejas e a quarta para a caridade. Estas taxas deram condições ao papado para realizar, no século V, ambicioso programa de obras, incluindo Santa Maria Maior.

Miri Rubin defende que a basílica foi influenciada pela crença de que Maria representaria os ideais imperiais da Roma clássica, fundindo a velha Roma, pagã, com a nova, cristã.

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Enfim, uma obra carregada de História, permeada pela lenda, imbuída de espiritualidade e servida por notável complexo artístico rico e diversificado.

2024.03.22 – Louro de Carvalho

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