quinta-feira, 14 de março de 2024

O Papa Francisco não pensa em renunciar

 

Ocorreu, a 13 de março, o 11.º aniversário da eleição do cardeal Jorge Mario Bergoglio para o Sumo Pontificado, assumindo o nome de Francisco. A marcar a efeméride, está previsto, para 19 de março (dia do início solene do seu múnus petrino), nos Estados Unidos da América (EUA) e na Europa, o lançamento do livro autobiográfico do Papa, “Vida. A minha história na História”, escrito com o vaticanista Fabio Marchese Ragona, do grupo televisivo Mediaset, com a chancela da HarperCollins, de que o jornal italiano  Corriere della Sera antecipou a publicação de algumas passagens, a 14 de março.

Em mais de 300 páginas, a vida de Jorge Mario Bergoglio, desde a infância até aos anos da ditadura, na Argentina, e desde o ministério pastoral, em Buenos Aires, até hoje: pôr-se ao serviço dos mais frágeis é o que o homem de Deus, sobretudo se estiver no vértice da Igreja, deve fazer.

Em caso de renúncia, Francisco não seria Papa emérito, mas “bispo emérito de Roma”, a viver em Santa Maria Maior, “para voltar a ser confessor e levar a comunhão aos enfermos”. É o próprio quem esclarece o cenário possível, em caso de renúncia que, no entanto, é uma hipótese distante, pois não há “motivos tão graves” que façam pensar nesta possibilidade, nunca levada em consideração, “apesar dos momentos de dificuldade”. Não há “condições de renúncia”, esta ainda é a indicação de Francisco, a menos que surja “um grave impedimento físico”, possibilidade a que responderia a “carta de renúncia” depositada na Secretaria de Estado assinada por Bergoglio no início do pontificado, eventualidade hoje remota, porque o Papa, goza de “boa saúde e, se Deus quiser, ainda há muitos projetos a realizar”.

O livro retrata todos os aspetos da vida de Francisco, desde a relação com a família, especialmente com os avós, a emigração dos seus parentes para a Argentina, em 1929, e a pequena paixão que viveu no período de seminário. “É normal, caso contrário não seríamos seres humanos. Eu já tinha tido uma namorada antes, uma jovem muito dócil que trabalhava no mundo do cinema que depois casou e teve filhos. Dessa vez, estava no casamento de um dos meus tios e fiquei deslumbrado com uma jovem. Realmente, fez a minha cabeça girar por causa da sua beleza e inteligência. Durante uma semana, a imagem dela estava sempre na minha mente e foi difícil, para mim, rezar! Felizmente, isso passou e eu dediquei-me, de corpo e alma, à minha vocação”, escreve o Papa.

Francisco fala também da II Guerra Mundial, com o seu dramático epílogo atómico. “O uso da energia atómica para fins de guerra é um crime contra o homem, contra a sua dignidade e contra qualquer possibilidade de futuro na nossa Casa comum”, reitera o Pontífice, que levanta a questão de como podemos ser “defensores da paz e da justiça, se construímos novas armas de guerra”.

As páginas percorrem a História da ditadura argentina, dos laços de Bergoglio com quem não saiu vivo, do seu compromisso em acolher os jovens em situação de risco, no regime do general Jorge Rafael Videla, e da tentativa fracassada de salvar a sua professora Esther, que foi muito importante para a sua formação. O que aconteceu na Argentina “foi um genocídio geracional”, escreve o Papa, detendo-se nas acusações que lhe foram feitas, várias vezes, de conivência com a ditadura, desmentidas pela evidência da sua oposição “a essas atrocidades”. Francisco escreve sobre Ester, uma “verdadeira comunista”, ateia “mas respeitadora” que, apesar das suas ideias, nunca atacou a fé e ensinou muito sobre política a Francisco. É uma recordação que oferece ao Papa o ensejo de repetir que “falar dos pobres não significa, automaticamente, ser comunista”, pois “os pobres são a bandeira do Evangelho e estão no coração de Jesus”, e que, “nas comunidades cristãs, se partilhava a propriedade: isto não é comunismo, isto é cristianismo puro!”

O livro continua o seu percurso entre a árdua defesa da vida humana, da conceção à morte, sendo o aborto homicídio praticado por “assassinos contratados, sicários”, e “desumana” a prática do “útero de aluguer”. Dedica um capítulo ao futebol, paixão do Papa, que escreve sobre Maradona, Messi, e diz porque não vê, na TV, os jogos da Argentina. Alude ao período passado em Córdoba, de onde lhe nasce a reflexão sobre os erros cometidos por causa da sua “atitude autoritária”, que levou a acusarem-no de ultraconservador. “Foi um período de purificação. Eu estava muito fechado comigo mesmo, um pouco deprimido”, escreve.

A renúncia de Bento XVI, o conclave e a eleição como Pontífice, com a escolha do nome, são outro capítulo da autobiografia em que fala da sua dor por ter visto a figura do Papa emérito “instrumentalizada”, “com propósitos ideológicos e políticos por pessoas sem escrúpulos”, e pelas consequentes “polémicas” que “não faltaram em dez anos e fizeram mal a ambos”.

O livro atravessa o momento da pandemia e relembra os apelos sobre a riqueza das culturas e das diferenças dos povos da União Europeia (UE), com a esperança de que os apelos sejam ouvidos pelo primeiro-ministro húngaro Viktor Orban, “para que entenda que há sempre uma grande necessidade de unidade”, e por Bruxelas, “que parece querer uniformizar tudo, para que respeite a singularidade húngara”. Aborda temas de grande interesse, para si, como a proteção da criação, pedindo aos jovens que “façam barulho”, porque “o tempo está a esgotar-se, não nos resta muito para salvar o planeta”.

Francisco imagina uma “Igreja mãe, que abraça e acolhe a todos, mesmo quem se sente errado ou foi julgado por nós no passado”, referindo-se aos homossexuais ou transexuais “que procuram o Senhor e que, em vez disso, foram rejeitados ou expulsos”. Por isso, repete o “sim” às “bênçãos para os casais irregulares”, porque todos são amados por Deus, “especialmente os pecadores”. Se os bispos decidirem não seguir este rumo, não significa que seja a antecâmara de cisma, porque a doutrina da Igreja não é posta em causa. E, se o casamento homossexual permanece impossível, o mesmo não acontece com as uniões civis, porque “é justo que estas pessoas que vivem o dom do amor possam ter cobertura jurídica como todas as outras”.

Como em outros momentos, as palavras de Francisco são uma recomendação para fazer com que as pessoas, muitas vezes, marginalizadas na Igreja se sintam em casa, “especialmente as que receberam o Batismo, que são, em todos os aspetos, parte do povo de Deus. E quem não recebeu o Batismo e deseja recebê-lo, ou quem deseja ser padrinho ou madrinha, seja bem-vindo”. E o Pontífice não esconde as feridas causadas por quem acredita que ele “está a destruir o papado”; se há “sempre quem tenta frear a reforma, quem gostaria de permanecer preso nos tempos do Papa-Rei”; e, se o Vaticano é a última monarquia absoluta da Europa, onde, às vezes, se fazem raciocínios e manobras de corte, o escopo é abandonar, em definitivo, esses esquemas.

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Entretanto, a 13 d março, o ACI digital publicou o artigo de Andrea Gagliarducci, “Análise: O colégio de cardeais em constante mudança”, sobre o estado etário do Sacro Colégio.

A mudança mais recente no colégio cardinalício ocorreu a 24 de fevereiro, quando José Luis Lacunza Maestrojuán completou 80 anos, pelo ficando afastado das fileiras dos cardeais eleitores. Algumas semanas antes, a 12 de fevereiro, sucedeu o mesmo a Pedro Ricardo Barreto Jimeno.

Há, atualmente, 129 cardeais que poderiam votar num conclave, nove a mais do que o máximo de 120 estabelecido por são Paulo VI e confirmado por todos os seus sucessores até agora.

Nos 11 anos de pontificado, Francisco convocou nove consistórios para criar novos cardeais. Assim, criou 142, sendo 113 eleitores e 29 não-eleitores, de 70 países. Destes países, 22 nunca tiveram um cardeal antes. Este nível de atividade contrasta com são João Paulo II, que convocou nove consistórios, num pontificado de 27 anos, e com Bento XVI, que convocou cinco, em oito anos. Porém, o recorde de novos barretes vermelhos pertence a são João Paulo II, que criou 231 novos cardeais no seu pontificado. Se um conclave começasse hoje, haveria 94 cardeais eleitores criados por Francisco, 27 criados por Bento XVI e oito criados por São João Paulo II. Para eleger o papa seria necessário um bloco de 86 votos (dois terços do conclave), e os criados por Francisco são mais de dois terços.

Todavia, até ao final de 2024, mais 10 cardeais perderão o direito de voto no conclave. Portanto, se o Papa não convocar novo consistório até ao final do ano, o número voltará a ser inferior ao máximo de 120 cardeais eleitores. Entre os 10 cardeais que vão completar 80 anos nos próximos meses, está Luis Francisco Ladaria Ferrer, prefeito emérito do Dicastério para a Doutrina da Fé, influente, mas que deseja deixar cargos públicos, tendo pedido ao Papa dispensa de participar no Sínodo da Sinodalidade, e Marc Ouellet, prefeito emérito do Dicastério para os Bispos.

Para os outros quatro cardeais que vão completar 80 anos nos próximos 10 meses, o Papa deverá encontrar um sucessor para as respetivas funções, já que todos ainda estão no serviço ativo. Trata-se do arcebispo de Boston, Sean Patrick O'Malley (29 de junho), presidente da Pontifícia Comissão para a Tutela de Menores; do penitenciário-mor da Santa Sé, Mauro Piacenza (15 de setembro); do arcebispo de Caracas, Venezuela, Baltazar Enrique Porras Cardozo (10 de outubro); e do arcebispo de Mumbai, Índia, Oswald Gracias (24 de dezembro).

Também completarão 80 anos, em 2024, Louis-Marie Ling Mangkhanekhoun, vigário apostólico de Vientiane, Laos; Tanzânia, Polycarp Pengo, arcebispo emérito de Dar-es-Salam; Jean-Pierre Ricard, arcebispo Emérito de Bordeaux, França; e John Njue, arcebispo emérito de Nairobi, Quénia. É de referir que O’ Malley e Gracias também são membros do Conselho de Cardeais conhecido como C9, estabelecido pelo Papa para a reforma e para o governo da Cúria Romana.

 

Tendo isso em vista, até ao final de 2024, os cardeais-eleitores criados por Francisco serão 91, enquanto os eleitos pelos papas anteriores terão sido drasticamente reduzidos. Assim, num futuro conclave, haverá 22 cardeais criados por Bento XVI e seis por João Paulo II. Estes números sugerem que a eleição de um sucessor de Francisco poderia ser orientada para um perfil papal semelhante ao deste papa. Porém, o resultado do conclave poderia ser muito diferente.

Na maior parte dos casos, os papas convocaram consistórios para discutir e consultar os cardeais sobre questões importantes para a vida da Igreja. Durante o seu pontificado, Francisco só convocou um consistório três vezes para discutir questões imediatas. A primeira vez foi em 2014, quando outro consistório acompanhou o consistório da criação de novos cardeais para discutir questões sobre família, com relatório do cardeal Walter Kasper.

Em 2015, foi discutida a reforma da cúria e, em 2022, o Papa pediu aos cardeais que levassem em conta a reforma da cúria estabelecida com a constituição apostólica Praedicate Evangelium.

A estrutura de discussão do último consistório diferiu do padrão habitual. Os cardeais reuniram em pequenos grupos linguísticos. Nem todos falaram na assembleia e vários deixaram escritos documentos sobre como teria sido o seu discurso que não apresentaram aos restantes membros do colégio de cardeais. Embora apresentada como um esforço para tornar a discussão mais eficiente, essa estrutura eliminou momentos importantes de interação e compreensão mútua.

As discussões nos consistórios permitem que os cardeais se conheçam e que as personalidades envolvidas se definam com mais precisão. Por exemplo, a candidatura papal de Karol Wojtyla surgiu de algumas dessas discussões, juntamente com o facto de são Paulo VI o ter chamado para pregar os exercícios espirituais da Quaresma, na cúria, em 1976. Embora Wojtyla fosse autor respeitado e figura conhecida, não teria sido fácil obter o apoio dos colegas, se não tivesse tido o ensejo de se fazer conhecido nestas circunstâncias.

Portanto, o próximo conclave terá início com certa desvantagem, na medida em que os cardeais não se conhecem tão bem. Isso poderia ser um impulso para a formação de grupos de pressão que poderiam orientar o conclave numa direção ou noutra, mas, provavelmente, também tornará o resultado mais imprevisível. Por esta razão, embora Francisco tenha criado mais de dois terços dos cardeais eleitores, não é certo que o papa a escolher em futuro conclave tenha o seu perfil.

Na situação atual, a constituição apostólica Universi dominici gregis, promulgada por são João Paulo II, em 1996, que regulamentará o conclave, prevê, entre outras coisas, que a partir da 34.ª votação (ou a partir da 35.ª, se houver uma votação no dia de abertura do conclave), uma maioria simples seria suficiente para eleger um papa. Essa disposição foi modificada por Bento XVI, em 2007, com o motu proprio De Aliquibus mutationibus in normis de electione romani pontificis.

A nova regra prevê que na 34.ª ou 35.ª votação, em caso de “impasse”, será realizado um segundo turno entre os dois cardeais mais votados, que não poderão votar. A eleição, porém, só ocorrerá se um dos dois obtiver dois terços dos votos, como em todas as outras votações. Estas regras visam obter amplo consenso sobre o eleito, que pode contar com o apoio de todo o Sacro Colégio.

Já há algum tempo se fala de um projeto de Francisco para reformar as regras do conclave. Entre as reformas que poderiam estar em discussão, contam-se: a redução do quórum para a eleição do papa a partir da 15.ª votação; a exclusão de cardeais com mais de 80 anos das congregações gerais, ou seja, das reuniões pré-conclave, nas quais participam cardeais votantes e não votantes; e nova estrutura das próprias congregações gerais, nos moldes do último consistório, isto é, com a divisão dos cardeais em grupos de trabalho e relatórios confiados a um moderador.

Nenhum estudo para alteração das regras do conclave foi anunciado oficialmente. Diz-se que o cardeal Gianfranco Ghirlanda, patrono da Ordem de Malta, que se tornou o canonista de confiança do Papa, nos últimos anos, propôs projetos de reformas, mas não há confirmação disso. E resta saber se os rumores de reforma das regras do conclave são fruto de discussões honestas ou só de agitação e de especulação, face à conhecida imprevisibilidade de Francisco.

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Tudo isto parece deixar entrever que o magistério de influência de Francisco é doutrinal, humanista e inovador, mas sem o escopo de um projeto pessoal de poder. De facto, poder é servir.

2024.03.14 – Louro de Carvalho

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