quarta-feira, 6 de março de 2024

O livro “Portugal e o Futuro”: a premonição do 25 de Abril (?)

 

Caso inédito, os 50 mil exemplares da 1.ª edição do livro de António de Spínola, astronómico número à época, desapareceram num ápice. Posto à venda na manhã de 22 de fevereiro de 1974, à hora do almoço tinha esgotado, em Lisboa. Até final do ano – lembra o jornalista António Valdemar, que trabalhou na sua revisão – “Portugal e o Futuro" terá vendido, em todo o país, cerca de 230 mil exemplares. A obra passou à História, pelo interesse que despertou, pelo número de exemplares vendidos e pela sua importância política. O regime ditatorial ficou em choque, nunca mais se refez da estocada do general do monóculo e caiu de podre a 25 de abril. 

Marcello Caetano, sucessor de Salazar como presidente do Conselho, leu o livro, de um fôlego, dois dias antes do lançamento. Abalado, compreendeu que era inevitável o golpe de Estado.

Quando Salazar, em 1968, desafiou Spínola a trocar o cargo de segundo comandante-geral da Guarda Nacional Republicana (GNR) pelo de governador da Guiné e comandante-chefe das forças armadas no território, não percebeu que o militar já não era o mesmo que, ao eclodir da guerra colonial, então tenente-coronel de cavalaria, se autoapresentara, para combater em Angola. Embarcara à frente do Batalhão de Cavalaria 345, fiel à presença portuguesa em África, cobrindo-se de prestígio. Os soldados olhavam-no com pavor e admiração: saía para o mato, participava em combates, comia o que comiam os seus homens. Porém, regressou à metrópole, terminada a comissão, convicto da inevitabilidade da derrota, entendendo que a solução do problema colonial não era militar, mas política.

Os telegramas enviados de África, no início de 1968, são desanimadores para o regime. A guerra corria sem fim à vista. Crescia o mal-estar no topo das forças armadas, mercê de recriminações, em privado, entre os ministros militares (da Defesa, do Exército e da Marinha), pelo fracasso já indisfarçável. As piores notícias vinham da Guiné, onde as dificuldades das tropas portuguesas se avolumavam, na missão do general Arnaldo Schultz, entre 1964 e 1968, como governador e comandante-chefe. A Guiné estava à beira da derrota militar. E Salazar, temendo que se repetisse, ali, o sucedido na Índia, mandou chamar Spínola e deu-lhe guia de marcha para África, seguro de que o brigadeiro apoiava o regime em absoluto. Porém, o bravo comandante tinha rompido com a política ultramarina oficial. 

Ao entregar o governo e o comando militar da Guiné a Spínola (seria promovido a general em julho de 1969), Salazar não previa que a escolha apressaria o fim do regime. Na Guiné, com a guerra mais violenta, germinava o embrião da revolta. O seu quartel-general fervilhava em conspiração contra a manutenção das colónias a qualquer preço. O ambiente de conspiração crescia e, em 1972, já não se conspirava às escondidas do comandante-chefe, mas com ele. Almeida Bruno, seu ajudante de campo, gritava pelos corredores: “Isto só lá vai à porrada!”

***

Spínola desembarcou na pista de Bissalanca, nos arredores de Bissau, na tarde de 24 de maio de 1968, na condição de governador e de comandante-chefe. No seu discurso, proclamou o seu empenhamento numa ação “essencialmente baseada nos princípios da justiça social e do respeito pelo valor e dignidade da pessoa humana”, o que soava a estranho num chefe militar. E, como governador, mudou a política; como comandante-chefe, alterou a estratégia. A partir daí, tentou fazer crer que a principal preocupação não era a pura ação militar, mas uma política que visasse o bem-estar das populações, de modo a retirá-las ao controlo da guerrilha. 

O Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) estava bem armado e ameaçador; e as tropas portuguesas tinham perdido a iniciativa. Face a tal situação, Spínola percorre a Guiné, visita todas as unidades, verifica a precariedade das tropas ante um adversário bem moralizado e conclui que a razão da inércia está na incompetência de vários oficiais do quadro, que dispensa, para conseguir reunir um punhado de militares de exceção.

Altera o dispositivo militar de acordo com uma doutrina muito própria: concentra os meios disponíveis nas zonas que são para manter e não insiste no desgaste de forças em áreas  difíceis e sem interesse estratégico.  Assim, abandona, por exemplo, a região de Madina do Boé, no extremo sueste, cria zonas de intervenção do comandante-chefe em áreas de forte domínio da guerrilha e promove sucessivas operações de curta duração e de grande violência. As suas tropas invertem a situação e obtêm, na Guiné, entre 1968 e 1971, as maiores vitórias de toda a guerra colonial, fazendo passar o PAIGC por grandes dificuldades. 

Apesar dos êxitos militares, Spínola avançou com a política de conquista das populações traduzida no slogan ‘Por Uma Guiné Melhor’: ouvia os guineenses, e fez nascer os Congressos do Povo, de periodicidade anual, com representantes das diversas etnias que o aclamavam como o “Homem Grande da Guiné”. Os congressos eram manifestações de democracia representativa numa colónia de regime avesso à liberdade. 

Aos oficiais exigiu que não perdessem a guerra, enquanto procurava uma solução política. Encontrou, em África, um respeitável aliado, o presidente do Senegal, Leopold Senghor, que fora um académico em França, homem de letras, poeta, respeitado nas democracias ocidentais. Além das qualidades políticas e humanistas, Senghor, paladino da negritude, era lusodescendente e amigo de Amílcar Cabral, o moderado que liderava o PAIGC.

Spínola tinha os tiques de marcial: monóculo, luvas, pingalim. Porém, a grande diferença em relação aos outros generais – segundo Carlos Matos Gomes, ex-combatente na Guiné, escritor, coautor de uma História da Guerra Colonial – radicava no modo como assumia a política da guerra. Com o lema ‘Por Uma Guiné Melhor’ e com conceito de manobra assente na conquista das populações, abriu uma nova perspetiva para a resolução da guerra e tornou a Guiné território de discussão das opções do governo. Os discursos e as diretivas operacionais, em que explicava a sua ação, constituíam lições de aprendizagem política e de estímulo. Havia, entre os militares, a noção de que estava contra o regime. E, mal conheceu as mudanças em curso, Senghor tomou a iniciativa, em 1969, de propor a independência da Guiné no quadro de uma grande comunidade luso-africana.

Marcello Caetano, recém-chegado à chefia do governo, e o ministro do Ultramar, Silva Cunha, ignoram a oferta, mas Spínola, em Bissau, leva na devida conta a proposta do líder africano.

Senghor, em  meados de 1971, faz saber através da diplomacia francesa, que está interessado em discutir a questão colonial com o governo de Lisboa. Marcello Caetano reage do pior modo: envia a Dacar uma equipa de negociadores constituída por um representante da polícia política e um inspetor da administração colonial. Senghor não os recebe, mas não os manda embora: consente-lhes gentis contactos de circunstâncias com figuras de terceira linha do seu governo. 

O presidente senegalês não desiste e pretende um encontro com Spínola. O general, autorizado por Caetano, desloca-se ao Senegal. O encontro, a 18 de maio de 1972, decorre em Cape Skirine, a escassas dezenas de quilómetros da fronteira norte da Guiné. Discutem uma solução de compromisso: cessar-fogo por um período de transição de 10 anos, após o qual seria sufragada a solução para a Guiné: independência total ou integração numa federação no quadro de uma grande comunidade luso-africana.

Spínola voou para Lisboa, com o seu plano para acabar com a guerra. Recebido por Marcello Caetano, em fins de maio de 1972, informa-o de que o plano prevê que se encontre com Amílcar Cabral, para negociação do cessar-fogo e para concertar a integração de quadros do PAIGC na administração do território. O presidente do Conselho retorquiu que mais valia sair da Guiné por derrota militar com honra, do que por acordo negociado com os terroristas. Por conseguinte, veda-lhe a continuação das conversações. O general, que volta amargurado a Bissau, perdera todas as esperanças em Caetano, que defendera, em tempos, uma autonomia federalista para as colónias, mas que passou a alinhar com os insensatos falcões do regime.

Em 1971, Franco Nogueira, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e delfim de Salazar, lançou o livro “As Crises e os Homens”, em que, discorrendo sobre os valores e as verdades imutáveis de cada país, sustentava a “divina obrigação” de Portugal permanecer em África. O general entendeu que essa teoria postulava uma resposta. E, um ano depois, atira-se à escrita e a pedir aos mais próximos textos e sugestões.

O capitão miliciano José Blanco, jurista e administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, foi, em finais de 1972, nomeado chefe de gabinete de Spínola. Um dia, recebeu  do general uma resma de folhas datilografadas, com a indicação de ler, de ajeitar a forma e de arranjar um título. O subordinado cumpriu e concluiu que o livro era “uma bomba”. E, no atinente ao título, forneceu uma lista com 12 sugestões, colocando, em último lugar, aquela de que mais gostava, mas foi essa que o general escolheu: “Portugal e o Futuro”.

A situação militar agrava-se. O comandante-chefe reequilibra a sorte da guerra, mas sabe que o colapso militar será uma questão de tempo. Em agosto de 1973, em gozo de férias nas termas do Luso, recusa a recondução. E, como é um militar coberto de prestígio, é um embaraço para o governo, mas Caetano não quer deixá-lo escapar para a oposição. Spínola é o centro das atenções: aliciado pelo general Kaúlza, que planeia um golpe contra o “perigoso esquerdista” Caetano, e pelo movimento dos capitães, onde pontificam homens da Guiné. Assim, Caetano oferece-lhe, sucessivamente, a pasta do Ultramar, a Embaixada de Madrid, o comando da Academia Militar, a Inspeção-Geral das Forças Armadas, mas Spínola recusa tudo.

Entretanto, Costa Gomes, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, propõe a criação de novo cargo à medida do estatuto de Spínola – o de vice-chefe. Marcello agradece a ideia. E, Spínola, que aceita, é empossado a 17 de janeiro de 1974. Só então informa o chefe do governo da intenção de publicar o livro, tendo acertado a edição com Paradela de Abreu, da Arcádia.

Marcello quis ler o livro, o que o general recusou. Só aceitou submeter a obra a Costa Gomes, seu superior hierárquico, o qual, de partida para uma viagem de trabalho a Moçambique, leva um exemplar. No regresso, dá parecer favorável à publicação, mas submete o assunto à consideração do ministro da Defesa, Silva Cunha. Este, prevendo tempestade, acha melhor proibir o livro e fala com o chefe do governo, que prevê maior tempestade, se se impedir a publicação. E não sabiam que o livro seria editado em Paris, se fosse proibido em Portugal.

Otelo Saraiva de Carvalho – que Spínola estimava desde a Guiné – recorda o que lhe ouviu, quando o visitou no Estado-Maior General, no palácio da Cova da Moura: “Deixem-me publicar o livro e, depois, vamos ver como eles reagem, quando o apanharem pelos queixos.”

***

É certo que o livro aquece o ambiente de oposição ao regime, mas não é, do meu ponto de vista, a antecipação da Revolução dos Cravos. Spínola tinha uma ideia própria para a solução ultramarina e um projeto político pessoal: as colónias evoluiriam, querendo, para uma federação de inspiração lusa, o que era impossível, devido ao cansaço de guerra e à presença de movimentos independentistas estruturados e com sólidos apoios internacionais; e o general pretendia um sistema em que ele fosse abrindo para uma democracia musculada, provavelmente de tipo presidencialista, podendo começar por ser ele o chefe de Estado (o resto iria sucedendo).

Havia o problema profissional dos oficiais do exército (a equiparação dos oficiais do quadro especial aos do quadro permanente, que estes não queriam), que cedo se eclipsou, pois no grupo de capitães descontentes havia uns e outros. Reduzir o movimento a tal problema é mesquinho.

Se os spinolistas tivessem vencido a operação das Caldas da Rainha, o golpe de Estado não teria o rumo que se visualizou a 25 de abril. A condução política incumbiria a Spínola, como ele supunha, como se viu pela tentativa de manifestação da maioria silenciosa, a 28 de setembro, e pelo contragolpe de 11 de março de 1975, promovidos pela linha política e militar spinolista.

O 25 de Abril, com o programa do Movimento das Forças Armadas (MFA), ainda não alterado por Spínola, era para evoluir para o regime da democracia representativa suportada por uma nova Constituição. Obviamente, seria estranho que não surgisse a tensão dialética entre os diversos tipos de democracia, que não houvesse revolucionários que ficassem para trás, ou que não se praticassem excessos. Porém, acima de tudo, está a liberdade. E o livro é o grito de liberdade!

2024.03.06 – Louro de Carvalho

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