segunda-feira, 18 de março de 2024

A aliança de Deus com os homens é nova em Cristo e inovadora

 

O 5.º domingo da Quaresma no Ano B insiste na preocupação de Deus em nos mostrar o caminho para a Vida nova. Foi para isso que nos enviou o seu Filho Jesus. E Jesus, cumprindo inteiramente a vontade do Pai, mapeou esse caminho e introduziu-nos nele.

Na primeira leitura (Jr 31,31-34), Jeremias anuncia que Deus se dispõe a fazer connosco uma “nova Aliança”, gravando as suas cláusulas nos nossos corações, para que os nossos sentimentos, decisões e ações traduzam a vida e os valores de Deus, pois, acolhendo o dom de Deus, iremos ao encontro da Vida nova.

Essa aliança será diferente da Aliança do Sinai, que já era diferente das anteriores.

A aliança firmada com Adão e Eva reveste o caráter de sentença, por via do castigo pelo pecado dos seres humanos, que ditou a consecução do pão com o suor do rosto, as dores da maternidade, o rastejamento e, sobretudo, a hostilidade entre as forças do Mal e as do Bem, sendo que estas, a seu tempo, aniquilarão aquelas. Os ditames dessa aliança não são negociados entre as partes.

A aliança com Noé, simbolizada no arco-íris (arco da velha, da Velha Aliança), consiste num juramento de Deus, segundo o qual Deus Se compromete a não fazer desaparecer o homem da face da Terra. Não há condições postas ao homem.    

A aliança com Abraão consiste na promessa incontável descendência abraâmica como as estrelas do céu e as areias da praia. Deus promete e resta a Abraão obedecer.    

A Aliança do Sinai foi uma Aliança externa, gravada em tábuas de pedra e que o Povo de Deus nunca interiorizou devidamente. Apresentava leis que o Povo devia cumprir, mas que, sendo leis externas, não atingiram o coração do Povo, nem mudaram substancialmente o seu modo de ser e de proceder. Por isso, o Povo continuou em caminhos de infidelidade a Deus, de injustiça, de autossuficiência, de pecado. O Povo aderiu à Aliança mais com os lábios do que com o coração. Ora, sem a adesão efetiva do coração, era impossível manter a fidelidade às exigências da Aliança.

Considerada a falência da antiga Aliança, Deus seguirá outra via e proporá uma nova Aliança que se fundamente noutras bases, ou seja, intervirá no sentido de gravar as suas leis e preceitos no coração, no íntimo de cada membro do Povo. Na antropologia semita, o coração é, além da sede dos sentimentos, a sede do pensamento, dos projetos, das decisões e das ações da pessoa; é o centro do ser, onde a pessoa dialoga consigo, decide e assume as suas responsabilidades. Assim, por iniciativa de Deus, as exigências da Aliança serão interiorizadas por cada membro do Povo de Deus. Com o coração transformado, isto é, pensando, decidindo e agindo segundo os esquemas e a lógica de Deus, o crente viverá na fidelidade, na obediência aos mandamentos, no amor a Javé. Javé será o Deus de Israel e Israel será o Povo que testemunha Deus no Mundo.

Com esse novo tipo de relação, Javé não será mais um “desconhecido” para o seu Povo. Entre Deus e Israel será possível o estabelecimento da relação pessoal de proximidade, de intimidade, de familiaridade. A comunhão com Javé não será uma lição dificilmente aprendida, mas algo de natural a brotar de um coração em permanente diálogo com Deus.

E Deus anuncia o perdão das faltas do Povo. O perdão total e sem reservas é o primeiro resultado desta nova relação que se estabelece entre Deus e o Povo e manifesta o “amor eterno” de Deus.

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Evangelho (Jo 12,20-33) convida-nos a olhar para Jesus, a conhecer a sua Boa Nova, a aprender com Ele, a identificarmo-nos com Ele, a segui-Lo. A via da cruz parece, aos olhos do Mundo, fracasso e morte, mas é deste caminho de amor e de doação que brota a Vida.

Estamos em Jerusalém, talvez no dia da entrada solene de Jesus na cidade santa. As multidões “que tinham chegado para a Festa” haviam aclamado Jesus como o rei/messias, encenando um rito de entronização e aclamando-o como Aquele “que vem em nome do Senhor, o rei de Israel”. No entanto, paira no ar a sombra da cruz: aproxima-se a “hora” há muito anunciada e esperada, do dom da vida até ao extremo, da passagem deste Mundo para o Pai, da glorificação de Jesus.

Os “Gregos” (não judeus) vieram a Jerusalém adorar a Deus no Templo, mas quiseram ver Jesus. Este “ver” deve ser entendido como conhecer e encontrar-se com Jesus, tomar contacto com a salvação que Ele oferece.

Isto quer dizer que o Templo e o culto antigo já não são os lugares onde a pessoa encontra Deus e a salvação. Por isso, quem estiver interessado em encontrar a libertação deve dirigir-se a Jesus. Além disso, a salvação/libertação que Jesus veio trazer tem alcance universal, isto é, destina-se a todos os homens – mesmo aos que vivem fora das fronteiras físicas e sociais de Israel (Gregos).

Estes Gregos não se dirigem diretamente a Jesus, mas ao discípulo Filipe que, por sua vez, expõe o pedido a outro discípulo, André. Ambos eram naturais de Betsaida (“casa da pesca”: Jesus confiou aos discípulos a missão de serem “pescadores de homens”).

Provavelmente, há aqui um aceno à responsabilidade missionária da comunidade de Jesus, encarregada da missão de levar Jesus a toda a Terra. Os mesmos discípulos são referidos no relato joânico da multiplicação dos pães e serão eles que levarão o “pão da vida” aos não judeus. O facto de Filipe falar, primeiro, com André e, só depois, os dois irem contar o que se passa a Jesus refletirá a dificuldade das primeiras comunidades cristãs de darem o passo para a evangelização dos pagãos. E João sugere que integrar os pagãos na comunidade não é decisão individual, mas da comunidade, após haver consultado o Senhor.

Filipe e André levam a Jesus a pretensão dos Gregos. Esperava-se que Jesus mandasse chamar os Gregos que o queriam conhecer ou que lhes marcasse um encontro. Contudo, não foi o que aconteceu. Jesus respondeu ao pedido dos Gregos, anunciando que chegou a sua hora, a hora da cruz, a hora da sua glorificação.

Esta declaração de Jesus responde à pretensão dos Gregos que o querem ver. Na verdade, a morte de Jesus na cruz constitui excelente chave de leitura para entendermos a sua vida e o seu projeto. Desde a sua incarnação, Jesus pôs a vida ao serviço do plano salvador do Pai. Recusou qualquer projeto pessoal de triunfo e de glória humana, para abraçar o plano de Deus para o Mundo e para os homens. Andou por todo o lado – da Galileia a Jerusalém – a pregar o Reino de Deus; enfrentou o sistema opressor que mantinha os homens escravos; denunciou, em nome de Deus, as leis e os comportamentos geradores de sofrimento e de morte. Por isso, entrou em rota de colisão com os dominadores e foi preso, condenado e morto na cruz. A sua morte foi a consequência da sua entrega ao desígnio do Pai de mudar o Mundo e de libertar os homens.

Quando se tornou claro que a proposta de Jesus ia contra os interesses instalados, Jesus podia ter desistido ou, ao menos, moderado a denúncia. Porém, a obediência a Deus e o amor aos homens, seus irmãos, levou-o a lutar até ao último alento. A cruz onde se consumou a hora de Jesus é a expressão suprema de uma vida dada por amor. Na cruz, vê-se a lição do amor até ao extremo, do amor que se faz dom total. A cruz diz toda a vida de Jesus, o modo como viveu toda a sua vida.

Deste dom de Jesus resulta a nova Humanidade que Jesus libertou da opressão, da injustiça, dos mecanismos que geram sofrimento e medo, que aprendeu, com Jesus, que a vida é para ser dada, sem limites, por amor. Não há dúvida de que o dom da vida dá abundantes frutos de vida. Na cruz de Jesus, manifesta-se o projeto libertador de Deus para os homens. Toda a vida de Jesus foi como “o grão de trigo, lançado à terra”, que morre para dar fruto.

Aos Gregos queriam ver Jesus, Jesus propõe que olhem para a cruz: nela revela-Se totalmente, mostra o sentido da vida, diz porque viveu e para que viveu. É naquele homem que ama até ao dom total de si que se vê a proposta de Deus. É nele que se encontra Deus e adora Deus.

É Jesus e a sua proposta de vida que Filipe e André – e os outros discípulos – devem testemunhar no Mundo. E todos aqueles que escutarem esse testemunho são convidados a tomar posição. Se quiserem servir Jesus, devem segui-Lo no caminho que Ele percorreu e pôr a vida ao serviço de Deus e da libertação dos homens, até ao dom total da vida, por amor (“se alguém Me quer servir, siga-Me”). Quem aceitar esta proposta permanece unido a Jesus e entra na comunidade de Deus. Pode ser desprezado pelo Mundo, mas será honrado por Deus e acolhido como seu filho.

O trecho em apreço termina com a “voz do céu” que glorifica Jesus. É uma forma de mostrar que o caminho de Jesus tem o selo de garantia de Deus. A voz do céu assegura que a forma de viver de Jesus é verdadeira e que Deus lhe garante a autenticidade. Confirma aos discípulos que oferecer a vida por amor não é caminho de fracasso e de morte, mas de glorificação e de vida.

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Comentando este passo, o Papa disse aos fiéis reunidos na Praça de São Pedro que, na Cruz, veremos a sua glória e a do Pai. Poder-se-ia pensar que isto acontece na ressurreição, não na cruz, que é derrota, fracasso. Porém, falando da sua paixão, Jesus diz: “Chegou a hora de o Filho do Homem ser glorificado.” Quer dizer que a glória, para Deus, não corresponde a sucesso, fama ou popularidade, não tem nada de autorreferencial, não é exibição grandiosa de poder seguida de aplausos do público. É amar ao ponto de dar a vida. Glorificar-se significa doar-se, tornar-se acessível, oferecer o amor. E isto aconteceu de forma culminante na Cruz, onde Jesus manifestou, ao máximo, o amor de Deus, o seu rosto de misericórdia, dando a vida e perdoando. 

Da Cruz, “cátedra de Deus”, o Senhor ensina-nos que a verdadeira glória, a que nunca tem fim e que nos torna felizes, é feita de dom e de perdão, que são a essência da glória de Deus e, para nós, o caminho da vida. São critérios bem diferentes dos que vemos à nossa volta e em nós, quando pensamos na glória como algo a receber, como algo a possuir e não a oferecer. A glória mundana passa e não deixa alegria no coração; nem dá o bem de todos, mas a divisão, a discórdia, a inveja.

Em vez de querermos impressionar os outros com as nossas proezas, capacidades e haveres, devemos trilhar o caminho do dom e do perdão, de Jesus Crucificado, de quem não se cansa de amar, confiante de que isso testemunha Deus no Mundo e faz resplandecer a beleza da vida. Recordemos que, quando doamos e perdoamos, a glória de Deus resplandece em nós.

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A segunda leitura (Heb 5,7-9) apresenta-nos Jesus Cristo, o sumo-sacerdote da nova Aliança, que Se solidariza com os homens e lhes aponta a via da salvação, a que Jesus seguiu: do diálogo com Deus, da entrega confiada nas mãos de Deus, da aceitação plena do desígnio do Pai.

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A Carta aos Hebreus é escrito (ou sermão) de autor anónimo cujos destinatários desconhecemos. O título “aos Hebreus” provém das múltiplas referências ao Antigo Testamento (AT) e ao ritual dos sacrifícios que a obra apresenta. Dirigir-se-á a uma comunidade constituída maioritariamente por cristãos vindos do judaísmo; mas nem isso é seguro, já que o AT era um património comum, assumido por todos os cristãos, quer os vindos do judaísmo, quer os vindos do paganismo. Trata-se, em todo o caso, de cristãos em situação difícil, expostos a perseguições, a viverem num ambiente hostil à fé, a deixarem-se vencer pelo desalento, a perderem o fervor e cederem às seduções de doutrinas não coerentes com a fé recebida dos apóstolos. Assim, o objetivo do autor é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé. Para tanto, expõe o mistério de Cristo como “o sacerdote” da Nova Aliança, e recorda a fé da Igreja.

O trecho em apreço é parte de uma longa reflexão (cf Heb 3,1-9,28) sobre o sacerdócio de Cristo. Em concreto, a perícopa de Heb 5,1-10 desenvolve o tema do sacerdócio de Cristo, em comparação com o sumo-sacerdote do AT, apresentando uma série de aspetos semelhantes e opostos. Começa por apontar três aspetos que definem a missão do sumo-sacerdote: homem que, pela sua fragilidade, é capaz de entender as fragilidades dos seus irmãos, que tem a missão de oferecer sacrifícios a Deus, a fim de refazer a comunhão entre Deus e o homem, e que desempenha esta missão por escolha de Deus, como o sacerdote Aarão. Ora, estes três elementos estão bem patentes no sumo-sacerdócio de Cristo.

Cristo, apesar de Filho de Deus, foi o homem que viveu entre os homens e que experimentou a fragilidade deles. Como os outros homens, seus irmãos, sofreu, chorou, sentiu angústia e medo ante a morte (alusão à agonia orante de Jesus no Monte das Oliveiras, pouco antes de ser preso). Nele não houve pecado, mas, identificando-se com os homens, compreendeu as fraquezas e identificou a debilidade dos seus irmãos. A partir daí, dispôs-se a atuar para lhes dar remédio. Por outro lado, Jesus, o Filho de Deus feito homem, viveu toda a sua vida em diálogo com o Pai. Procurou sempre, através de intensa oração, discernir e acolher a vontade do Pai. Mesmo nos momentos difíceis da sua existência terrena, escutou o Pai, manteve a adesão incondicional ao Pai, manifestou a total disponibilidade para cumprir o plano de salvação que o Pai queria, através d’Ele, oferecer aos homens. Percebendo, pela oração, esse plano, Jesus, através da oração, disse “sim” ao Pai e fez da sua vida uma oferenda, um sacrifício ao Pai. Esse sacrifício reparou a rutura que o pecado tinha provocado e restaurou a comunhão entre Deus e os homens.

Pela obediência, Jesus ensinou os homens a viver em comunhão com Deus, a cumprir o plano de Deus e a amar os irmãos até ao dom total da vida; eliminou o egoísmo e o pecado que afastavam os homens de Deus. Sendo, pela sua comunhão total com o Pai e com os homens, o modelo de Homem Novo, tornou-Se, para todos os que O escutam e O seguem, “fonte de salvação eterna”.

Jesus Cristo, o sumo-sacerdote da Nova Aliança, fez bem mais do que os sumos-sacerdotes da linha levítica. Ao entregar ao Pai o sacrifício da própria vida, ofereceu o sacrifício perfeito, capaz de eliminar o pecado; e, ao mostrar aos homens o caminho da obediência ao desígnio do Pai, Jesus apontou-lhes o caminho que conduz à Vida verdadeira.

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A Aliança no sangue de Cristo é inovadora, profunda e ampla. Vai ao âmago do mistério e abre-se universalmente, ou seja, a todos e a cada um(a).

2024.03.17 – Louro de Carvalho

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