quinta-feira, 14 de março de 2024

Voto de protesto versus voto informado

  

Realizadas as eleições legislativas, nos 50 anos do 25 de Abril, levantam-se as vozes da lamentação pelo volume do voto de protesto (leia-se “voto no Chega”) nelas expresso, em detrimento do voto informado que a democracia postula e ao invés do que aconteceu antes, com muitos a apelar ao voto útil num ou noutro dos dois grandes partidos.

Se o voto não foi informado e se o voto de protesto engrossou, é preciso que os agentes políticos dos outros partidos enfrentem a situação de acordo com os melhores critérios democráticos: nada de instigação à vandalização de sedes partidárias (antes dissuasão da sua tentativa) e nada de cercas parlamentares e ou diplomáticas, mas a argumentação oportuna e sólida, a explicação dos problemas (suas causas verdadeiras e seus efeitos perversos) e a tomada de medidas que obviem à eliminação das situações problemáticas que originaram o protesto!     

Há expressões interessantes que não podem ficar em modo de inércia: “os problemas não se resolvem de um dia para o outro” (mas é preciso resolvê-los, quanto antes); “ninguém pode ficar para trás” (mas é preciso que ninguém fique, em nome da coesão social); “o país é um todo” e não “uma extensa urbe que começa no Tejo, acaba no Douro e se estende só pelo litoral”.

Ora, as eleições de 10 de março ocorreram num clima de tensão social com alguns grupos profissionais acabados de sair da rua e com outros em efervescência e prontos a ir para a rua, assim como em tensão pela exploração do lítio em algumas regiões e por alegado favorecimento a alguns empreendimentos. Está em causa a coesão social e a coesão territorial.

As eleições mostraram que todos os eleitores, sejam eles quem forem, vivam onde viverem, tenham menos ou menos idade, sejam mais ou menos instruídos, sejam ricos ou pobres, devem estar no centro da ação política – e não tanto o estatuto do deputado ou do membro do executivo.

Tenha votado neste ou naquele partido, tenha votado em branco ou feito voto, tenha votado ou tenha optado pela abstenção, o eleitor deve ser considerado pelos órgãos do poder político.   

Por sua vez, o eleitor deve emitir voto informado, pois o voto de protesto é a forma mais perigosa de manifestação, pois, se ganhar volume desmedido, gera situação de difícil de governabilidade ou até de ingovernabilidade. É voto que resultou da desinformação ou em que o eleitor renunciou à informação; e, como tal, resulta da criação de ambiente propício à propagação de mensagens com soluções fáceis para problemas complexos, além de acicatar ódios. Só com informação, coesão, sentimento de pertença se minimiza o populismo que engana, se entranha e se aproveita.  

Os partidos, em período eleitoral, não tiveram a preocupação prioritária de expor e de explicar, a todos e em toda a parte, os projetos que tinham para o país. Tentaram credibilizar os líderes, responder aos ataques uns dos outros, pôr a nu as debilidades programáticas e atitudinais dos adversários. Os líderes das listas partidárias em cada círculo não terão feito o trabalho no terreno. Enfim, os partidos foram bastante responsáveis pelo voto desinformado e de protesto.

Após as eleições, os partidos – incluindo o que se diz diferente e que, assim, ganhou mais de um milhão de votos e 48 deputados – posicionam-se, taticamente, em relação aos outros, de modo a ganharem argumentos para futuras eleições. Na Aliança Democrática (AD), a estratégia é governar negociando medida a medida e pondo o ónus da responsabilidade pelo eventual insucesso no Partido Socialista (PS) e no Chega; o PS, prepara, apesar da não apresentação de moção de rejeição do programa do governo, a oposição, com voto contra a orçamentos e a moções de confiança; e o Chega quer influir na composição e no programa do governo.

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Em geral, os partidos não tiveram em conta as questões mundiais, que influem no país, nem o que se passa na Europa, em termos da ascensão da direita radical, a qual se sintetiza, grosso modo, como segue, com respaldo num longo artigo de Pedro Cordeiro no Expresso, a 12 de março.

A Alternativa para a Alemanha (AfD) aproveitou a decisão de Angela Merkel de deixar entrar os refugiados do Médio Oriente, em 2015, para evoluir para segundo lugar nas sondagens para as legislativas do próximo ano, à frente dos três partidos do governo de centro-esquerda.   

O Partido da Liberdade austríaco (FPÖ) é o terceiro maior do país e esteve no poder com o Partido Popular (ÖVP, do centro-direita). Criado com matriz liberal, passou a xenófobo e eurocético.

Na Bélgica, o partido Interesse Flamengo (VB) é a reencarnação do Bloco Flamengo, dissolvido judicialmente por ser racista. Conservador, eurocético e crítico do apoio à Ucrânia, lidera as intenções de voto para as legislativas belgas e para as regionais flamengas de 9 de junho.

Com 34 dos 240 lugares do Parlamento búlgaro, o partido Revivalismo é anti-UE, antiNATO e pró-russo. Adotou um discurso antivacinas e teorias da conspiração sobre a covid-19 ou sobre as alterações climáticas. Pelo receio da inflação e dos efeitos da adesão ao euro, prevista para janeiro de 2025, divide o país quase a meio. O chefe é conhecido por tiradas misóginas, homofóbicas, transfóbicas e racistas e por chamar aos ciganos “parasitas” ou “praga não-humana”.

Na Chéquia, o partido Liberdade e Democracia Direta (SPD) é anti-imigração. Defende a saída da União Europeia (UE), quer dificultar a entrada de estrangeiros, sobretudo de países islâmicos, e prega a defesa dos valores “judaico-cristãos”.

Na Dinamarca, dos 179 lugares do Folketing (Parlamento), 21 são ocupados pela direita populista. Ao Partido do Povo Dinamarquês (DF) somou-se o dos Democratas Dinamarqueses (DD), que promoveu uma política de separação das famílias dos que chegavam ao país.

O ultranacionalista Partido Nacional Eslovaco (SNS), membro regular de coligações de governo, partilhou o poder com partidos conservadores, sociais-democratas, esquerdistas e até com defensores de melhor convivência entre a maioria eslovaca e a minoria húngara presente no país. É acusado de racismo, sobretudo contra húngaros e ciganos, homofobia e até neofascismo.

O Vox, partido de extrema-direita espanhol, nasceu, em 2013, como dissidência do Partido Popular (PP, do centro-direita). Cético das autonomias regionais, teve enorme impulso na crise independentista da Catalunha de 2017. Passou de 0,20% para 10%, em três anos, obtendo, em 2019, representação parlamentar em Espanha e na UE. Está nos parlamentos autonómicos de todas as 17 regiões, exceto no da Galiza. Contraria as leis de memória democrática, quer a redução de verbas para o combate à discriminação e violência de género e o controlo da imigração, adota um discurso xenófobo, sobretudo face a muçulmanos, e defende políticas económicas neoliberais.

O Partido Conservador do Povo da Estónia (EKRE), a segunda maior bancada parlamentar neste país báltico, nasceu em 2012, da fusão de dois movimentos. Teve uma experiência de governo, entre 2019 e 2021, como parceiro de coligação do Partido Centrista do primeiro-ministro Jüri Ratas, numa equipa que incluía ainda os democratas-cristãos.

O Partido dos Finlandeses (PS, o segundo do país) participa, com sete ministérios, na coligação de governo do conservador Petteri Orpo, do qual fazem parte o Partido do Povo Sueco (ligado a esta minoria no país) e os Democratas-Cristãos.

Na França, a antiga Frente Nacional, há seis anos crismada de Reagrupamento Nacional (RN), da família Le Pen, está nas mãos de Marine, filha do fundador Jean-Marie, embora o líder formal seja Jordan Bardella. Vencedora das últimas duas eleições europeias e rumo à terceira vitória, nunca fez parte de soluções de governo nacional nem regional, mas tem crescido sempre. Misto de chauvinismo, xenofobia e generosidade social, passou de anti-UE a pró-UE reformada, de socialmente retrógrado a tolerante, de antissemita e negacionista do Holocausto a frequentável para grande parte dos cidadãos da V República, embora se mantenha pró-Putin e antiNATO.

Na Grécia, a direita radical distribui-se por três partidos: Solução Grega (EL), Espartanos (S) e Vitória (NIKI). São xenófobos, conservadores e nacionalistas.

Na Hungria, o partido Jobbik inquietava a Europa com o discurso anticigano, mas mudou para integrar, em 2022, uma frente com a esquerda liberal, a tentar vencer Viktor Orbán. Este, no poder há 14 anos e num período anterior (1998-2002), passou do centro-direita ao populismo de direita radical, partidário da democracia iliberal e destruidor do Estado de Direito. Assim, é o grande partido Fidesz a encarnar esta fação política. Com dois terços do Parlamento, controla a Justiça e grande parte da comunicação social, passou para o Partido Popular Europeu (PPE) e saiu em 2021, quando ia ser expulso. É conservador, nacionalista, xenófobo e antissemita. Trava decisões da UE sobre refugiados, sobre a bazuca pós-covid e sobre o apoio à Ucrânia. Passou de bom aluno, antes da adesão à UE, para posições mais duras e travou, quanto pôde, a adesão da Suécia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).

Os Irmãos de Itália (FdI), da primeira-ministra Giorgia Meloni, descendem dos neofascistas do Movimento Social Italiano (MSI) do pós-guerra, embora com passagem pela Força Itália, a direita de Silvio Berlusconi, cujo espaço tendem a ocupar. A subida do FdI foi meteórica: passou dos 2%, em 2013, e pelos 4,4%, em 2018, até ser o mais votado, com 26%, em 2022. Terá ganho apoios, quando foi a única força de relevo a não apoiar o executivo de Mario Draghi; e, após a vitória, formou governo com a Liga (de direita radical), a Força Itália e formações mais pequenas. Integra, ainda, os governos de 15 das 21 regiões e domina as sondagens nacionais. Meloni, declarando-se “mulher, mãe, italiana e cristã”, mandou tirar dos documentos de identificação de filhos de casais homossexuais os apelidos de progenitores não-biológicos. E, dura com a imigração, quer aproximar a Itália do presidencialismo.

Na Letónia, a Aliança Nacional (NA), economicamente liberal e socialmente conservadora, ocupa 12 dos 100 assentos parlamentares letões e, entre 2011 e 2023, esteve nos governos de Laimdota Straujuma, Māris Kučinskis e Krisjanis Karins, assentes em alianças de direita. É anti-imigração, repudia o sistema de quotas da UE e homenageia os Letões que combateram ao lado dos nazis.

Nos Países Baixos, quatro meses após as eleições de novembro, Geert Wilders, o vencedor, ainda não é primeiro-ministro. O seu Partido da Liberdade (PVV) mais do que duplicou a bancada, mas o sistema eleitoral muito proporcional e de círculo único nacional propicia a fragmentação do Parlamento. Com 37 em 150 lugares, está em conversações com liberais conservadores, democratas-cristãos e ruralistas, mas há relutância, nos conservadores, em integrar um executivo com o antiliberal PVV, que já apoiou o primeiro executivo de direita de Mark Rutte (2010-2012). Assume posições de esquerda nos serviços públicos, defende o nacionalismo cultural e identitário, é anti-imigração e pela saída da UE, mas, enquanto lá estiver, opõe-se ao alargamento.

Na Polónia, após oito anos, o partido Lei e Justiça (PiS) foi suplantado pela aliança que vai da direita democrática à esquerda, encabeçada pelo liberal Donald Tusk, nas legislativas de outubro. Acabou o segundo consulado sob a formação de Jaroslaw Kaczisnky, após o período 2005-2007, em que era primeiro-ministro, enquanto o seu gémeo Lech era presidente (este morreu, em 2010, na queda de um avião”. Mesmo assim, o PiS foi o partido mais votado. Católico ultraconservador, dominou o Estado, após a vitória com maioria absoluta nas legislativas de 2015 (a primeira de um só partido) e pôs em causa a separação de poderes, o que lhe valeu um procedimento da UE.

A par da Hungria de Orbán, o PiS adotou o protecionismo (indo até ao intervencionismo estatal na economia) e o euroceticismo, opõe-se à imigração e aos direitos iguais para minorias. Todavia, não é o partido mais à direita, tendo, desde 2018, a concorrência da Confederação Liberdade e Independência, economicamente mais liberal e, no resto, mais dura do que o PiS.

A Aliança pela União dos Romenos (AUR), partido de direita radical, quer agregar os que vivem no país e os da Moldávia. Quereria que os dois países se fundissem. Critica a inércia dos governos romenos, face às minorias romenas na Sérvia ou na Ucrânia, e apoia Donald Trump. Nunca esteve no poder. É pró-NATO e pró-UE. Conservadora nos costumes, xenófoba, sobretudo, em relação aos Húngaros, defende a família, a nação, a fé cristã e a liberdade. Depois de se estrear com 9% nas eleições de 2020, quase duplica esse valor nas intenções de voto, agora.

Na Suécia, os Democratas Suecos (SD), o segundo partido mais votado nas legislativas de 2022, viabilizam, sem o integrarem, o governo do terceiro classificado, o Partido Moderado do conservador Ulf Kristersson, com os democratas-cristãos e com os liberais. Foi a primeira vez que a direita radical participou numa solução de governo. Um acordo em sete pontos consagra compromissos caros aos SD, como o endurecimento de penas ou a redução da imigração ao mínimo permitido pela UE. O pacto foi criticado a nível europeu e houve militantes do Partido Liberal a abandoná-lo. O seu líder terá dito, numa reunião partidária, que o SD era uma “lama castanha” (alusão aos camisas castanhas nazis), cujas loucuras os liberais conseguiram travar.

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Este panorama do avanço da direita radical na UE era conhecido dos partidos políticos (se não o conheciam, não tinham autoridade moral e política para se candidatarem a eleições nacionais). Por isso, deviam ter feito tudo para que o voto do eleitorado fosse voto informado, ficando o voto de protesto, obviamente legítimo, para uma posição residual. Também o Presidente da República conhecia a situação, pelo que, em vez de precipitar a dissolução do Parlamento, com base na sua leitura pessoal (Os partidos querem sempre eleições!), podia ter dado ensejo a novo governo emanado da então composição do hemiciclo. Os dois maiores partidos ganhariam tempo para se consolidarem nas lideranças e nas estratégias. Porém, as coisas são como são (e sem recuo).

2024.03.13 – Louro de Carvalho

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