segunda-feira, 18 de março de 2024

A questão da revolta “falhada” (ou auspiciosa) das Caldas da Rainha

 

Assinalou-se, a 16 de março, os 50 anos da revolta das Caldas da Rainha contra a ditadura que iria cair a 25 de abril de 1974. Dizem alguns que aquela movimentação militar, protagonizada por oficiais spinolistas, à revelia da comissão coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA), não devia ter acontecido, já que poderia ter posto em risco o MFA, enquanto outros sustentam que fora um ensaio da revolução abrilina, pois levou ao afinamento da estratégia, fez crer ao regime que estava tudo sereno e levou os militares à ação para libertar os camaradas presos.     

Após a rendição dos revoltosos (cerca de 200 militares), alguns foram presos e outros dispersos por diversas unidades. O regime mandou-os interrogar, mas eles recusaram denunciar outros elementos do movimento, incluindo a sua comissão coordenadora.

Os militares revoltosos integraram a coluna que saiu do Regimento de Infantaria 5 (RI 5) das Caldas da Rainha, na madrugada de 16 de março, rumo a Lisboa, para uma “manifestação de desagrado” pelas demissões do chefe e do vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, respetivamente, Francisco da Costa Gomes e António Sebastião Ribeiro de Spínola.

Os militares do MFA que não ficaram presos desencadearam, em abril, um golpe militar, com sucesso, que derrubou o regime ditatorial de 48 anos, liderado, então, por Marcello Caetano.

A 19 de março, o ministro do Exército, Andrade e Silva, nomeou uma comissão de inquérito para realizar interrogatórios aos militares detidos, uns no forte da Trafaria, em Almada (Setúbal), e outros no campo militar de Santa Margarida, em Constância (Santarém).

Pelas questões colocadas, percebe-se a inquietação do regime, quanto ao movimento de capitães: os militares são interrogados sobre quem deu as ordens, se pertencem ao movimento, quem são os membros da comissão coordenadora e a que chefe está ligado o movimento, além do grau de envolvimento de cada um nos acontecimentos, se participaram livremente ou coagidos. O regime pretendia ainda saber se havia outras unidades ou civis envolvidos.

Quanto às respostas, transcritas em dossiês do Exército que estão no Arquivo Histórico Militar, em Lisboa, parecia haver acordo entre os militares que assumiram maior protagonismo, ao negarem conhecer os membros da comissão coordenadora do MFA.

O capitão Marques Ramos, um dos mais ativos no 16 de março, disse conhecer a existência do MFA, mas não revelou nenhum dos nomes ligado à comissão coordenadora e respondeu não saber a que chefe estava ligado o movimento. O comandante da Companhia de Caçadores do RI 5, capitão Piedade Faria, respondeu não saber quem eram os membros da comissão coordenadora.

No dia 15, Marques Ramos esteve com os majores Casanova Ferreira e Manuel Monge, em Lisboa, onde foi informado de que as unidades de Lamego se tinham sublevado e iriam a caminho da capital (esta sublevação não se concretizaria). Os majores perguntaram-lhe se estava disponível para ir às Caldas da Rainha “comunicar que interessava vir a Lisboa fazer uma manifestação de desagrado e desagravo, por terem sido demitidos os generais Costa Gomes e Spínola, sem motivos justos, ou seja, por não comparecerem na manifestação de apoio à política do governo conhecida como a “brigada do reumático”.

Chegado ao RI 5, informou que “outros oficiais obtiveram a confirmação de que a Escola Prática de Infantaria [EPI] e a Escola Prática de Cavalaria [EPC] já estavam na rua, pormenor que foi confirmado, passando o telefone de ouvido em ouvido de vários oficiais”. Porém, disse não se lembrar com quem falara. Então, o pessoal do RI 5 decide sair. E, quando Marques Ramos os reuniu na sala de oficiais, “foi para dizer que iam para o aeroporto, onde aguardariam ordens”, mas não revelou de quem as receberiam e referiu que a coluna “não levava intuitos bélicos”.

Além das medidas de preparação da saída, foi tratada a “neutralização do comando da unidade”, a cargo de vários oficiais, entre capitães e tenentes, que neutralizaram o comandante, o 2.º comandante e o tenente Lourenço, que estava com eles, relatou aos inquiridores. Contou que havia “um clima de excitação” no quartel e que se lembrava de ouvir furriéis e cabos milicianos a dizer “também vou” ou “também quero ir”, pois constava que sairiam várias unidades do Porto, de Lamego, de Santarém, de Mafra, de Évora e de Lisboa, o que não se verificou.

A coluna de 12 viaturas saiu das Caldas, a cerca de 90 quilómetros a norte de Lisboa, pelas 4h00 de 16 de março, um sábado. E Piedade Faria contou que, antes de chegarem à portagem de Lisboa, cerca das 07h30, pararam e viram Marques Ramos ir ao encontro de Casanova Ferreira e Manuel Monge, que estavam numa viatura própria e lhe disseram para voltarem para trás, pois havia tropas do regime mais à frente. Por isso, regressaram ao RI5 por volta das 10h30/10h45, foram mandados “arrecadar as armas” e colocaram as munições sobre um cobertor na relva da parada.

“O pessoal foi para o refeitório, onde alguém arranjara comida” e chegou o brigadeiro Serrano, de Tomar (das tropas afetas ao regime), para exigir a rendição, tendo o quartel sido cercado.

As conclusões, assinadas pelo coronel de Infantaria Ernesto Fontoura Garcez de Lencastre, propunham que se prosseguisse com a ação disciplinar contra os intervenientes, por se verificar que tinham infringido vários artigos do Regulamento de Disciplina Militar (RDM), “altamente lesivos da disciplina e da hierarquia militar”.

Depois de 16 de março, o poder político concentrou a atenção sobre os revoltosos, pensando que Spínola controlava o MFA, o que permitiu que outros militares do MFA, como Otelo Saraiva de Carvalho, que escapou a ser preso, nesse dia, preparassem e concretizassem o golpe vitorioso em 25 de abril de 1974, que levou à instauração do regime democrático.

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Os militares da “brigada do reumático” (não velhos nem sofredores de reumático), a 14 de março, no Palácio de São Bento, afiançaram fidelidade ao regime do Estado Novo e à política ultramarina da nação. Marcello Caetano retribuiu com um discurso e empossou oito novos governantes. Porém, na madrugada do dia 16, uma coluna do RI 5 iniciou marchou para Lisboa com o objetivo de derrubar o poder. O golpe das Caldas, acabado em menos de 20 horas, prova que, nos primeiros meses de 1974, Portugal vivia em conspiração. A ditadura cairia de madrugada, 39 dias depois, abrindo caminho ao fim da guerra colonial e à democracia.

O general Paiva Brandão, porta-voz do grupo fiel e Chefe de Estado-Maior do Exército, garantiu: “As Forças Armadas não fazem política, mas é seu imperioso dever, e também da nossa ética, cumprir a missão que nos foi determinada pelo governo legalmente constituído.” Todavia, estava equivocado, pois as Forças Armadas andavam a fazer política.

Kaúlza de Arriaga conspirava com os ultras, os capitães conspiravam e teciam o movimento que fez o 25 de Abril, Spínola conspirava com os spinolistas e, deliberadamente, faltou com Costa Gomes – ao beija-mão de fidelidade. A falta foi punida e os prestigiados generais Costa Gomes e António Sebastião Ribeiro de Spínola foram exonerados dos cargos que detinham.

Marcello Caetano, presidente do Conselho, proclamou: “Os sacrifícios que hoje se lhes exigem em África são pesados, sem dúvida. Mas encadeiam-se numa ação secular em que o País sempre ficou devedor da sua grandeza e projeção ao esforço dos seus soldados.”

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Enquanto os militares alternam entre a corte ao regime e a conspiração, os preços a aumentam, a inflação dispara, Caetano sabe dos riscos da escalada de preços e a crise de energia não cessa.

Segundo o Diário de Lisboa, o presidente dos Estados Unidos da América, Richard Nixon, deu “um grande murro na mesa, o menos diplomaticamente possível, para – segundo os observadores – acertar o passo dos aliados europeus ou para criar, entre eles, dissensões tais que permitam uma fácil imposição da vontade dos Estados Unidos”.

A saída do RI 5 ocorreu três semanas após a publicação dlivro de António de Spínola “Portugal e o Futuro”, com 50 mil exemplares vendidos, entre as 9h e as 15h, no dia em que foi posto à venda, e com 230 mil cópias editadas em oito meses, com 20% de direitos de autor pré-negociados pelo irmão do general. O livro sublevou o pensamento de milhares de pessoas, por questionar a guerra colonial e propor uma solução não militar para o conflito, implicando a criação da federação política de Estados lusíadas.

O golpe falhado do 16 de março foi obra dos spinolistas “para se anteciparem”, segundo alguns, mas o 25 de Abril teria ocorrido com ou sem tal evento. Matos Gomes separa as águas entre capitães e spinolistas do 16 de março, apesar de estes últimos terem quase todos convergido e desaguado no MFA. E João Céu e Silva, autor do livro “o General que começou o 25 de Abril dois meses antes dos Capitães”, lembra que Otelo Saraiva de Carvalho “era o único elemento comum aos dois grupos” e que Melo Antunes – um dos incontestados estrategas do MFA – fez saber que se afastaria, se Otelo não preparasse os planos da revolução, com detalhe e segurança, o que viria a acontecer com a revisão de planos e confirmações de segurança.

Meses antes, a 9 de setembro de 1973, parte dos militares que fizeram o 25 de Abril, reuniram, num monte, em Alcáçovas, com 136 oficiais de todas as armas e serviços das Forças Armadas, em reação aos decretos-leis n.º 353/73 e 409/73, que a maioria decidiu continuar a contestar, juntando-se a 51 oficiais a prestar serviço, na Guiné-Bissau, e a 97, a prestar serviço em Angola.

Nos dias agitados de março, os EUA exigiam a retirada total de Israel dos Montes Golã, a Arábia Saudita pedia aos produtores de petróleo que pusessem termo ao embargo contra os Estados Unidos da América do Norte e a União Soviética falhava um poiso em Marte. Ernesto Geisel tomava posse como quarto presidente da ditadura militar brasileira. O destino dos imigrantes portugueses na República Federal da Alemanha (RFA) era preocupante, pois a Federação das Indústrias Alemãs considerava “indesejável o aumento do número de trabalhadores estrangeiros na RFA” que, no total de nacionalidades, representavam mais de 10% da mão-de-obra do país.

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No concelho da Marinha Grande, emergiu a greve dos vidreiros, em março de 1974, para exigir o aumento salarial de 100 escudos para todos os operários. Por isso, a nível local, há quem entenda que a Primavera de Liberdade se anunciou com a greve iniciada com o plenário de trabalhadores, a 13 de março, a que se seguiu a Intentona das Caldas, do dia 16.

A paralisação demonstrou que valia a pena lutar e arriscar as represálias do regime e das polícias, além da superação dos reformismos sindicais. Tal importância deveu-se também ao facto da greve ter sido “decretada por tempo ilimitado”, até à satisfação da reivindicação principal.

No livro “Luta Constante. Orla da Mata – 3”, publicado pela editora Hora de Ler, Luís Neto escreveu que, “após a chamada Conciliação, relativa ao contrato coletivo de trabalho da indústria vidreira, em junho de 1972, os vidreiros encontravam-se em luta por aumentos salariais”; e assinalou dois aspetos essenciais: “Os industriais arrecadavam grandes mais-valias ou lucros, com boas encomendas; os operários tinham salários baixos e com diferença substanciais entre as várias categorias.” “Já em junho de 1973, os Sindicatos do setor vidreiro tinham enviado ao Grémio Nacional da Indústria Vidreira uma proposta de alteração das tabelas salariais”, mas o acordo não foi alcançado. Houve também uma tentativa de conciliação, sem sucesso.

O autor refere o plenário de operários vidreiros no Sport Operário Marinhense, a 13 de março, e a decisão de “partir para a greve por tempo ilimitado até à satisfação das reivindicações, em todos os setores da indústria vidreira, reivindicando-se um aumento salarial igual para todos, o que foi, e ainda é, um acontecimento importante”. “Tudo indica que foram os operários” da Vicris/Crisal a dar início à paralisação, lê-se no livro, explicando que, “na noite de 14 para 15 de março”, na Crisal, “a PSP [Polícia de Segurança Pública] tentou entrar nas instalações da fábrica, mas os polícias foram impedidos por jovens operários que empunharam canas com vidro quente”.

Também na Ivima ocorreram episódios semelhantes, “com ameaças de que vinha até lá a PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado] para prender os grevistas, mas estes não cederam às provocações” e “a greve verificou-se, no seu final, praticamente a 100%”.

Luís Neto realça a perigosidade desta luta, devido às possíveis prisões – feitas, quase sempre, sem culpa formada e sem fim à vista –, sendo que “os dirigentes da greve, membros ou não do sindicato, tomaram atitudes firmes e corajosas”. A greve obrigou o patronato a negociar, “até que, passados três dias de luta, se obtiveram aumentos de 60 escudos (€ 0,30) para todas as categorias, exceto para os aprendizes (menores de ambos os sexos)” e para as empalhadeiras.

Lembrando que “só os vidreiros da Marinha Grande fizeram greve”, apesar de terem tentado que esta “se efetuasse a nível nacional”, Luís Neto adianta que “a polícia de choque começou a abandonar a Marinha Grande, no sábado de madrugada, portanto ao terceiro dia de greve, 16 de março, pressupondo-se que, devido à ‘Intentona das Caldas’, as forças do regime eram mais necessárias noutros pontos do país e, ou, em prevenção”.

O aumento salarial “era uma coisa fora de série” e as greves estavam fora de questão, não existiam, refere Etelvina Rosa, que acabara de entrar para a indústria vidreira, com mais cerca de 20 raparigas, apanhando-as de surpresa a greve. “Lembro-me de estarmos todas sentadas na secção, em vez de estarmos a trabalhar, e quando saímos, à hora de almoço, ficámos cheias de medo”, referiu, recordando que a Praça Stephens estava com polícia a cavalo. A PIDE estava acampada no matadouro municipal. “Havia períodos em que até estávamos de mãos dadas”, vincou, notando que, embora, nos dias de hoje, esta situação pareça “muito simples”, vivida àquele tempo era algo “mesmo tenebroso”.  

Os grevistas não sofreram consequências repressivas do regime, porque este caiu logo de seguida.

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A Revolução dos Cravos – o 25 de Abril – não surge, de súbito, nem fora do contexto: sociedade efervescente, emigração de pobres e de descontentes, militares (e suas famílias) cansados da guerra, regime de repressão e de atraso crónicos e trabalhadores com magros salários, face ao aumento do custo de vida.

A data pode ser ambígua, mas deve ser assinada, porque o merece.

2024.03.17 – Louro de Carvalho

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