sábado, 30 de março de 2024

Enfim, temos parlamento e teremos governo!

 

É a coisa mais natural em democracia. Realizaram-se eleições para a Assembleia da República (AR) com uma das mais amplas participações de eleitores. Os votos convertidos em mandatos, nos termos constitucionais e da respetiva lei eleitoral, ditaram nova composição parlamentar, de modo que, tendo-a em conta, o Presidente da República (PR), ouvidos os partidos com assento parlamentar, indigitou um novo primeiro-ministro (PM).

Como a campanha eleitoral perdeu imenso tempo a abordar a questão dos cenários pós-eleitorais e, consequentemente, os problemas da governabilidade ou da ingovernabilidade, também agora os pretensos modeladores da opinião pública tentam fazer-nos a cabeça sobre o comportamento dos deputados na AR e sobre a suposta curta duração do governo, indo ao ponto de fornecer diretrizes e orientações aos novos detentores do poder executivo.

Penso que, antes de mais, será prudente deixar que os deputados tomem os seus lugares e que o novo PM seja formalmente nomeado e empossado, assim como os seus ministros e secretários de Estado (eventualmente também os subsecretários de Estado). Só depois de os membros do governo cessante deixarem as suas funções e depois de o novo governo tomar posse, é que a AR ficará com uma composição mais estável, porque governantes do elenco de António Costa foram eleitos deputados e deputados da Aliança Democrática (AD), porque integram o governo, serão substituídos na AR por novos deputados oriundos dos respetivos círculos eleitorais.

Correu, do meu ponto de vista, demasiada tinta a propósito da eleição do presidente da Assembleia da República (PAR), a manifestar o furor especulativo, como se alguns operadores da comunicação social, mormente os que fizeram campanha para que vingasse a solução eleitoral encontrada, não tivessem mais assuntos de interesse a abordar.

Não havendo, na AR, uma força política maioritária (a esquerda não tem maioria, a direita moderada também não e a direita radical também não), era óbvio que propor um candidato à eleição de PAR, sem negociar com outra força política de feição ideológica ou pragmática mais afim, só por milagre teria sucesso, sobretudo se nos lembrarmos de que o voto, nestas circunstâncias, é secreto, podendo o votante desviar-se, sem penalização, da diretriz partidária.

Também é natural que um partido que tenha 50 deputados na AR barafuste, porque o líder da AD manteve, para já, o aforismo que gizou, “o não é não”, para se eximir de negociar com um partido que, pelos vistos, não agrada à maioria do eleitorado.   

Num segundo momento, cada uma das três maiores forças partidárias apresentou o seu candidato a PAR e, como nenhum obteve a maioria absoluta dos votos dos deputados em efetividade de funções (116 votos em 230 deputados), realizou-se a segunda volta, em que o candidato do Partido Socialista (PS) obteve o maior número de votos (90), mas longe da maioria necessária. Por isso, o processo eleitoral foi reaberto. E o PS tomou a iniciativa de propor à AD uma solução para o impasse: um acordo institucional de presidência rotativa, sendo a presidência da AR confiada, nas primeiras duas sessões legislativas, ao Partido Social Democrata (PSD) e, nas outras duas, ao PS, o que foi aceite, tendo sido eleito, por voto secreto, o deputado José Pedro Aguiar branco, do PSD, que fez o discurso de equidistância e de promessa de respeito por todos os deputados, em nome dos princípios da dignidade de todos e da igualdade dos deputados, assim como em nome do prestígio da casa da democracia.

Sem qualquer problema, os deputados votaram, a seguir, os nomes iniciados pelas quatro maiores forças partidárias para vice-presidentes, para secretários e para vice-secretários.

O líder do Chega veio a terreiro dizer que a AD fez a sua escolha (referindo-se ao PS) e o vice-presidente da AR proposto por aquele partido esclareceu que o seu partido é contra o sistema, mas não contra o regime. Era o que faltava ser contra o regime e alinhar nas suas estruturas!   

Vieram alguns comentadores colocar em dúvida a posição do PS, o qual aproveitou o ensejo para reafirmar o seu estatuto de líder da oposição, responsável e aguerrida, às políticas da AD, mas garantindo que não fará oposição ao país, nem à Assembleia da República. Paralelamente, recordou que não alinharia em coligações negativas contra o programa do governo e que viabilizaria um orçamento retificativo, se o governo o julgar necessário para responder às reivindicações dos professores e das polícias, com a condição de que esse instrumento de gestão seja elaborado até ao início do próximo verão. Também reiterou que não se comprometia, a esta distância, a viabilizar qualquer outro orçamento do Estado.

Uma coisa é certa: é mais difícil ao PR ver contrariado um veto a um decreto da AR. Com efeito, será difícil conseguir-se, na AR, uma maioria que reconfirme um seu diploma vetado, ficando o chefe de Estado a ganhar pontos. Resta saber se irá vetar leis, como até agora, com base na aprovação por uma diminuta (ou, no caso, instável) maioria.

Outra questão que tem estado em discussão na praça pública é a do excedente orçamental. Alguns sustentam que o excedente orçamental, enaltecido por Fernando Medina, ou resulta de habilidade do titular da pasta das Finanças ou foi construído à custa do sacrifício e das lágrimas da pessoas (“o país está melhor, mas as pessoas estão pior”); outros estão a minimizá-lo, provavelmente para criar o ambiente favorável à prometida descida de impostos e a outros itens que integraram o leilão de promessas. A propósito, lembro-me da promessa de choque fiscal em 2022, contrariada pelo aumento de impostos, por o novo governo, alegadamente, ver o país de tanga.

Alguns comentadores minimizam a descida da dívida e do défice, pelo facto de isso resultar do aumento do produto interno bruto (PIB), bem como da subida da inflação. Com efeito, segundo eles, a dívida não baixou em valores absolutos, mas apenas em relação ao PIB.

Também os especialistas se dividem sobre a aplicação do excedente orçamental, se deve ser feita na resposta às reivindicações dos diversos grupos profissionais ou se deve ser feita na amortização da dívida. O próprio secretário-geral do PS e o seu correligionário Fernando Medina, responsável pelo apuramento do excedente, vêm advertindo para a evolução dos acontecimentos e para o facto de as regras orçamentais da União Europeia (UE), desde a pandemia, serem retomadas em 2025. Além disso, a guerra na Ucrânia está sem fim à vista e subsiste o compromisso de investir 2% na Defesa, nos termos do compromisso com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).

 

Quanto ao governo, também há comentários desajustados e presságios pouco políticos.

Ainda não se tinha ideia sobre quem integraria o executivo, já se aventava, como certo, o propósito de a AD governar por decreto. Quis fazê-lo um presidente francês, quando eleições parciais lhe deram maioria desfavorável na Assembleia Nacional, o que mereceu a crítica de tique ditatorial.

Ora, no nosso sistema politico-constitucional, de forte pendor parlamentar (o sistema francês é semipresidencialista quase a raiar, em alguns aspetos, o sistema presidencialista), o governo pode legislar (por decreto-lei) em matérias da sua “exclusiva competência”, nomeadamente, em “matéria respeitante à sua organização e funcionamento”, em matérias não reservadas à AR, e em matérias de reserva relativa da AR, “mediante autorização desta”, bem como em matérias de “desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevem” (ver artigo 198.º da CRP – Constituição da República Portuguesa). Todavia, qualquer decreto-lei pode ser objeto de apreciação parlamentar, podendo constituir-se uma maioria que dite a sua revogação ou a alteração de algumas das suas normas. Por isso, governar por decreto não é opção.

Conhecido o elenco ministerial, mas ainda sem tomar posse (agendada para 2 de abril quanto ao PM e aos ministros, e para 5 de abril, quanto aos secretários de Estado), já se discutia a curta longevidade do governo e até veio a público, por supostos pseudónimos do PR, que este dava ao governo seis meses para mostrar o que vale. Basta! Deixem que tomem conta das respetivas pastas, que elaborem o programa do XXIV Governo Constitucional, que este seja discutido na AR, que tenham tempo de executar ou não, faseadamente, o leilão de promessas eleitorais e que mostrem a capacidade de elaborar orçamentos, de os executar e de negociar medida a medida. E vamos fazendo, à medida que passa o tempo, o nosso juízo de valor.

Não obstante, a longevidade do governo depende da capacidade de negociar o Orçamento do Estado para 2025 (OE 25) e da crença nas sondagens. Se o OE 25 passar, dificilmente o PR terá condições para dissolver a AR, a menos que o pendor dissolvente prevaleça (a partir de setembro de 2025, o PR não tem o poder de dissolução). Por outro lado, se o PM quiser governar à vista, se se fiar nos estudos de opinião e se quiser arranjar pretexto para fazer cair o governo, pode ter sorte e conseguir maioria absoluta em novas eleições ou ver uma subida vertiginosa da extrema-direita, de modo a engolir um dos dois grandes partidos. Às vezes, a ambição trama o artista.

Posso não gostar do atual elenco ministerial e ter baixas expectativas, mas não me é lícito condenar o governo ao fracasso ou salvá-lo. Ele que se salve pelas boas medidas ou se afunde na sua eventual inépcia. Respeito o recato do silêncio que resguardou os nomes do elenco, tal como respeito as luzes da transparência, mas sem exageros. O silêncio tanto pode ser a alma do negócio como pode ser a negação da prestação de contas atempada. E a excessiva transparência pode redundar em devassa ou em descaramento.

Não conheço alguns dos ministros, pelo que não faço juízos apressados; e sei do valor académico e/ou profissional de outros, mas nem sempre valor académico e profissional é mais-valia em liderança política. Só espero que boas medidas não regridam, que medidas nitidamente perversas sejam revertidas e que medidas cuja validade se desconhece tenham espaço e tempo para mostrarem o que valem.    

O governo fundiu pastas, reagrupou algumas e criou uma pasta nova. É uma questão de orgânica a gerir pelo PM. Tem muitos elementos do PSD – pesos políticos –, pouca abertura à sociedade civil. É natural que o partido que governa se escude na prata da casa e não na sociedade dita civil, que não quer ser política.

Será governo de combate, como dizem? Espero que não seja de combate à oposição, aos grupos socioprofissionais, ao povo. Espero que seja de combate à conflitualidade, à pobreza, às desigualdades, à insegurança e ao atraso.

Veremos se quem provocou a atual situação não virá a arrepender-se. A política é feita de opções.

2024.03.30 – Louro de Carvalho

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