quarta-feira, 27 de março de 2024

O Regulamento dos Mercados de Criptoativos europeu (MiCA)

 

A União Europeia (UE) estabeleceu, em junho de 2022, um quadro regulamentar para os criptoativos, para os emitentes de criptoativos e para os prestadores de serviços de criptoativos.

Os recentes desenvolvimentos neste setor, em rápida evolução, confirmaram a necessidade urgente de regulamentação à escala da UE. O Regulamento dos Mercados de Criptoativos (MiCA) protege melhor os europeus que investem nestes ativos e evita a utilização abusiva de criptoativos, mas deixa espaço à inovação, para manter a atratividade da UE.

Por conseguinte, sob proposta da Comissão Europeia, o Conselho Europeu adotou o seu mandato de negociação MiCA, a 24 de novembro de 2021. Os trílogos entre os colegisladores tiveram início em 31 de março de 2022 e concluíram-se com um acordo provisório entre a Presidência do Conselho e o Parlamento Europeu (PE), sobre a proposta de regulamento relativo aos mercados de criptoativos (MiCA), que abrange os emitentes de criptoativos não apoiados e das “criptomoedas estáveis”, bem como as plataformas de negociação e as carteiras em que são mantidos os criptoativos. Este quadro visa proteger os investidores e preservar a estabilidade financeira, assim como permitir a inovação e promover a atratividade do setor dos criptoativos. Ao mesmo tempo, proporciona uma maior clareza na UE, já que alguns Estados-membros já dispunham de legislação nacional em matéria de criptoativos, mas ainda não existia um quadro regulamentar específico, a nível da UE.

“Este regulamento histórico trava a utilização desregrada de criptoativos e confirma o papel da UE como definidora de normas para as questões digitais”, dizia Bruno Le Maire, então ministro francês da Economia, das Finanças e da Soberania Industrial e Digital.

É uma peça do MiCA a regulamentação dos riscos relacionados com os criptoativos. Com efeito, o MiCA protege os consumidores contra riscos associados ao investimento em criptoativos e ajuda-os a evitar esquemas fraudulentos. Os consumidores tinham direitos de proteção e de reparação muito limitados, especialmente quando as transações ocorriam fora da UE. Com estas novas regras, os prestadores de serviços de criptoativos têm de observar requisitos rigorosos de proteção das carteiras dos consumidores e de assumir a responsabilidade, caso percam os criptoativos dos investidores. O MiCA abrange também qualquer tipo de abuso de mercado relacionado com qualquer tipo de transação ou serviço, nomeadamente a manipulação do mercado e o abuso de informação privilegiada.

Os intervenientes no mercado de criptoativos são obrigados a declarar as informações sobre a sua pegada ambiental e climática. A Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA) elabora projetos de normas técnicas de regulamentação relativas ao conteúdo, às metodologias e à apresentação de informações relacionadas com os principais impactos ambientais e climáticos adversos. No prazo de dois anos, a Comissão Europeia teve de apresentar um relatório sobre o impacto ambiental dos criptoativos e a introdução de normas mínimas de sustentabilidade obrigatórias para os mecanismos de consenso, incluindo a prova de trabalho.

A fim de evitar sobreposições com a legislação atualizada em matéria de luta contra o branqueamento de capitais, que abrange os criptoativos, o MiCA não duplica as disposições em matéria de luta contra o branqueamento de capitais previstas nas regras, recentemente atualizadas, aplicáveis às transferências de fundos que foram acordadas em 29 de junho. No entanto, exigiu que a Autoridade Bancária Europeia (EBA) fosse incumbida de manter um registo público dos prestadores de serviços de criptoativos não conformes. Os prestadores de serviços de criptoativos cuja empresa-mãe esteja situada em países que constem da lista da UE de países terceiros considerados de risco elevado de atividades de branqueamento de capitais, bem como da lista da UE de jurisdições não cooperantes para efeitos fiscais, são obrigados a aplicar controlos reforçados em conformidade com o quadro da UE em matéria de luta contra o branqueamento de capitais. Podem ser também aplicados requisitos mais rigorosos aos acionistas e à gestão dos prestadores de serviços de criptoativos, nomeadamente no atinente à sua localização.

Também integra o MiCA um quadro sólido aplicável às “criptomoedas estáveis”, para proteger os consumidores. Na verdade, os recentes acontecimentos nos mercados das “criptomoedas estáveis” mostraram, mais uma vez, os riscos em que incorrem os seus detentores na ausência de regulamentação, bem como o impacto dessa ausência de regulamentação noutros criptoativos.

Por isso, o MiCA protege os consumidores, pois exige aos emitentes de criptomoedas estáveis que constituam uma reserva suficientemente líquida, com um rácio de 1:1 e, em parte, sob a forma de depósitos. A cada detentor das “criptomoedas estáveis” é oferecido um crédito, em qualquer momento e de forma gratuita, pelo emitente, e as regras que regem o funcionamento da reserva também proporcionam uma liquidez mínima adequada. Além disso, todas as “criptomoedas estáveis” são supervisionadas pela EBA, sendo a presença do emitente na UE uma condição prévia para qualquer emissão.

O desenvolvimento de criptofichas referenciadas a ativos baseadas numa moeda não europeia, enquanto meio de pagamento amplamente utilizado, é limitado, a fim de preservar a soberania monetária da UE. Os emitentes de criptofichas referenciadas a ativos têm de possuir uma sede oficial na UE, para assegurar a supervisão e o acompanhamento adequados das ofertas públicas de criptofichas referenciadas a ativos.

Este quadro proporciona a segurança jurídica esperada e permite que a inovação prospere na UE.

Enfim, passou a haver regras à escala da UE aplicáveis aos prestadores de serviços de criptoativos e aos diferentes criptoativos. Com efeito, nos termos do acordo, os prestadores de serviços de criptoativos necessitam de uma autorização para operar na UE. As autoridades nacionais têm de emitir a autorização no prazo de três meses. Relativamente aos prestadores de serviços de criptoativos de maior dimensão, as autoridades nacionais transmitirão regularmente informações pertinentes à ESMA.

As criptofichas não fungíveis (NFT), isto é, os ativos digitais que representam objetos reais como arte, música e vídeos, são excluídos deste âmbito de aplicação, exceto se forem abrangidos pelas categorias de criptoativos existentes. No prazo de 18 meses, a Comissão Europeia teve de elaborar uma avaliação exaustiva e a proposta legislativa específica, proporcionada e horizontal para criar um regime para as NFT e para fazer face aos riscos emergentes desse novo mercado.

Ao acordo provisório, seguiram-se as etapas seguintes, desde logo a sujeição à aprovação do Conselho e do PE, antes de seguir o processo de adoção formal, até à formulação e aprovação final do regulamento e a sua publicação no jornal oficial da UE.

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A Comissão Europeia apresentou a proposta do MiCA em 24 de setembro de 2020. Esta proposta faz parte do vasto pacote Finança Digital, que visa desenvolver uma abordagem europeia que promova o desenvolvimento tecnológico e assegure a estabilidade financeira e a proteção dos consumidores. Além da proposta do MiCA, o pacote inclui uma estratégia de finança digital, um Regulamento Resiliência Operacional Digital (DORA) – que abrange também os prestadores de serviços de criptoativos – e a proposta relativa ao regime-piloto para a tecnologia de registo distribuído para utilizações em grosso.

Este pacote colmata uma lacuna na legislação da UE, assegurando que o atual quadro jurídico não obstaculiza a utilização de novos instrumentos financeiros digitais e garantindo que essas novas tecnologias e produtos são abrangidos pelo âmbito de aplicação da regulamentação financeira e dos mecanismos de gestão dos riscos operacionais das empresas que operam na UE. Assim, o pacote visa apoiar a inovação e a aceitação de novas tecnologias financeiras, proporcionando, em simultâneo, um nível adequado de proteção dos consumidores e dos investidores.

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Assim, a 9 de junho de 2023, foi publicado, no Jornal Oficial da União Europeia, o Regulamento (UE) 2023/1114 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de maio de 2023, relativo aos mercados de criptoativos (Regulamento MiCA – markets in crypto assets, em inglês), tendo entrado em vigor em 29 de junho do mesmo ano de 2023.

A este respeito, o advogado José A. Nogueira, a 22 de março deste ano, lamentava que a entrada em vigor do MiCA ainda não tenha atraído a atenção devida naquilo que se impõe como uma área de vanguarda numa realidade cada vez mais presente, especialmente junto dos mais jovens.

Efetivamente, como sustenta o renomado advogado da RSN Advogados, a existência de um conjunto de direitos, de serviços ou de ativos digitais “impõe-se, cada vez mais, no quotidiano e o Direito terá, inexoravelmente, que lhe dar enquadramento”. Neste sentido, o equilíbrio da segurança jurídica com o dinamismo da inovação é o desafio a que o MiCA “procura, de forma pioneira, dar respostas”.

Cumprir requisitos regulatórios traz às empresas, especialmente às mais pequenas, “obrigações que se revelam dispendiosas, dificultando a livre participação no mercado, com impacto negativo na inovação”. E o especialista aponta a índole paradoxal da questão. De facto, o instrumento jurídico que visa dinamizar a indústria digital na UE colide com os princípios fundadores das “criptomoedas”, como a descentralização e o anonimato, o que desagradará aos mais dogmáticos do setor. Porém, como já ficou dito e agora se sintetiza, o objetivo final do pacote legislativo em causa é proteger os consumidores, regulando as empresas que emitem, negoceiam ou custodiam de criptoativos fungíveis.

Assim, destaca-se: a exigência de procedimentos adequados de diligência prévia (due dilligence) e de verificação da identidade dos clientes; a obrigação de, para funcionarem, as empresas que emitem, negoceiam ou custodiam criptoativos de solicitarem autorização junto das autoridades competentes de cada Estado-membro da UE; a criação de um registo centralizado de prestadores de serviços de ativos criptográficos (crypto-asset service providers – CASP); e a imposição da regulação pelas mesmas regras às empresas que operam em diferentes países da UE, aumentando a concorrência de serviços em diferentes países.

O receio de que o MiCA desencoraje a inovação é válido. Todavia, nenhum mercado é sustentável e “fair”, sem o devido enquadramento legal. Este é o dado positivo que importa vincar. E o desafio é a devida implementação do novo regime, nomeadamente através da correta transposição dos termos e dos conceitos utilizados pelos profissionais do setor e pelas autoridades regulatórias; da implementação prática do MiCA, com respostas técnicas capazes no respeitante à supervisão e à autorização das empresas; da consciencialização e da capacitação das partes interessadas, incluindo empresas, investidores e autoridades supervisoras; e da cooperação internacional.

Seja como for, o MiCA constitui um marco relevante na regulamentação do mercado digital na UE, pois estabelece padrões mais rigorosos para a segurança dos produtos, para a transparência das plataformas online e para a proteção dos consumidores. E, ao promover a confiança dos consumidores e uma concorrência mais justa, oferece oportunidades para o crescimento e para a inovação no mercado digital em Portugal e em toda a UE, que importa não desperdiçar.

O futuro está muito próximo e é já daqui a pouco. Por isso, convém acautelá-lo.

2024.02.27 – Louro de Carvalho

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