O enunciado em epígrafe é colocado na boca e na pena de Bento XVI e de
Francisco pelo cardeal Sean
O´Malley, arcebispo de Boston, que proferiu, a 28 de junho, uma notável
conferência, na UCP (Universidade Católica Portuguesa), no Auditório Humberto de Medeiros, em Lisboa, sobre
“A missão do papa Francisco e os desafios
da Igreja no presente”.
Nessa conferência organizada pela UCP e que teve a presença do Presidente
da República, o cardeal norte-americano alertou ainda para “globalização da
indiferença”, tema recorrentemente abordado pelo Papa Francisco e que o bispo
de Lamego denomina de “lodaçal da indiferença”.
No seu
discurso em português, o cardeal-arcebispo de Boston sustentou a necessidade de
“superar a indiferença para com o sofrimento dos outros” para mostrar que os ensinamentos
da Igreja têm a ver com amar e cuidar de todos, explicitando, neste pronome indefinido
e quantificador universal “todos”, a inclusão dos não-nascidos, dos idosos, dos
deficientes físicos e mentais e dos migrantes e prófugos.
Assumindo
que a Igreja católica norte-americana é uma igreja de imigrantes, relevou as
viagens do Papa à ilha italiana de Lampedusa e à ilha grega de Lesbos para
homenagear a memória de milhares de pessoas que morreram no mar Mediterrâneo,
nos últimos ano feito cemitério da morte por via da esperança frustrada pela
sobrelotação do meios de transporte marítimo sob o capricho da exploração dos
abutres (des)humanos.
O'Malley não
teve, além disso, pejo em abordar explicitamente temas candentes da atualidade,
ora considerados como temas fraturantes. Assim, por exemplo, disse que a Igreja
Católica é contra o aborto “não por ser má, mesquinha ou antiquada”, mas “por
amar as pessoas e é isso que é preciso mostrar ao mundo”. Lembrando que
Francisco fala do amor e misericórdia para dar o contexto de todos ensinamentos
da Igreja, incluindo a problemática do aborto, esclareceu:
“Algumas pessoas pensam que o Santo Padre
deveria falar mais sobre o aborto. Tenho para mim que ele fala do amor e
misericórdia para dar a todos o contexto dos ensinamentos da Igreja sobre o
aborto. Somos contra o aborto não por sermos maus, mesquinhos ou antiquados,
mas porque amamos as pessoas. É isso que temos que mostrar ao mundo”.
Afirmando
que o Papa Francisco e o Papa emérito Bento XVI lembraram que “o catolicismo não
é um catálogo de proibições”, salientou a insistência destes Pontífices na
necessidade de ser positivo e dar relevo àquilo que “une e não ao negativo e às
coisas que dividem” as pessoas, explicitando que “primeiro é preciso dar
prioridade à ligação entre as pessoas, ao caminho que percorremos juntos,
depois disso é mais fácil tratar das diferenças”.
Sobre o
carisma do Bispo de Roma, O'Malley referiu que o Papa trouxe uma nova
perspetiva à Igreja: “baralha categorias e parece ter fundido jesuítas e
franciscanos num só”. E, na perspetiva deste cardeal, conselheiro especial do
Papa, poderá dizer-se que a novidade deste pontificado de Francisco se sintetizará
em “mais misericórdia e menos moralismo”. Declarando que “há muitos sinais de
como o Papa Francisco se sente bem na sua pele e não se sente constrangido por
práticas anteriores”, o prelado elogiou
a novidade que estes três anos de pontificado têm representado e defendeu que o atual Sumo Pontífice tem procurado
apresentar uma “verdade provocadora que nos desinstala” e alterar “pressupostos
sobre poder, autoridade e liderança”.
D. Seán
Patrick O´Malley evocou na conferência a celebração do lava-pés num centro de
detenção juvenil, presidida por Francisco numa Quinta-feira Santa, explicando
que “o Papa replicou a surpresa, o escândalo dos apóstolos”, rejeitando “a Liturgia
estilizada numa basílica”.
Por outro
lado, enalteceu a visão que Francisco tem da moralidade, entendendo-a “no
contexto de um encontro com Cristo, desencadeado pela misericórdia”, condensado
na palavra “ternura”, dando a prioridade à “ligação entre as pessoas” como selo
de uma sustentável proposta de “nova moralidade”, ou seja, é preciso
“corresponder à misericórdia”, oferecendo evolutivamente “a resposta a uma
misericórdia surpreendente, inesperada e imerecida”. Numa conferência
intercalada por vários apontamentos humorísticos, o prealado de Boston elogiou
no pontífice argentino o “intenso zelo missionário”, o “grande amor pela
comunidade” e uma “vida disciplinada que não desperdiça nada, muito menos o
tempo”. Na sua ótica, a insistência nos temas do amor, da misericórdia, do
cuidado com os pobres e os mais necessitados faz o enquadramento das posições morais
e doutrinárias da Igreja Católica. Assim, no ano jubilar da misericórdia, o O'Malley
pediu, na esteira do ensinamento papal, que não se tenha medo da bondade,
ternura e preocupação com as crianças, os idosos, os pobres e os menos
privilegiados.
***
No final da
conferência, o Presidente da República distinguiu o cardeal norte-americano com
a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, pelo papel “na formação e
acompanhamento de comunidades portuguesas e de luso-descendentes durante
décadas”, na costa leste dos EUA. É mais uma condecoração da mesma ordem
honorífica portuguesa (ou melhor, mais um grau), pois, a 7 de fevereiro de 1985, foi agraciado com a comenda da Ordem
Infante D. Henrique, em reconhecimento pelo trabalho junto da comunidade
luso-americana. O presidente
precisou:
“A intenção
do presidente da República é entregar a condecoração aqui, ao contrário do que
é costume, precisamente para associar o mérito do agraciado a uma universidade
que tem desempenhado um papel essencial no quadro da sociedade e da cultura
portuguesas”.
Sean Patrick O’Malley nasceu no dia 29 de junho de
1944 em Lakewood. A família, de origem irlandesa, mudou-se, pouco depois, para
a Pensilvânia. Sean tinha apenas 12 anos de idade quando entrou no seminário
menor franciscano. Aos 21, fez a primeira profissão de votos simples e
ingressou oficialmente na Ordem dos Frades Menores Capuchinhos (OFMC). Formou-se em Teologia, fez um mestrado em educação e doutorou-se
em literatura espanhola e portuguesa, que ensinou na Universidade Católica, de
1969 até 1973.
Após um
breve período de diaconado na Ilha de Páscoa, recebeu a ordenação sacerdotal em
29 de agosto de 1970 e foi transferido para Washington, para o Centro Católico
Hispano, fundado em 1967, pelo arcebispo de Washington, organização de
assistência humanitária para os refugiados e imigrantes da América Latina. Em
1978, o cardeal-arcebispo de Washington William Wakefield Baum nomeou-o vigário
episcopal para Washington e diretor do serviço arquidiocesano da
Pastoral Social, com o especial encargo da pastoral da comunidade latina
na grande área de Washington D.C., capital federal dos Estados Unidos,
destacando-se ali a comunidade luso-americana. Nesta comunidade desenvolveu
relevante atividade eclesial e social, promovendo a assistência médica e apoio
legal aos imigrantes. Em 1984, é nomeado bispo coadjutor da diocese de
Saint Thomas, nas Ilhas Virgens, onde depois se torna bispo diocesano. A 16 de
junho de 1992, é nomeado bispo de Fall River, em Massachusetts. Passam-se dez
anos até ser transferido para a diocese de Palm Beach, na Flórida, em 2002.
Menos de um ano depois, João Paulo II nomeia-o arcebispo de Boston. E Bento XVI
eleva-o a cardeal, no consistório de 24 de março de 2006, com o título presbiteral
de Santa Maria della Vittoria.
O cardeal
O’Malley conquistou grande destaque aos olhos do público pela sua luta
determinada contra a pedofilia no clero. Em junho de 2010, após a publicação
dos relatórios Ryan e Murphy sobre os abusos de menores dentro da Igreja
católica na Irlanda, O’Malley foi escolhido pelo Papa para integrar o painel dos
prelados encarregados de visitar alguns seminários e dioceses irlandesas sinalizadas
pelos abusos. Cabem-lhe as visitas na arquidiocese de Dublin e nas sés
sufragâneas: Ferns, Ossory, Kildare e Leighlin. A Igreja que o cardeal espera passa
por uma severa provação. Ferida, sofre o êxodo em massa dos fiéis
escandalizados. A situação é tão grave que o capuchinho tem “esvaziado” os
recursos financeiros da arquidiocese para ressarcir as vítimas da pedofilia do
clero e para realizar uma campanha focada em trazer de volta os fiéis às
igrejas. A campanha publicitária, com o emblemático slogan “Católicos,
venham para casa”, tem funcionado. A participação dos fiéis nas paróquias
cresceu cerca de 12% desde o início da veiculação de breves inserções
televisivas, em que os católicos falam da descoberta e da redescoberta da vida
de fé. A honestidade e a sensibilidade do cardeal O’Malley ante esta ferida na
Igreja levam-no a assumir posições desconfortáveis, que, à primeira vista
confundidas com imprudência, acabam por ser adotadas por muitos “colegas” do sacro
colégio, conscientes da profundidade política e espiritual das palavras do
capuchinho. A sua fé rema com frequência contra a corrente. Sinal disso foi a
decisão de oficiar, um ano atrás, o funeral do senador Edward Kennedy. Aos
reparos do Prefeito do Tribunal da Assinatura Apostólica, acusando-o da
“imoralidade” de participar das exéquias duma pessoa afastada dos ensinamentos
da Igreja, O’Malley respondeu no seu blog dizendo que “dar a Kennedy um funeral
cristão foi um ato de misericórdia”, dado que “somos pessoas de fé e
acreditamos num Deus que ama e que perdoa”.
Aquando da
eleição papal motivada pela renúncia de Bento XVI, o cardeal-arcebispo de
Boston declarou que a questão essencial para o sucessor de Ratzinger é “o
governo central da Igreja”, em especial uma coordenação maior e mais eficiente dos
vários dicastérios, além duma visão “global” que permita ao novo papa enfrentar
os desafios do mundo contemporâneo.
O cardeal Sean Patrick O'Malley participou no simpósio
teológico-pastoral em torno do tema “Eu vim
para que tenham vida”,
promovido pelo santuário de Fátima, entre os dias 23 e 26 de junho. Aí, na
conferência de encerramento, declarou que os santuários têm um “ministério muito
importante” na atualidade, nomeadamente Fátima, onde se “aprende” com Maria e
se experimenta “a universalidade da Igreja com peregrinos de todas as partes do
mundo”, numa época marcada pela “violência e o sofrimento, sobretudo dos
emigrantes e refugiados”. Mais: os
santuários e sítios de peregrinação têm uma “importância única” na Igreja
Católica porque permitem a muitas pessoas sentir que fazem parte de uma
“família de crentes”.
Além de presidir à comissão para a proteção de menores, que trata os casos de abuso
sexual na Igreja Católica, o também arcebispo de Boston integra o conselho
consultivo de nove cardeais nomeado pelo papa para o aconselhar na reforma da
Cúria Romana e das instituições da Igreja.
***
Como se vê pelas afirmações e vida do cardeal e, o
cristianismo é de profissão de fé viva.
2016.07.02
– Louro de Carvalho
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