sábado, 9 de julho de 2016

A representação do Estado não pode cair no miserabilismo ignóbil

Entre os dias 4 e 6 de julho, o Presidente da República percorria a região de Trás-os-Montes no quadro de mais uma campanha de conhecimento e auscultação das populações, que ele denomina de “Portugal próximo”.
Entretanto, chegado o termo da missão de empatia que o levou a calcorrear cidades, vilas e aldeias dos distritos de Vila Real, Bragança e Guarda (parte norte do distrito), já demasiado desertificados, e depois de entrar em casa das pessoas, trocar beijos e abraços na rua, decidiu-se por ir a França assistir ao Portugal-País de Gales, em Lyon, no âmbito da meia-final do Euro 2016. Sem mais delongas, apanhou em Bragança um Falcon da Força Aérea Portuguesa, um dos três que estão à disposição do Governo e da Presidência para deslocações oficiais – no que foi acompanhado por dois membros do Governo e outros passageiros.
Marcelo Rebelo de Sousa é um adepto fervoroso da seleção das Quinas, que nunca se coibiu de comentar as performances da seleção nacional enquanto foi comentador político (em cujo exercício persiste). Porém, o Correio da Manhã, logo no dia 7, informava que a viagem de Marcelo para ver o Euro custava 14 mil euros e especificava: uma hora de voo nesta aeronave (combustível e manutenção) custa cerca de 3500 euros. O porta-voz da Força Aérea (FA) desvalorizou aqueles números, explicando que os aviões têm de voar de uma maneira ou de outra, para a tripulação se manter ativa, treinada e qualificada e acrescentando que, se a FA não fosse transportar o Presidente, “provavelmente o próximo voo estaria vazio”.
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Apanhado pelas contas da crítica, o Presidente Marcelo falou, no dia 8, de “uma prática diferente” para justificar que pagava uma viagem a França num avião Falcon da FA, apesar de ter direito a essa viagem sem a pagar. Diz Marcelo que “o Presidente da República tinha esse direito, e ainda por cima repartido com o Governo”, porque no mesmo avião, para assistir ao jogo Portugal-País de Gales, viajaram dois membros do Governo e “eram dois órgãos de soberania a pagar”. E, do seu lado, justificou: “no entanto, entendi, como sou um radical nessas matérias, mais papista do que o Papa, e decidi pagar”. Mais acrescentou que não estava a abrir nenhum precedente, atendo-se apenas ao facto de ser uma “prática diferente”, tendo já acontecido pagar do seu bolso almoços em Belém, que, ainda que tenham sido de trabalho, não foram oficiais.
Feitas as contas, parece que daqueles 14 mil euros – que juntam a manutenção e o combustível – apenas seria debitado o combustível (pelos vistos, só este é contabilizado no caso de órgãos de soberania), que somaria 6 mil euros – quantia que, dividida por 10, cabe a Marcelo uma quota de 600 euros.
Com efeito, fonte oficial do Palácio de Belém explicava: o valor do combustível (cerca de seis mil euros) dividia-se pelo número de passageiros (dez) e chegava a um valor por passageiro a rondar os 600 euros, sendo esse o montante que Marcelo assumia. A mesma fonte adiantava que, se a viagem tivesse sido feita em voo comercial, como nas duas ocasiões anteriores, o custo seria maior, porque implicaria pernoita.
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Para quê tanta coisa e tanta conta só para justificar a seriedade e probidade do atual Presidente, que ninguém pôs em causa? Ainda é cedo para mitificar a figura e a presidência de Marcelo. Provavelmente nem ele o pretenderá.
As coisas são como são. Esteja onde estiver, Marcelo é o Presidente da República até que expire o mandato ou a ele venha a renunciar. Do meu ponto de vista, entendo que, seja por interesse pessoal seja por interesse público, a sua presença em momento ou momentos do Euro 2016 é a presença do representante do Estado. Não tem de pagar do seu próprio bolso. Deve é ponderar primeiro – por si e seus conselheiros – se se justifica a sua presença ou não no ato público e selecionar o meio de transporte e outros meios logísticos mais adequados em termos de custos e de dignidade pessoal, pública e política. E os custos devem ser assumidos pelo orçamento da Presidência da República. Ademais, a um direito não se renuncia com facilidade.
Quanto aos almoços de trabalho, manifesto o mesmo entendimento. Recusar-me-ia a participar num almoço de trabalho com o Presidente no Palácio de Belém, sabendo que seria ele a pagar do seu bolso. E, se não eram almoços oficiais, não deveriam ter lugar em Belém.
A todos os órgãos de soberania e demais departamentos da administração pública se pede boa gestão de meios e obviamente contenção nas despesas. Porém, é de censurar qualquer atitude miserabilista. O país é pobre, mas não pelintra; os seus representantes são gestores e não merceeiros. Ou será que também o Presidente paga do seu bolso a segurança que a polícia lhe deve fazer, quando se trata da sua presença em atos públicos, mas que não oficiais?
A dignidade do Estado não se reduz à vaquinha a que recorrem os cidadãos comuns nos seus atos de lazer: dividimos por todos os custos da gasolina e vamos à bola, ao concerto ou à praia.
Quanto ao pagamento apenas do combustível, seja só com Marcelo, seja já de prática anterior, trata-se de iludir a questão. Quem dera que o cidadão comum se limitasse a pagar os custos de combustível quando viaja em transportes públicos ou em transportes de aluguer!
O porta-voz da FA, acima referido tem razão. As aeronaves têm de fazer horas de voo, para os oficiais se manterem ativos. E, se o pagamento de combustível é para minorar as deficiências orçamentais da FA, que pague, não o utente Presidente nem o utente membro do Governo, mas o orçamento do órgão que o dito utente representa.
Além disso, Marcelo paga porque pode. Mas a democracia séria e moderna não pode esbulhar a fortuna pessoal dos eleitos.
Parece, entretanto, que Marcelo nos quer habituar a tipo de postura. Já em campanha eleitoral sublinhava recorrentemente que pagava as despesas do seu bolso e criticava os gastos dos demais candidatos presidenciais. Dizem que, passados poucos dias da tomada de posse, recusara o Mercedes de 130 mil euros que recebera da Presidência de Cavaco Silva para alugar um Mercedes mais barato. Resta saber quanto custará tal aluguer e que modalidade de aluguer (leasing, aluguer de longa duração, rent a car). E quem não se lembra do golpe de misericórdia que sofreu a popularidade do seu antecessor por causa do discurso miserabilista que pronunciou de improviso em relação ao valor das suas pensões e da esposa e por ter renunciado ao vencimento de Presidente em troca da perceção das pensões?
Obviamente, concordo com o que escreve João Miguel Tavares no Público de hoje, dia 9, e que transcrevo:
“Embora eu aprecie gestos de contenção e exemplos de modéstia, convém não cair no ridículo. A democracia tem custos. Se os portugueses concluírem que Marcelo viajou demais e andou a ir demasiado à bola, logo tratarão de ajustar contas em 2021. Para já, mais vale cortar na demagogia do que no combustível. O país está meio falido, mas, que se saiba, ainda não é uma mercearia.”
E dizer que não se prevê nova utilização do Falcon por Marcelo até ao final do ano – até porque o Presidente estará presente, no próximo domingo, dia 10, em Paris, para assistir à final do Euro 2016 e que a deslocação será feita em voo comercial – torna-se arriscado ou de nulo efeito. A FA tem disponíveis três aparelhos daqueles para a Presidência e para o Governo. Quem garante que tal não será justificável ou necessário uma que outra vez? Terá Marcelo o direito de não querer utilizar esta prerrogativa apenas para parecer pobre? Irá pagar do seu bolso? Não, não creio nem quero tal miserabilismo público. Franciscanismo sim, mas nem tanto!

2016.07.09 – Louro de carvalho

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