segunda-feira, 18 de julho de 2016

“Não gastar, com ociosos, aquilo com que posso dar vida a muitos pobres”

Celebra-se hoje, dia 18 de julho, em Portugal, a memória do Beato Frei Bartolomeu dos Mártires – que foi arcebispo primaz de Braga no século XVI e um dos mais interventivos Padres Conciliares Tridentinos – na expectativa da sua canonização, uma vez que o Papa Francisco já a autorizou, dispensando o milagre “formalmente demonstrado” para a declaração de santidade, em audiência à Congregação para a Causa dos Santos, a 20 de janeiro deste ano.
O slogan vertido no enunciado em epígrafe é assumido pelo Papa João Paulo II em relação ao Beato e sintetiza a postura do arcebispo seiscentista, austera consigo mesmo e colaboradores, mas solidária para com os necessitados.
Bartolomeu dos Mártires foi declarado “venerável”, a 23 de março de 1845, pelo Papa Gregório XVI, e beato, a 4 de novembro de 2001, pelo Papa João Paulo II.
A 5 de fevereiro de 2015, o atual arcebispo de Braga D. Jorge Ortiga entregou, em mão, ao Papa Francisco um dossiê sobre a vida do antigo arcebispo e formulou o pedido de canonização equipolente (dispensa do milagre requerido), bom base na vida de eminente santidade reconhecida pelas porções da Igreja que pastoreou e/ou em que interveio. Com a atual dispensa do milagre, o processo de canonização entra numa fase conclusiva e supõe-se que, a curto prazo, será anunciada a data de canonização. Por outro lado, se a notícia da dispensa do milagre constitui um passo significativo que permitirá, em breve, a conclusão do processo de canonização e a declaração pública da santidade de Bartolomeu dos Mártires, a mesma notícia foi acolhida “como um novo estímulo para a caminhada arquidiocesana de conversão pessoal e pastoral” das comunidades eclesiais que reconheceram em Bartolomeu “um companheiro de viagem que abre novos horizontes” no caminho da nova evangelização.
A canonização do Beato é também um desejo da Diocese de Viana do Castelo, assumido e expresso pelo bispo Dom Anacleto Oliveira, em 2014 durante as comemorações dos 500 anos do nascimento do “santo do povo”. Em Viana, o Beato ficou conhecido por ter mandado construir o Convento de Santa Cruz – depois designado de São Domingos, tal como a igreja contígua – e sobretudo pela sua dedicação aos pobres. Renunciou como arcebispo em 23 de fevereiro de 1582 e recolheu-se no convento que mandou construir em Viana, onde faleceu a 16 de julho de 1590. Foi sempre apelidado pelo povo como o “arcebispo santo, pai dos pobres e dos enfermos” e insistiu, em vida, na deposição dos seus restos mortais naquele convento.
Notabilizou-se pelas intervenções no Concílio de Trento, pelas sugestões deixadas na Cúria Romana e pelos pensamentos que exprimiu e concretizou em ordem à reorganização da Igreja, nomeadamente pela formação e reforma do clero, pela “instrução e moralização” dos fiéis e pela “administração rigorosa” dos bens eclesiásticos.
O prelado de Viana assegura que Frei Bartolomeu “merece ser conhecido e venerado” por todos, até mesmo declarado como “doutor da Igreja”, face aos seus escritos e ensinamentos.
Além disso, Dom Anacleto ousou admitir que as “afinidades” históricas entre Frei Bartolomeu dos Mártires e o atual Papa podem contribuir para acelerar este processo, assegurando:
“Temos aqui o Francisco do século XVI. O papa Francisco tem muitas, muitas, afinidades com o beato Frei Bartolomeu dos Mártires. Seria muito interessante se nós déssemos a conhecer a sua figura e obra ao papa Francisco, porque o beato foi um precursor da sua ação”.
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Do melhor que se pode dizer do Beato Frei Bartolomeu dos Mártires, destaca-se:
1. A antífona do Benedictus na hora de Laudes do Ofício Divino do próprio do Beato/Santo:
Ao ver as multidões, Jesus encheu-se de compaixão porque andavam fatigadas e abatidas como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34).
Na verdade, deu provas de imitação de Cristo nesta matéria por ter percorrido as paróquias da sua ampla diocese, incluindo as então inóspitas terras de Barroso, que nenhum arcebispo tinha antes visitado e aonde talvez depois poucos tornaram a ir, porque as agruras da serra, então quase intransitável, tornavam a viagem verdadeiramente perigosa. Porém, o arcebispo não quis que ficassem privadas da luz da sua presença e da sua visita essas pobres, remotas e dispersas comunidades. Também, no caso da peste de Braga, por mais instâncias que lhe fizessem, não quis nunca sair da cidade contaminada, dizendo que era ali o seu posto de honra.
2. A oração coleta da Missa e das horas canónicas. Nesta se diz que, no Beato Bartolomeu dos Mártires, o Senhor deu ao povo “um ministro zeloso na caridade e na doutrina”. Na verdade:
- Como Pastor de Almas, com efeito, Bartolomeu dava-se todo pelas suas ovelhas. Conhecedor das necessidades da sua diocese, passou a reorganizar e aperfeiçoar os estudos do Colégio de S. Paulo, recorrendo aos Padres da Companhia de Jesus como coadjutores seus na obra do Senhor, vindo alguns anos depois o colégio a albergar mais de mil alunos. Para pregar a Palavra de Deus e ensinar Teologia na Sé e no Paço, levou quantos dominicanos lhe pôde dispensar o Provincial da Ordem. Para socorrer mais solicitamente a cidade de Viana, erigiu lá o convento de Santa Cruz, onde os seus irmãos de hábito seriam como que embaixadores do seu zelo e vigilância junto das almas. Canalizando para aquele Convento muitos dos recursos materiais e humanos do de S. Salvador da Torre, procurava enfrentar os diversificados problemas com que a cidade se confrontava na relação com o mar: o comércio marítimo e o considerável movimento de pessoas e mercadorias com todas as vantagens e perigos que isso acarreta, como naufrágios, pirataria, roubos, prostituição, e enriquecimento nem sempre lícito.
O arcebispo jamais consentiu em governar o seu rebanho de longe, mas queria, como bom e solícito pastor, chamar a todas as suas ovelhas pelo próprio nome e que todas ouvissem e conhecessem a sua voz. Por isso, fez sempre pessoalmente a visita pastoral da arquidiocese de 3 em 3 e de 4 em 4 anos, quando já mais acabado, não havendo frio, chuva, intempérie ou calor estival que lhe barrassem o caminho até das mais escarpadas penedias, nem muito menos, as objeções dos colaboradores assustados com os riscos do frio e da neve e mesmo com o facto de S. Geraldo ter morrido lá para as bandas do Barroso ao querer enfrentar o seu rigoroso inverno. Foi justamente no coração do inverno de 1560 que Dom Frei Bartolomeu saiu para a visitação e, em 4 de fevereiro, como atestam os Jesuítas, o arcebispo andava “muito ocupado nas coisas do arcebispado”. Em julho seguinte, referem novamente que ele “anda visitando”.
Em carta ao Papa Gregório XIII, diz o arcebispo que passa “a maior parte do ano” a visitar a sua Igreja. E a carta da notícia de que lhe foi aceite a resignação do arcebispado chegou exatamente quando andava a visitar a comarca de Valença do Minho.
- Como “Pai dos Pobres”, é significativo verificar que à porta do paço havia milhares de visitantes certos: eram os seus pobres. Todavia, os pobres mais pobres eram os que lá não iam, ou seja, os deserdados da sorte a quem a vergonha impedia de estender a mão. Bartolomeu mandava secretamente tirar informação e remediar. São edificantes os ditos e as cenas contadas sobre a generosidade de Frei Bartolomeu, algumas anedóticas, de que se destaca a seguinte:
Quando os cónegos de Braga lhe queriam fazer uma estátua e ele retorquiu:
“Vós sois piores que o diabo que queria que Jesus transformasse pedras em pão, pois quereis transformar o pão dos pobres em pedras…”
A sua misericórdia solidária para com os mais miseráveis teve a grande consagração na peste de 1570. Ao dar conta que a cidade de Braga estava infestada, acorreu a ela como quem acode a fogo. E nem as cartas que chegavam da parte de D. Sebastião e do Cardeal D. Henrique, para que evitasse o perigo, demoveram o arcebispo. E, enquanto mandava aos Padres da Companhia de Jesus que não tratassem diretamente com os empestados, para ter, em caso de necessidade, uma reserva segura, o arcebispo ia pessoalmente visitar, socorrer, consolar e animar a todos. Ordenou a Frei João de Leiria que não pagasse salários a ninguém nem fizesse despesa alguma a não ser dar absolutamente tudo para travar a calamidade e socorrer empestados. O Padre Inácio de Tolosa, que assistira a tudo em Braga, comentava:  
“Mostrou bem o senhor Arcebispo neste tempo a santidade que Deus lhe tem comunicado, porque, pedindo-lhe El-Rei e o Cardeal com instância que saísse da cidade para parte segura, nunca quis, mas, pelo contrário, ele próprio ia em pessoa, algumas vezes, consolar os enfermos e a todos provia do necessário com muita caridade e dizia ao Padre Frei João que gastasse com eles quanto tinha e que neste tempo nem pagasse pensão, nem a criado, tanto era o zelo que tinha de acudir aos pobres. Deus guarde na sua Igreja um prelado tão santo.”.
E, já velho e retirado no convento que erigira em Viana, chegou a atirar pela janela a própria enxerga e travesseiros da sua pobre cama, em prol dos pobres, passando a dormir sem conforto algum, até que os frades lhe descobriram e remediaram a necessidade. Deus não abandonaria quem Lhe dava tudo na pessoa dos pobres, pelo que mais de uma vez lhe multiplicou o dinheiro nas mãos em favor dos seus protegidos.
- Como Mestre de Apóstolos e como fruto da imensa caridade e zelo que personificava, mostrou intensa solicitude pela orientação e formação do clero. Atenção especial dedicava ao Cabido da Sé Primacial, dizendo que o queria trazer sobre a sua cabeça, pois o considerava a “suma dessa Santa Igreja e as primeiras colunas e capitéis da glória e honra de Deus”. Logo ao chegar a Braga, reuniu no próprio Paço Arquiepiscopal um grupo de rapazinhos, nomeadamente os que trouxera do Barroso para deles fazer os padres que reenviaria para aquelas paragens. Estes constituíram o primeiro núcleo do Seminário de Braga e as primícias dos seminaristas de toda a Cristandade. A ideia dum clero instruído e virtuoso levou o arcebispo a lutar e a defender com veemência, no Concílio de Trento, a fundação dos Seminários. Aos decretos que arrancou ao Concílio deu imediata execução com o Seminário de S. Pedro de Braga (o seminário conciliar). O próprio arcebispo se preocupava com o aproveitamento de todos e ia assistir aos exames e exigiu a instituição dos Exames de Ordens. Este zelo do santo arcebispo, que se estendia a todas as necessidades da sua Igreja, arrancou a um seu contemporâneo o seguinte encómio:
“O Arcebispo de Braga é um homem todo de Deus, um verdadeiro israelita, ilustre pela doutrina, mas eminentíssimo pela elevação de sua vida. É um autêntico émulo dos santos Pastores da primitiva Igreja, homem integérrimo de costumes e conduta que, pondo em prática os Decretos do Concílio de Trento, restituiu à sua desolada diocese o esplendor dos mais gloriosos tempos”. (*)
3. João Paulo II, na homilia da missa da sua beatificação e de mais sete veneráveis, a 4 de novembro de 2001, destacando-lhe o zelo pelos pobres (tirando da sua boca para dar aos pobres) e a formação e a reforma do clero, referiu-se ao arcebispo dominicano nos termos seguintes:
“Dedicou-se, com suma vigilância e zelo apostólico, à salvaguarda e renovação da Igreja nas suas pedras vivas, sem desprezar os andaimes provisórios que são as pedras mortas. Daquelas pedras vivas, privilegiou as que tinham pouco ou nada para viver. Tirou à boca, para dar aos pobres. Censurado pela pobre figura que fazia com o pouco que lhe restava, respondeu: ‘Nunca me verão tão desatinado a gastar, com ociosos, aquilo com que posso dar vida a muitos pobres’.
Sendo a ignorância religiosa a maior das pobrezas, o Arcebispo tudo fez para lhe pôr remédio, começando pela reforma moral e elevação cultural do clero, ‘porque manifesto está escrevia-lhe ele que, se o vosso zelo correspondesse ao oficio, (...) não andariam as ovelhas de Cristo tão fora do caminho do Céu’. Com o seu saber, exemplo e desassombro apostólico, comoveu e incendiou os ânimos dos Padres Conciliares de Trento para que se procedesse à necessária reforma da Igreja, que depois se empenhou a realizar com perseverante e invicta coragem.”
E no discurso que proferiu, no dia seguinte, aos números peregrinos que acorreram à cerimónia da beatificação dos aludidos oito servos de Deus, fez larga referência ao Beato bracarense:
“O Beato Bartolomeu dos Mártires, dominicano por vocação e ideal de vida, ardia de zelo pela causa de Deus, que é a salvação dos homens, iluminando-lhes o caminho com o Evangelho. Fiel à norma apostólica, ‘entrega-se assiduamente à oração e ao serviço da palavra’ (cf At 6,4), arrastando consigo o clero:  promove a sua formação permanente, ao seu alcance poe meios para pregar ao povo e funda o Seminário para preparar dignamente os futuros sacerdotes. O Seminário era apenas uma das medidas da reforma preconizada pelo Concílio de Trento, a cuja realização o Beato Arcebispo se consagrou de alma e coração, não sem obstáculos, alguns com ressonância em Roma. O Papa Pio IV assim respondeu, falando de Dom Frei Bartolomeu:  ‘Tal satisfação nos deu, no tempo que participou no Concílio, com a sua bondade, religião e devoção, que o ficámos tendo em grande conta, com tamanho conceito da sua honra e virtude que não poderão alterá-lo queixumes de ninguém" (Carta ao rei de Portugal, Cardeal Dom Henrique). Ontem pude assinalar, com o ato da sua beatificação, estes sentimentos do meu Predecessor.”
Depois, deixa uma saudação à Igrejas de Lisboa, Viana do Castelo e Braga, salientando a relação que tiveram com o Beato e sobretudo o serviço dele à Igreja e aos pobres,  
“Saúdo a Igreja de Lisboa, que lhe deu o berço, e a de Viana do Castelo, que o acolheu nos seus últimos anos e conserva a relíquia venerável do seu corpo; saúdo a Arquidiocese bracarense na sua extensão de então e Portugal inteiro, que ele serviu e amou, sobretudo na pessoa dos pobres”.
***
Se não fosse Frei Luís de Granada, o Provincial da Ordem, a impor-lhe, por obediência, a aceitação imediata do múnus de arcebispo de Braga – aceitação a que Frei Bartolomeu se vergou e prostrou, recebendo-a como uma “braga” ou camisa-de-força – poderíamos ter na Igreja um santo, mas não na certa um pastor e um luminar do Concílio de Trento.

(*) Para todo o n.º 2 cf Frei Raul de Almeida Rolo, OP (1957, revista em 2014). Venerável D. Frei Bartolomeu dos Mártires o arcebispo Santo. Ed. Ano Jubilar – 3 de maio de 2014 -18 de julho de 2015


2016.07.18 – Louro de Carvalho

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