Foi
publicada, a 22 de julho, mas datada de 29 de junho, a Constituição
Apostólica “Vultum Dei Quaerere” (VDQ), sobre a vida contemplativa feminina, dirigida à CIVCSVA (Congregação para os Institutos de Vida
Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica) e aos mosteiros de vida contemplativa ou
integralmente contemplativa, federados ou não federados.
O documento
pontifício em causa consta de duas partes distintas, de exensão desigual, mas
complementares – uma doutrinal e pastoral com 37 números e uma normativa com 14
artigos; e derroga todos os cânones do CIC (Código de Direto Canónico) que diretamente contrariem o estipulado nesta Constituição,
bem como as Constituições e Instruções anteriores atinentes a esta matéria.
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Da primeira
parte respigam-se algumas linhas fundamentais.
A procura do
rosto de Deus perpassa a história da humanidade recorrentemente chamada ao
diálogo amoroso com o Criador, pelo que todos os homens e mulheres de boa
vontade, dotados duma indelével dimensão religiosa, buscam Deus e não descansam
enquanto não O encontram. A dinâmica da busca de Deus significa que ninguém se
basta a si mesmo e cada um tenta ultrapassar-se ansiando por Deus e abrindo o
coração à solidariedade com os demais, logrando a experiência de uma comunhão
cada vez mais profunda (vd
n.º 1). Esta caminhada
na busca de Deus – própria de cada cristão já consagrado pelo batismo – assume
especial relevância na consagração pela vida religiosa e, em particular, na
vida monástica, considerada desde os primórdios como uma forma de atualizar o
batismo (vd n.º1).
As
pessoas que, pela consagração religiosa, seguem a Cristo de forma especial
devem descobrir os sinais da presença de Deus na vida quotidiana e ser
interlocutores sábios em relação às questões que Deus e a humanidade nos
colocam; devem persisitir na busca de Deus com os olhos da fé face a um mundo
que ignora a sua presença, para o que se lhes propõe a vida casta, pobre e
obediente de Jesus, tornando-se vivos exegetas da Palavra de Deus e profetas
dos novos tempos da glória celestial (vd n.º 2).
De
entre os consagrados destacam-se os contemplativos para quem ressoam de feição
peculiar as palavras de Pedro, “Senhor,
como é bom estar aqui” (Mt 17,4). Pelo seu carisma dedicam muito do seu tempo diário a imitar a
Mãe de Jesus, que guarda no coração as palvras e atos do Filho (cf Lc 2,19.51) e Maria de Betânia, a
escutar a Palavra aos pés do Mestre (cf Lc 10,38). Com a sua vida escondida em Deus, assumem o
absoluto de viver unidos a Jesus, fazendo “vida” a palavra de Paulo: “Para mim viver é Cristo” (Fl 1,21). Especial destaque merece
o incontável número de mulheres consagradas que ao longo da história têm
orientado toda a vida e atividade para a contemplação assumindo-se como sinal
profético da Igreja virgem, esposa e mãe; sinal e memória viva da fidelidade de
Deus ao seu povo pelos séculos dos séculos (vd n.º 3).
A
vida monástica – comum entre as várias confissões cristãs – constitui um
serviço de chamada de atenção para a necessidade de todos os cristãos
satisfazerem as exigências do batismo e presta um inestimável serviço à Igreja
enquanto instância de discernimento e referência (vd n.º 4).
Os
números 5-6 da VDQ relevam o apreço, o louvor e ação de graças da Igreja pela
vida consagrada e pela vida contemplativa monástica – salientando a sua índole
espontânea primeva e a sua posterior aparição e consagração públicas.
Os
números 7-8 frisam o papel da Igreja de acompanhamento e guia, enumerando os
diversos documentos concliares e pontifícios respeitantes à vida religiosa,
mormente a contemplativa: desde a Constituição Lumen Gentium, o Decreto Perfectae
Caritatis (doVaticano
II) e a exortação apostólica pós-sinodal Vita consecrata (25-03-1996) à Instrução da CIVCSVA Caminhar desde Cristo (19-05-2002), passando pelo Código
de Direito Canónico e Catecismo da Igreja Católica. E a VDQ vem na sequência da
celebração do cinquentenário do Vaticano II como contributo para a renovação da
vida religiosa, sobretudo a contemplativa, à luz dos desafios atuais.
Por
outro lado, vêm abordados, nos números 9-11, os pressupostos dos elementos
essenciais da vida contemplativa. Na verdade, a vida consagrada é desde sempe
uma história de amor apaixonado pelo Senhor e pela humanidade, buscando
incessantemente o rosto de Deus e a relação íntima com Ele, uma história de
apoio aos membros vacilantes do corpo místico de Cristo. Com a oração pessoal e
comunitária descobre-se o Senhor como tesouro da vida e imita-se Maria como a
suprema contempladora desde a anunciação à ressurreição passando pela
peregrinação da fé a culminar aos pés da cruz. Por outro lado, a imersão no
mistério da contemplação faz ver com olhos espirituais e olhar as pessoas e o
mundo com os olhos de Deus. E o cerne da contemplação cristã é ter o olhar em Cristo,
cujo rosto está constantemente voltado para o Pai num olhar transfigurado pela
ação do Espírito Santo em “silenciosa e absorta quietude da mente e do
coração”.
Por
seu turno, os números 12-35 enunciam e abordam, doutrinal e espirtualmente, os
temas que são objeto de discernimento e da revisão normativa. São 12 os temas –
da vida consagrada em geral e da vida monástica em especial – para os quais o
Papa suscita reflexão e discernimento:
formação, oração, Palavra de Deus, Eucaristia e Reconciliação, vida
fraterna em comunidade, autonomia,
federações, clausura, trabalho, silêncio, meios de comunicação e ascese.
São temas que a parte final da VDQ assume como de necessária revisão e
regulamentação, que fica remetida para próxima instrução da CIVCSVA e trabalho
nos mosteiros.
***
- A formação da pessoa consagrada é um
itinerário de duração infinda, que deve induzir a configuração com Jesus e a
assimilação dos seus sentimentos em total oblação ao Pai. E, em particular, a
formação da pessoa consagrada contemplativa feminina tem ainda a condição
harmónica de comunhão com Deus e com os irmãos ou as irmãs num clima de
silêncio protegido pela clausura quotidiana. O formador por excelência é Deus
Pai, que se serve das mediações humanas, e esta formação tem o seu húmus na
comunidade e na vida de cada dia.
-
Uma exigência fundamental para alimento da contemplação e como miolo da vida
consagrada é a oração litúrgica e
pessoal. É a oração pessoal que garante a união com Deus e é a litúrgica que
espelha a ligação com Deus e em/com a comunidade. À oração de louvor deve
unir-se a oração de intercessão que abarque a vida da Igreja e os problemas das
pessoas de todo o mundo.
- Um dos elementos mais significativos da vida monástica é a
centralidade da Palavra de Deus, pois
é a Palavra que, enquanto fonte de espiritualidade, alimenta a contemplação e transforma
a vida a compartilhar, à maneira de missão eclesial, com os sacerdotes, os
diáconos, os outros consagrados e os leigos. Deve efetivamente escutar-se a
Palavra em ambiente de oração e postura de contemplação, para que se torne
caminho quotidiano e princípio de comunidade.
- Quanto aos sacramentos da Eucaristia e da
Reconciliacão, a Constituição releva a Eucaristia.
A
Eucaristia é por excelência o
sacramento do encontro com a pessoa de Jesus. Coração da vida de todo o
batizado e da vida consagrada, é-o em particular da vida contemplativa. De facto,
a oblação da vida enxerta o contemplativo de modo particular no mistério pascal
de morte e resurreição que se realiza na Eucaristia. Repartir, juntos, o pão
repete e atualiza o dom de si que Jesus fez – o que implica séria preparação e
participação com todo o ser pessoal e comunitário – a prolongar e a replicar em
momentos de forte e íntima adoração e ação de graças. É o sacramento da nossa redenção,
o sacramento de Cristo e da Igreja, o sacramento do Esposo e da Esposa. Da
Eucaristia brota o compromisso de conversão contínua, expressa sacramentalmente
na Reconciliação. A frequente celebracão pessoal e/ou comunitária deste
sacramento é ocasião privilegiada para contemplar Jesus, o rosto misericordioso
do Pai, renovar o coração e purificar a relação com Deus. E da experiência
gozosa do perdão brota a graça de ser profetas e ministros de misericórdia e
instrumentos de reconciliação, tão necessárias hoje no mundo.
-
A vida fraterna em comunidade é um
elemento essencial da vida religiosa em geral e, em particular, da vida
monástica, mas sempre na pluralidade dos carismas, para a formação das pessoas
unidas “num só coração e numa só alma” – espelho da Trindade e da Igreja.
-
A autonomia dos mosteiros favorece a
estabilidade de vida e a unidade interna de cada comunidade, garantizando las
melhores condições para a contemplação. Porém, a autonomia não pode ser
pretexto para isolamento ou formação de grupinho egocêntrico e autorreferencial.
-
Assim, surge a federação como importante
estrutura de comunhão entre os mosteiros que partilham o mesmo carisma, para
que não fiquem isolados. As federações visam promover a vida contemplativa e
garantir apoio na formação e na colmatação das necessidades concretas.
- A clausura configura um modo de separação
do mundo necessário para quem segue Cristo desta forma intimamente contemplativa.
O documento especifica quatro tipos de clausura, a observar de acordo com o carisma
e as constituições do respetivo Instituto monasterial, mas sempre de modo a facilitar
a contemplação e o espírito de comunidade.
- O trabalho constitui uma forma de participação
na obra de Deus criador, põe-nos em relação com os que têm de viver do fruto
das suas mãos e provê às necessidades próprias e dos demais.
Para
que ele não não apague o espírito de contemplação e para que promova a pobreza
de espírito e de facto, deve ser realizado com devoção e espírito de fidelidade
– para glória de Deus e santificação das pessoas.
- O silêncio na vida contemplativa não é um
mero instrumento disciplinador, mas um espaço virtual de escuta e ruminação da
Palavra, o requisito necessário para um olhar de fé que acolha a presença de
Deus na história pessoal, na dos irmãos e nos avatares do mundo contemporâneo.
-
É imprescindível, na nossa cultura, para a formação do pensamento e da relação
a utilização dos meios de comunicação. Todavia, é necessário o discernimento e o seu uso comedido para não distraírem
do essencial e não obstaculizarem a contemplação.
- Por fim, a ascese, ao propor o domínio de
si e a purificação do coração, retirando de nós qualquer resquício de mundanidade,
abre caminho para a contemplação e para a união mística com o Senhor.
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Os números 36-37 relevam o testemunho das monjas, sendo que as suas comunidades hão de ser verdadeiras escolas de
contemplação e oração, faróis que iluminam o mundo dos homens.
As
irmãs contemplativas sabem que a sua forma de vida consagrada é dom para a Igreja,
nasce na Igreja, cresce na Igreja, está toda orientada para a Igreja. Há, pois,
que a viver em comunhão com a Igreja para ser nela o vivo prolongamento do
mistério de Maria, virgem, esposa e mãe, que acolhe e guarda a Palavra para a
devolver ao mundo, de modo que Cristo nasça e cresça no coração dos homens.
Como María, as contemplativas têm de ser “escada” por onde Deus desce para encontrar
o homem e por onde o homem sobe para Deus.
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Por
sua vez, a conclusão dispositiva (2.ª parte) da VDQ vem dar forma de
regulamento aos itens enunciados e doutrinalmente abordados a partir do n.º 12.
Convém ler os seus 14 artigos numa das versões linguísticas oferecidas pela
Santa Sé. No entanto, desde já, se adverte para os seguintes aspetos: visa-se a
renovação da vida contamplativa em consonância com o Evangelho, na resposta aos
desafios hodiernos, na observância da diversidade dos carismas e na identidade
e força de cada um; deve promover-se amplo trabalho de reflexão em cada
mosteiro e nas federações de mosteiros congéneres, bem como o diálogo com as
Igrejas locais; os documentos constitucionais devem ter em linha de conta aqueles
aspetos de configuração e concretização dos elementos essenciais à vida contemplativa;
e, depois, cada mosteiro e/ou federação de mosteiros deve submeter os seus documentos
constitucionais revistos ou reformulados à aprovação da Santa Sé.
Espera-se
a melhor e mais profícua renovação para glória de Deus, bem da Igreja e
salvação do mundo.
2016.07.23 – Louro de
Carvalho
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