quinta-feira, 28 de julho de 2016

Da plenitude do tempo: sentido e implicações

O tema foi desenvolvido pelo Santo Padre na Homilia da missa votiva de Nossa Senhora de Jasna Góra celebrada no seu Santuário em Częstochowa evocando os 1050 anos do Batismo da Polónia, hoje dia 28 de julho.
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A expressão “plenitude do tempo” (τò πλήρωμα τοΰ χρόνου) integra o versículo 4 do capítulo 4 da carta de Paulo aos Gálatas: “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a Lei”. Contrapõe-se ao tempo do homem, “o tempo em que o herdeiro é criança” (Gl 4,1). E é o tempo de Deus feito homem, portanto, o tempo de Deus e do homem tornado filho de Deus: Ele, “nascido duma mulher, nascido sujeito à Lei”, veio “para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adoção de filhos” (cf Gl 4,4-5). Dito de outro modo, esta expressão “plenitude do tempo” assume a índole histórico-escatológica da encarnação do Verbo de Deus, que acontece num ponto preciso da História dos homens e coloca em evidência o valor messiânico da vinda do Filho de Deus. Ele veio para fazer a vontade do Pai e para isso é que Ele foi enviado. A plenitude do tempo “chegou” (ηλθον-aoristo) e Deus enviou (εξαπέστειλεν – enviou, expediu, despediu, despachou). Assim, a plenitude do tempo implica a descrição da missão de Jesus, o Filho enviado pelo Pai. O verbo grego “εξαποστέλλω”que significa “enviar” – é de uso comum no helenismo e muito usado na versão bíblica dos LXX. Aparece em G1 4,4 e 4,6. Entretanto, no Novo Testamento é raro o seu uso, apenas se encontrando em Lucas e nos Atos dos Apóstolos (também atribuído a Lucas). A “plenitude do tempo” confirma a espera da humanidade pela salvação e a concretização desta obra por Jesus, o filho de Deus, no momento designado por Deus.
O versículo começa pelo advérbio conectivo “porém”, de valor adversativo, que retoma os versículos anteriores. O aoristo do indicativo do verbo grego que significa “chegou” (ηλθον) dá a ideia duma ação realizada no passado como um evento único. Este é o momento da “plenitude do tempo” (cf At 1,7). O verbo é usado por Paulo para pré-anunciar a chegada daquilo que foi anunciado na Escritura, isto é, o tempo novo, o tempo messiânico, a chegada do Filho de Deus, Jesus. É o tempo escatológico ou messiânico, o do Reino de Deus (cf Mc 1,15; Rm 13,11), que encerra um longo período de séculos de espera da humanidade (cf 2Cor 6,2; Ef 1,10; 1Pe 1,20). O termo “plenitude” de Gl 4,4 mostra-nos o sentido de cumprimento (cf Mc 1,15; 1Cor 10,11). O seu significado teológico resulta do contexto que o envolve.
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Encontra-se um texto paralelo a este na carta de Paulo aos Efésios (1,10), que ajuda a entender o significado de “plenitude do tempo”. Na carta aos Efésios, Paulo usa o segmento “para levar o tempo à sua plenitude”. Nas duas expressões paulinas – Gl 4,4 e Ef 1,10 – sobressai a diferença de tradução da palavra “tempo” vinda do grego como “cronos” (χρόνος) e “kaipós” (καιρός) e com a tradução no plural por “tempos” (καιρων) que em seu significado coincidem indicando a “plenitude do tempo”. A expressão de Gl 4,4 significa o “fim do tempo”. Na verdade, no tempo pré-determinado, Deus enviou o seu Filho Jesus Cristo, o verdadeiro “eschaton”, a emergir na humanidade para trazer a liberdade; já a expressão “os tempos significa os momentos designados por Deus para completar o seu plano salvação, os quais, sucedendo-se uns após outros completam a medida estabelecida por Deus, atingindo a plenitude, a etapa prefixada, a de Cristo. Também o tempo “Cronos” se desenvolve e se vai completando até atingir a plenitude.
O “cronos”, do fluir dos dias, transforma-se em “kaipós”, tempo de graça e misericórdia. Com efeito, o Verbo, que veio ao que era Seu e os Seus não receberam (Jo 1,11), fez-Se homem e veio habitar connosco (Jo 1,14). E a quantos O receberam e Nele creram deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,12); e nós participamos da Sua plenitude recebendo graça sobre graça (Jo 1,17). Ora Deus-connosco e entre nós fala-nos mais cara a cara. Ele, que “muitas vezes e de muitos modos falou aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas” (Heb 1,1), agora, “nestes dias, que são os últimos”, passou a falar-nos “por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e por meio de quem fez o mundo – Filho que é resplendor da sua glória e imagem fiel da sua substância, que tudo sustenta com a sua palavra poderosa depois de ter realizado a purificação dos pecados e que está sentado à direita da Majestade nas alturas” (cf Heb 1,2-3). Já, no Antigo Testamento, Daniel (2,24-29) divisa o mistério escatológico, o anúncio misterioso dum acontecimento futuro determinado por Deus e cuja revelação cabe somente a Ele:
Enquanto estavas no teu leito, ó rei, acorriam os pensamentos sobre o que deveria acontecer no futuro, e aquele que revela os mistérios te deu conhecer o que deve acontecer”(Dn 2,29).
Ora, em Gl 4,4ss Paulo precisa muito bem as expressões: “o seu Filho”, entendendo-O como o Filho do Pai; “nascido de uma mulher nascido sob a Lei”, entendendo-O como homem sujeito às vicissitudes da vida e à pedagogia da Lei que leva ao tempo novo. As duas expressões “nascido” e “uma mulher” e “nascido segundo a lei”, em termos da “gramática dependencial” ou da “gramática das valências”, são complementos do verbo “enviou” (εξαπέστειλεν). E aquele particípio “nascido” (γεγόμενον) repetido – formando um conjunto modal, circunstancial – indica realmente o modo pelo qual Deus Se realizou em concreto no meio dos homens. Sendo “Deus” o sujeito da ação e “o seu filho” o agente que realiza a obra de Deus.
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O sentido escatológico da “plenitude do tempo” é muito forte e pode interpretar-se assim: Deus Pai envia o seu Filho Jesus para salvar a humanidade incursa no pecado. Por esta iniciativa divina, chega o tempo à sua plenitude. Não se considera aqui o tempo no seu aspeto durativo, mas no seu conteúdo. O tempo não para, não se suspende, não é cancelado, mas evidencia-se o lado escatológico da teologia de Paulo. Deus intervém diretamente na história da humanidade com o evento Jesus, o verdadeiro “eschaton”, o santo. Com este modo de agir, realiza-se a ação escatológica na e com a humanidade. O plano divino completa uma nova etapa da história da humanidade iniciando a etapa a que chamamos o “último tempo”. A mensagem de Gl 4,4 torna-se clarividente em Ef 1,10: “para levar o tempo à sua plenitude: o projeto de Cristo recapitular todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra”.
- (cf Odalberto Domingos Casonatto, “Uma janela sobre o mundo bíblico”, http://www.abiblia.org/index.php?a=2&id=66).
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Na predita liturgia de Jasna Góra, o Papa surpreende o emergir de “um fio divino que passa para a história humana e tece a história da salvação”, aproximando-o da história polaca.
E, referindo-se ao enunciado paulino do grande desígnio de Deus – “Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher” (Gl 4,4) – entende que, ao chegar esta “plenitude do tempo”, a humanidade não estava particularmente preparada e o período que atravessava não era “de estabilidade e de paz”. Em si, a cena deste mundo não merecia a vinda de Deus; pelo contrário, “os seus não O receberam” (Jo 1,11). Assim, a plenitude do tempo foi um dom inteiramente gratuito de Deus: “Deus encheu o nosso tempo com a abundância da sua misericórdia”; ou seja, foi por “puro amor” que Deus inaugurou a plenitude do tempo”.
O modo como Deus se faz entrar na história é aparentemente banal: “nascido de uma mulher”. Nada de entrada triunfal, de manifestação imponente do Todo-Poderoso. Não vem como o sol ofuscante, mas entra da forma mais simples, como criança através da mãe, com o estilo de que fala a Escritura, “como a chuva sobre a terra” (cf Is 55,10), como a menor das sementes que germina e cresce (cf Mc 4,31-32). Ao contrário do que alguns esperariam, o Reino de Deus “não vem de maneira ostensiva” (Lc 17,20), mas na pequenez, na humildade.
Por seu turno, o Evangelho de João (Jo 2,1-11) capta este fio condutor salvífico, que atravessa delicadamente a história: da plenitude do tempo passamos ao “terceiro dia” do ministério de Jesus (cf Jo 2,1) e ao anúncio da “hora” da salvação, a hora de Jesus (cf Jo 2,4). O tempo contrai-se e Deus manifesta-Se na pequenez: “Jesus realizou o primeiro dos seus sinais miraculosos” (Jo 2,11) em Caná da Galileia, sem gesto estrondoso, sem multidão, sem revolução da natureza. Não é uma intervenção que resolva um problema político flagrante, mas um milagre simples, numa pequena aldeia, a alegrar o casamento duma anónima jovem família. Todavia, a água transformada em vinho na festa é um grande sinal, porque revela o rosto esponsal de Deus, “que Se põe à mesa connosco, que sonha e realiza a comunhão connosco”.
Na verdade, “o Senhor não Se mantém à distância”, mas “está no nosso meio e cuida de nós, sem decidir em nosso lugar nem Se ocupar de questões de poder”. E Francisco adverte:
“Deixar-se atrair pelo poder, pela grandeza e pela visibilidade é tragicamente humano, resultando numa grande tentação que procura insinuar-se por todo o lado, ao passo que é requintadamente divino dar-se aos outros, eliminando as distâncias, permanecendo na pequenez e habitando concretamente a quotidianidade”.
Porém, Deus salva-nos fazendo-Se “pequeno, vizinho e concreto”. Como pequeno, “manso e humilde de coração” (Mt 11,29), prefere os pequeninos, a quem o Pai revela os mistérios do Reino (cf Mt 11,25) e pousa sobre eles o seu olhar (cf Is 66,2). Prefere-os, porque se opõem ao “estilo de vida orgulhoso” que vem do mundo (cf 1 Jo 2,16), percebem e usam a linguagem de Deus. E o Papa, a este respeito evoca “tantos filhos e filhas” do povo polaco: os mártires, em quem resplandeceu a força desarmada do Evangelho; as pessoas simples, mas extraordinárias, em que refulgiu o testemunho do amor do Senhor no meio de grandes provações; os arautos mansos e fortes da Misericórdia, como os santos João Paulo II e Faustina, “canais” do amor de Deus por onde chegaram “dons inestimáveis a toda a Igreja e à humanidade inteira”.
Como vizinho, Deus torna próximo de nós o seu Reino (cf Mc 1,15). O Senhor “não quer ser temido como um soberano poderoso e distante,” mas “gosta de mergulhar nas nossas vicissitudes de cada dia, para caminhar connosco”. E é assim que temos de fazer como Igreja:
“Ouvir, envolver-se e tornar-se vizinho, partilhando as alegrias e as canseiras das pessoas, de modo que o Evangelho se comunique da forma mais coerente e frutuosa, ou seja, por irradiação positiva, através da transparência da vida”.
E, como concreto, Deus na sua sabedoria “age como arquiteto e brinca” (cf Prv 8,30). E voltando à carta aos Gálatas, o Papa repisa aproximando a economia salvífica da espiritualidade polaca:
“O Verbo faz-Se carne, nasce duma mãe, nasce sob o domínio da Lei (cf Gl 4,4), tem amigos e participa numa festa. O Eterno comunica-Se transcorrendo o tempo com pessoas e em situações concretas. Também a vossa história, permeada de Evangelho, Cruz e fidelidade à Igreja, regista o contágio positivo duma fé genuína, transmitida de família para família, de pai para filho e, sobretudo, pelas mães e as avós, a quem muito devemos agradecer. De modo particular, pudestes palpar a ternura concreta e providente da Mãe de todos, que vim aqui venerar como peregrino e que saudamos, no Salmo [no refrão], como a honra do nosso povo” (Jdt 15,9).
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Depois, o Santo Padre fala da mulher de quem nasceu o Filho de Deus ou da que intercedeu por que chegasse a hora do sinal messiânico e instou os servos a que fazerem o que Ele mandasse:
“Em Maria, encontramos a plena correspondência ao Senhor: e assim, na história, entrelaça-se com o fio divino um fio mariano. Se existe qualquer glória humana, qualquer mérito nosso na plenitude do tempo, é Ela: é Ela aquele espaço, preservado e liberto do mal, onde Deus Se espelhou; é Ela a escada que Deus percorreu para descer até nós e fazer-Se vizinho e concreto; é Ela o sinal mais claro da plenitude do tempo.”
É pela vida de Maria – tão sentida pela Polónia – que melhor admiramos a pequenez amada por Deus (“pôs os olhos na humildade da sua serva” e “exaltou os humildes” – Lc 1,48.52). Nela “tanto Se deleitou que d’Ela Se deixou tecer a carne” e “a Virgem Se tornou Progenitora de Deus”. Com efeito, para Francisco, em Jasna Góra como em Caná, Maria oferece-nos a sua proximidade para descobrirmos o que na nossa vida falta à plenitude do tempo. E “fá-lo com solicitude de Mãe, com a presença e bom conselho, ensinando-nos a evitar arbítrios e murmurações nas nossas comunidades”. Como Mãe de família – assegura o Papa – quer-nos guardar juntos. Como “a Mãe, forte junto da cruz e perseverante na oração com os discípulos à espera do Espírito Santo”, Maria acompanhou a rota do povo polaco, que “superou, na unidade, tantos momentos duros”. Assim, agora impõe-se que Lhe peçamos a infusão do desejo de vencer as injustiças e as feridas do passado e de criar comunhão com todos sem nunca ceder à tentação de se isolar e impor”. A Senhora de Caná mostrou-Se muito concreta: a “Mãe que leva a peito os problemas, que intervém, que sabe individuar os momentos difíceis e dar-lhes remédio com discrição, eficácia e determinação”. Porém, não é a patroa nem a protagonista: é a Mãe e a serva. Por isso, nós em Igreja precisamos de obter a graça de assumir a sua sensibilidade e imaginação ao servir quem passa necessidade, a beleza de gastar a vida pelos outros, sem preferências nem distinções”.
E o Bispo de Roma, enquanto implora que, pela intercessão da Senhora de Caná ou de Jasna Góra, “se renove também para nós a plenitude do tempo”, avisa e anseia:
“De pouco serve a passagem do antes ao depois de Cristo, se permanece uma data nos anais da história. Possa realizar-se, para todos e cada um, uma passagem interior, uma Páscoa do coração para o estilo divino encarnado por Maria: agir na pequenez e acompanhar de perto, com coração simples e aberto.”.
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Enfim, a plenitude do tempo é iniciativa do Pai, ação do Filho, superabundância vivificante do Espírito. E ao serviço da plenitude do tempo coloca-se Maria – pequenina, próxima, concreta, eficaz e discreta: é a Mãe!

2016.07.28 – Louro de Carvalho

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