segunda-feira, 11 de julho de 2016

“Quem é o meu próximo?” ou “De quem sou eu próximo?”

A perícopa do Evangelho que se proclama na missa deste XV domingo do tempo comum no Ano C (Lc 10, 25-37) configura uma parábola da misericórdia decorrente da obrigação de cumprir os mandamentos da Lei de Deus.
A perícopa das três parábolas que preenchem o capítulo 15 do mesmo Evangelho de Lucas acentua a misericórdia que transborda do coração do Pai justo, liberal na equidade da distribuição dos bens pelos filhos, e que pacientemente espera pelo regresso do filho que estava perdido e reentra na casa paterna gerando motivo para a festa; acentua a paciência do Pai que insta com o filho mais velho para que participe na festa do reencontro do irmão; espelha a alegria que resulta do facto de o pastor ter encontrado a ovelha perdida, depois de muito a procurar; enaltece a simplicidade da alegria partilhada com as amigas pela dona de casa que encontra a dracma perdida depois de a ter procurado com ansiedade e esforço. São situações parabólicas que resultam da postura de Deus quando o pecador reconhece o pecado e se converte. À fealdade do pecado ou do abandono de Deus pelo homem contrapõe-se a superabundância da misericórdia do coração acolhedor de Deus, com as consequências de diálogo, integração e comunhão.
A parábola, dita do bom samaritano, do capítulo 10 de Lucas assenta no comportamento desejável do homem para com o seu semelhante em resultado da observância atenta do mandamento feito norma de vida livre e libertadora.
As parábolas do capítulo 15 vêm contextuadas numa postura contrastante dos ouvintes:
Aproximavam-se dele todos os cobradores de impostos e pecadores para o ouvirem. Mas os fariseus e os doutores da Lei murmuravam entre si, dizendo: ‘Este acolhe os pecadores e come com eles’.”
Parece que os pecadores ganham a cartada, não por serem pecadores, mas por se tornarem próximos: vêm para O ouvirem – ao passo que os outros vinham para O experimentarem.
A parábola do bom samaritano situa-se no contexto das palavras de Jesus aos discípulos quando estes regressavam contentes da missão que ele lhes confiara (cf Lc 10,17-20) – não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem; alegrai-vos, antes, por estarem os vossos nomes escritos no Céu” (10,20) – e da oração de ação de graças que fez ao Pai porque, escondendo os mistérios do Reino aos grandes e inteligentes, os revelou aos pequeninos – coisas que os profetas quereriam ter visto e não viram (cf 10,21-24). Então, “para O experimentar”, levantou-se um doutor da Lei e perguntou-Lhe o que havia de fazer para possuir a vida eterna. Jesus, por seu turno, perguntou-lhe o que está escrito na Lei e como a lê ele. E a resposta do doutor foi imediata: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimentoe ao teu próximo como a ti mesmo. E a resposta de Jesus foi declarativa, “Respondeste bem”, e imperativa, “faz isso e viverás”.
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O mandamento parece duplo: amar a Deus com toda a lucidez, vontade, intensidade e ação; e amar o próximo como a mim mesmo. É preciso dizer que o “duplo” mandamento se pode enunciar só com uma das partes. A suposta segunda parte não é um acrescento postiço. Aquele “e” (em latim, et, e em grego, καί) é um conjunção copulativa (sumativa e unitiva). Não estamos perante uma formulação alternativa, mas entitativa: amar o próximo não substitui o amor a Deus nem o amor a Deus substitui o amor do próximo. E a medida do amor ao próximo participa da medida do amor a Deus: este “como a ti mesmo” não difere em intensidade do amor a mim mesmo, que sou imagem e semelhança de Deus.
Amar a Deus implica amar o próximo, como nos recorda São João. Aquele mandamento tão velhinho torna-se novo porque explicita a medida do amor recíproco (uns aos outros) como Deus, ou como Jesus fez. Assim o diz Jesus no Evangelho de São João: “Dou-vos um novo mandamento, que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei” (Jo 13,34). E fez disto a marca dos discípulos (cristãos): “Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros (Jo 13,35). Temos que amar a Deus porque Deus é amor e porque Ele nos amou primeiro; mas, se alguém disser que ama a Deus e odeia seu irmão, esse é mentiroso, pois como pode amar a Deus, a quem não vê, aquele que não ama seu irmão a quem vê? Por isso, nós recebemos de Deus este mandamento: quem ama a Deus ame também o seu irmão. (cf 1Jo 4, 19-24).
Por sua vez, São Paulo considera que “toda a Lei se sintetiza num só mandamento, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14). E, em São Mateus, lê-se que o segundo mandamento, amar o próximo, é semelhante a primeiro, amar a Deus (cf Mt 22,39). Ser semelhante significa ser da mesma natureza, ter a mesma semente!  Ora, o que é idêntico não pode ser diferente, ainda que o pareça.
E a ordem de Jesus é: “Faz isso e viverás”. Será porque não se faz isso que o nosso cristianismo é tantas vezes semimorto, descafeinado, morno, sem garra, sem capacidade de sedução?
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Porém, o doutor da Lei mantém a experimentação ao Mestre, perguntando: “E quem é o meu próximo”? Poderia ter perguntado, antes: “E quem é Deus”? Mas o doutor sabia isso! De Deus sabe tudo: a fonte da Lei e da profecia, aquele que tem o látego da punição. Ora, como se pode amar alguém que tem a Lei como látego castigador? Obviamente, o doutor não conhecia o lado compassivo de Deus nem a face doce e libertadora da Lei ou o real vulto de Deus já destacado no Antigo Testamento. Mas, porque não sabia, estava convencido de que sabia. Há muita gente assim. Sabe tudo e por isso fecha-se no autoconhecimento e na autossuficiência…
Se nos perguntarem quem é Deus, seremos capazes de responder? Se nos perguntarem quem é para nós Jesus Cristo, talvez gaguejemos na resposta. Conta-se que na década de 70 do século XX, uns jovens procediam a um inquérito de rua sob a questão, “Quem é para si Jesus Cristo?”. Interrogado um bispo, ele terá respondido que lhe deixassem o endereço, pois teria todo o gosto em responder por escrito. Resta saber o que responderíamos nós hoje.   
Jesus aproveitou o ensejo para contar uma das suas mais belas histórias, não para responder quem era o próximo do doutor da Lei, mas para lhe abrir o caminho para perceber de quem é que ele devia sentir-se próximo, já que a proximidade é um recíproco: é a relação interpessoal, o diálogo necessidade/ajuda, a partilha, a construção mútua e cooperativa da dignidade humana.
Acidentalmente um viandante cai numa cilada de assalto ficando despojado de todos os seus pertences e vítima quase mortal do bando, descartada para a valeta do caminho. Passam duas pessoas qualificadamente obrigadas ao socorro do próximo – um sacerdote e um levita. Mas cada um por sua vez seguiu adiante e ao largo: ou com medo de que os ladrões voltassem, ou com receio de que a suspeita de assalto recaísse sobre si mesmos ou porque os afazeres do Templo chamavam com mais urgência. O ritualismo sobrepõe-se ao cuidado do próximo.
Entretanto, chega um samaritano, considerado um impuro pelos judeus. E este diz o Evangelho:
“Chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: ‘Trata bem dele e, o que gastares a mais, pagar-to-ei quando voltar’.” (Lc 10,33-35).
E Jesus não pergunta ao doutor quem pensa ele que é Deus nem quem pensa ele quem é o seu próximo, mas quem é o próximo deste homem despojado e ferido. Era o que faltava um doutor da Lei não perceber a evidência: “O que usou de misericórdia para com ele!”.
E Jesus não desarma: “Vai e faz tu também o mesmo”.
A questão não é saber quem é Deus ou quem é o meu próximo, mas de quem devo ser próximo. E não é lícito fazer um orçamento de escolhas. A proximidade não escolhe correligionários, familiares, amigos, nações, posicionamentos sociais e económicos, condição de género, raça, cultura, religião. A proximidade evangélica realiza-se abrindo o coração para, com a lucidez do tamanho do mundo, acorrermos às necessidades de quem encontramos e tentarmos ajudar a construção de autonomia pessoal e grupal daqueles de quem temos o ensejo de ser próximos. Mais: a misericórdia não é monopólio dos cristãos, mas a sua obrigação. A misericórdia é típica de Deus que no-la ensina, mostra e incute
São João diz-nos, na sua 1.ª carta, que o amor tem de ser efetivo:
“Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele? Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade.” (1Jo 3,17-18).
E Jesus define como critérios de entrada no Reino eterno, criado para nós desde o princípio do mundo, os da atenção efetiva aos irmãos:
“Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo. (…). Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.” (Mt 25,35-36.40).
Obviamente, se percebermos de quem temos de ser próximos, também encontraremos hoje mais elementos e formas de satisfazer estes critérios traçados por Jesus: novas fomes, novas sedes, novas nudezes, novas doenças, novos sem-abrigo, novas prisões… – bem como modernas modalidades de sair ao seu encontro.
Não vale perguntar “quem é o meu próximo”, mas “de quem devo ser próximo”. E tudo mudará, ficaremos a saber efetivamente quem é Deus e a perceber mais do mistério do homem.

2016.07.10 – Louro de Carvalho

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