Tanto o
calendário litúrgico romano pré-conciliar como o reformado a instâncias do
concílio Vaticano II dedicam o dia 22 de julho a Santa Maria Madalena. Porém, a
designação da celebração litúrgica e os textos da Missa diferem – isto para não
falar do Ofício Divino, que reflete as alterações estruturais e textuais por
que passou toda a reforma da Liturgia das Horas. Assim, no ritual anterior ao
Concílio, tratava-se de uma festa litúrgica de rito duplex – em contexto da catalogação das celebrações pelas seguintes
categorias (ordem decrescente de
importância): duplex
de I classe, duplex de II classe,
duplex maior, duplex, semiduplex e simplex. Na reforma conciliar que
distribui as celebrações por solenidades, festas, memórias obrigatórias e
memórias simples (ordem
decrescente de importância), Santa Maria Madalena passou a ser honrada com
a celebração de memória obrigatória.
Dos
textos da Missa, no ordenamento pré-conciliar, são próprios: a oração coleta; a
1.ª leitura (designada genericamente
“epístola”),um excerto do Cântico dos Cânticos (Cant 3,1-5; 8,6-7) abrangido pelo designativo genérico de Livro da
Sabedoria; o Evangelho (Lc 36-50); a
oração “secreta” (hoje: oração sobre as oblatas) e a
oração “postcommunio” (hoje: oração depois da comunhão);
prescrevia-se a recitação do credo; o
“introito” era retirado do comum de santa “virgem e mártir” (outro comum), o “gradual” e o “communio” do comum de santa
“virgem e mártir”, o “aleluia” como na missa de Santa Luzia, o ofertório do
comum de santa “virgem não mártir”.
Na
reforma conciliar, a Missa de Santa Maria Madalena tem como próprios todos os
textos das partes variáveis. É certo que se mantém como 1.ª leitura a perícopa
do Cântico dos Cânticos, mas com extensão reduzida (Cant 3,1-4a) – a sublinhar a procura daquele que o coração
ama e cujo encontro se realiza depois de o ter procurado pelos diversos lugares
e junto das pessoas que podem saber dele, mas só depois de ter deixado todos e
tudo para trás. Como alternativa, apresenta-se um trecho da 2.ª carta de Paulo
aos Coríntios (2Cor 5,14-17), que
salienta a grandeza do amor de Cristo que O levou a morrer por todos nós, que
deixamos de viver para nós próprios, mas para Ele, sendo com Ele nova criatura.
O salmo responsorial é o salmo 63 (62), o da sede e procura de Deus, o do repouso na contemplação da Sua
glória, o do estilo de bendizer a Deus e do acolhimento à sombra de suas asas,
o da união permanente com Ele. E o Evangelho não é o excerto de Lucas acima
referenciado – da pecadora que lavou os pés de Jesus com lágrimas, os secou com
os cabelos e os ungiu com o perfume, merecendo, por força do amor, o perdão dos
pecados – mas o de João (Jo
20,1.11-18). Nele se refere que Maria de Magdala fora de manhãzinha ao túmulo do
Senhor e, vendo a pedra retirada e o túmulo vazio, chorou. Aos dois anjos que
lhe perguntavam porque chorava, respondeu que não sabe onde colocaram o corpo
do seu Senhor que retiraram do túmulo. Entretanto, quando viu um homem que a
chamou pelo seu nome “Maria”, reconheceu-O como o seu Mestre. Aqui recebe o
segredo da Ressurreição e se faz a primeira apóstola junto dos “apóstolos”,
dizendo, “Vi o Senhor”, e juntando o
que Ele lhe dissera: “Vai ter com Meus
irmãos e diz-lhes que vou subir para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”
(vd Ofício de Leitura).
***
Doravante,
Santa Maria Madalena passará a ser
celebrada no Calendário Romano Geral com o grau de Festa, com direito à
recitação do Credo e ainda com
prefácio próprio. Com efeito, a pedido do Papa Francisco, a Congregação para o Culto Divino e a
Disciplina dos Sacramentos emitiu, a 10 de junho passado, um decreto relativo à
celebração (Prot. N. 257/16 ), datado de 3 de junho de 2016 (solenidade
do Sagrado Coração de Jesus).
Ora, porque a Igreja (no Ocidente
e no Oriente) sempre considerou e louvou M. Madalena, “pois ela foi a primeira testemunha
evangelizadora da ressurreição do Senhor, hoje impõe-se uma reflexão profunda
em Igreja sobre a dignidade da mulher, a nova evangelização e a grandeza do
mistério da misericórdia divina. Neste contexto, deve ser proposto aos fiéis,
de modo mais adaptado, o exemplo desta santa. Na verdade, esta mulher,
conhecida como a que amou tanto a Cristo e que foi amada por Ele, a que Gregório
Magno chamou de “testemunha da misericórdia” (testis misericordiae) e Tomas de Aquino de “apóstola dos apóstolos” (apostola
apostolorum), pode hoje
ser considerada pelos cristãos como modelo do ministério da mulher na
Igreja. Por isso, o Santo Padre estabeleceu
que, doravante, a sua celebração seja inscrita no Calendário Romano Geral, com
o grau de festa. Este grau celebrativo implica algumas variações para o dia em
que está inscrita a celebração, bem como para os textos do Missal e da Liturgia
das Horas a adotar, isto é: o dia dedicado à celebração de S.ta Maria
Madalena permanece o mesmo, como aparece no Calendário Romano, isto é, o dia 22
de julho; os textos a usar na Missa e no Ofício Divino permanecem os que
já estão no Missal e na Liturgia das Horas do dia, mas acrescentando no Missal
o prefácio próprio. Porém, nos lugares onde S.ta Maria Madalena, segundo o
direito particular, é legitimamente celebrada noutro dia e com um grau
diferente (maior), continua a ser celebrada nesse
mesmo dia e com o mesmo grau.
***
O PREFÁCIO próprio tem o
título Apóstola dos Apóstolos e realça o Pai “rico de misericórdia”,
o amor de Maria a Cristo quando vivo antes da morte, o seu acompanhamento do
Mestre durante a cruz, a sua procura no sepulcro e o facto de ter sido a
primeira a adorá-Lo depois de ressuscitado. Por fim, destaca a honra que
lhe coube com “a missão do apostolado, para que o alegre anúncio da vida
nova chegasse até aos confins da terra”. Eis o texto – tradução da CEP:
Pai omnipotente e rico de
misericórdia, é verdadeiramente digno e justo, nosso dever e
salvação, louvar-Vos sempre e em toda a parte por Cristo Nosso
Senhor. Aparecendo Jesus a Maria Madalena no jardim, Ela que tanto o
amara quando era vivo, viu-O morrer na cruz, procurou-O no
sepulcro; e foi a primeira a adorá-l’O depois de ressuscitar dos
mortos. Diante dos Apóstolos foi honrada com a missão do
apostolado, para que o alegre anúncio da vida nova chegasse até aos
confins da terra. Por isso, com todos os Anjos e Santos, nós Vos
louvamos, dizendo (cantando) com alegria: Santo, Santo, Santo…
***
Sob a epígrafe “APÓSTOLA DOS APÓSTOLOS”, o secretário
da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos editou um
oportuno texto de reflexão e documentação de que se respigam as linhas gerais,
em consonância a sequência Victimae
paschali laudes.
A decisão papal inscreve-se no contexto eclesial
hodierno de “reflexão mais profunda sobre a dignidade da mulher, a nova
evangelização e a grandeza do mistério da misericórdia divina”. Foi João Paulo
II quem dedicou magna atenção, não apenas à importância da mulher na missão de
Cristo e da Igreja, mas também ao peculiar papel de M. Madalena como a primeira
a encontrar Cristo ressuscitado e a primeira mensageira do anúncio da
ressurreição do Senhor aos apóstolos (cf Mulieris dignitatem, n. 16). Por seu turno, o atual empenho numa nova
evangelização pretende “acolher, sem distinção alguma, homens e mulheres de
qualquer raça, povo, língua ou nação (cf Ap 5,9), para lhes anunciar a Boa Nova, os acompanhar na sua
peregrinação terrestre e lhes oferecer as maravilhas da salvação. E M. Madalena
é o exemplo de verdadeira e autêntica evangelizadora, de uma ‘evangelista’ da Páscoa.
O Papa tomou a decisão em causa no contexto do Ano da
Misericórdia para significar a importância desta mulher, que mostrou um grande
amor a Cristo e Cristo por ela, como afirmou Rabano Mauro (“dilectrix
Christi et a Christo plurimum dilecta” – vd De vitae beatae Mariae Magdalenae, Prologus) e S. Anselmo de Canterbury (“electa dilectrix
et dilecta electrix Dei” – vd Oratio
LXXIII ad sanctam Mariam Magdalenam). A interpretação
de Gregório Magno, que identifica na mesma pessoa M. Madalena, a mulher que
verteu perfume na casa do fariseu Simão e a irmã de Lázaro e de Marta, manteve-se
e influenciou os autores eclesiásticos ocidentais, a arte cristã e os textos
litúrgicos atinentes à Santa. O certo é que M. Madalena integrou o grupo dos
discípulos de Jesus, seguiu-O até aos pés da cruz e, no jardim onde se situava
o sepulcro, tornou-se a primeira “testis
divinae misericordiae”. O Evangelho de João refere o seu choro por não ter
encontrado o corpo do Senhor (cf Jo 20,11), e Jesus teve
misericórdia dela fazendo-Se reconhecer como Mestre transformando as suas
lágrimas em alegria pascal.
Assim, é honrada como a “prima testis” da Ressurreição (Hymnus, Ad Laudes matutinas) e é a primeira
a ver o sepulcro vazio e a primeira a
ouvir diretamente do Senhor a verdade da Ressurreição. Cristo tem uma especial
misericórdia por esta mulher, que manifesta o seu amor para com Ele,
procurando-O no jardim com angústia e sofrimento, com “lacrimas humilitatis”, no dizer de Santo Anselmo. É de ressaltar o
contraste entre as duas mulheres presentes no jardim do paraíso e no jardim da
ressurreição, apontado por Gregório Magno. Eva difunde a morte onde estava a Vida,
ao passo que Maria anunciou a Vida a partir do lugar da morte. Depois, é no
jardim da ressurreição que o Senhor diz a Maria, “Noli me tangere” – convite dirigido a Maria e, por ela, a toda a
Igreja, para entrar na experiência de fé que supera toda a apropriação
materialista e compreensão humana do mistério ou a boa lição para o discípulo
de Jesus: “não buscar seguranças humanas e títulos mundanos, mas a fé em Cristo
Vivo e Ressuscitado”. E, porque foi testemunha ocular e visual do
Ressuscitado, foi também a primeira a testemunhar diante dos apóstolos.
Cumprindo a ordem do Ressuscitado: “Vai
ter com os meus irmãos e diz-lhes… Maria foi anunciar aos discípulos: ‘Vi o Senhor’. E contou o que Ele lhe
dissera (Jo 20,17-18). Torna-se, assim, ‘evangelista’, mensageira do
anúncio da Boa Nova da ressurreição do Senhor ou “apóstola dos apóstolos” (Rabano Mauro
e Tomás de Aquino), pois anuncia
aos apóstolos o que eles, por sua vez, anunciam a todo o mundo. Com razão o Doutor Angélico aplica a expressão a M.
Madalena, pois ela é testemunha de Cristo Ressuscitado e anuncia a mensagem da
ressurreição do Senhor, como os outros apóstolos. Por isso, é mais justo que a sua
celebração litúrgica tenha o mesmo grau de festa que as celebrações dos apóstolos,
relevando a especial missão desta mulher, que é modelo para a mulher na Igreja.
***
A festa releva, mais do que a penitência, o amor a
Cristo e a iniciativa feminina do apostolado.
2016.07.22 – Louro de Carvalho
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