A expressão vertida em epígrafe foi proferida hoje, dia 30,
por Francisco na homilia da Missa a cuja celebração presidiu no Santuário de São João Paulo II, em
Łagiewniki (Cracóvia), com sacerdotes, religiosas e religiosos, leigos consagrados e
seminaristas da Polónia.
O Bispo de Roma inspirou-se na
menção ao livro, a “este livro” que não contém “muitos outros sinais
miraculosos” que Jesus realizou na presença dos discípulos (cf Jo 20,30), garantindo o apóstolo evangelista que os sinais que foram registados
no livro cumprem a sua finalidade: “para credes que Jesus é o Messias, o Filho
de Deus, e, crendo, tenhais a vida Nele” (Jo 20,31). E o grande orador homilético
pretende que os discípulos de hoje, fiéis à chamada do Senhor para se colocarem
em saída porque “enviados”, sejam
“escritores viventes do Evangelho”. Não estão em causa as palavras, mesmo que
sejam de ouro, mas as obras, as obras de misericórdia que tornam viva a fé (cf
Tg 2,14-26).
Diz
o Santo Padre que, depois do grande sinal da misericórdia Cristo, poderia supor-se
que “já não foi necessário acrescentar mais”. Porém, na sua perspetiva de
Igreja, persiste o desafio de preenchermos o espaço reservado para os sinais
que nós temos de realizar, porque recebemos o Espírito Santo, como os apóstolos
dos primórdios, e somos instados à difusão da misericórdia.
De
facto, “o Evangelho, livro vivo da misericórdia de Deus” que devemos reler
continuamente, “tem páginas em branco no final”. É, pois, “um livro aberto, que
somos chamados a escrever com o mesmo estilo”, no cumprimento das obras de
misericórdia, corporais e espirituais.
Tal como a
Mãe de Jesus conservava todas aquelas coisas ponderando-as em seu coração (cf Lc 2,19.51), cada um dos presentes “guarda no
coração uma página muito pessoal do livro da misericórdia de Deus”, “a história
da nossa chamada, a voz do amor que fascinou e transformou a nossa vida,
fazendo com que, à sua Palavra, largássemos tudo para O seguir”. E a Celebração
Eucarística, centro da nossa vida, remédio para as fadigas e impulso para o afã
evangélico, permite agradecer ao Senhor a sua entrada com a sua misericórdia “nas
nossas portas fechadas” pois, como a Tomé, Ele “nos chamou pelo nome e nos “dá
a graça de continuar a escrever o seu Evangelho de amor”.
***
O Senhor, na tarde do primeiro dia
da semana, o da Ressurreição, foi encontrar os discípulos num lugar com as
portas fechadas. E, apesar da alegria que sentiram ao vê-Lo e de receberem o
mandato de saírem, animados pelo Espírito Santo a perdoar os pecados, os
discípulos, oito dias depois, ainda estavam na mesma casa, com as portas fechadas.
Faltava qualquer coisa. A casa tinha as portas fechadas, porque o livro ainda
não estava aberto e não o estava porque faltava integrar Tomé na economia comunitária
do apostolado da Ressurreição. E é Tomé, na sua declarada incredulidade, porque
queria ver, que faculta a abertura do livro.
Jesus
entra novamente, coloca-Se no
meio deles, leva misericórdia
de Deus manifesta na sua paz, no Espírito Santo e no perdão dos pecados. E
frisa o envio: “Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós” (Jo
20,21). Entende o
Papa que, “desde o início”, Jesus “deseja que a Igreja esteja em saída, vá pelo mundo”, como
sucedeu com Ele, ou seja, “como Ele foi enviado ao mundo pelo Pai: não como o
Senhor poderoso mas na condição de servo” (cf Fl 2,7), não “para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45) e para levar a Boa-Nova (cf Lc 4,18). “Assim são enviados os seus em todos os tempos” e
com a urgência de hoje, na paciência de Deus.
E,
contra “a tentação de permanecer um pouco fechados”, é preciso deixar ressoar o
convite de São João Paulo: “Abri as portas”. Com efeito, a direção indicada por
Jesus é de sentido único: “sair de nós mesmos”. Por outro lado – adverte
Francisco – Jesus não gosta das vias percorridas a metade, das portas
entreabertas, das vidas com via dupla. Quer que nos metamos a caminho “renunciando
às próprias seguranças, firmes apenas n'Ele” e reescrevendo o Livro da Vida.
É em
movimento de saída – e de paragem onde e sempre que for necessário para
recarregar baterias ou acudir a quem precisa – que as páginas em branco do
livro se escrevem, resultando páginas trabalhadas e suadas em “amor concreto”,
feito de “serviço e disponibilidade”. Depois, é preciso considerar que aquele
ou aquela que
“Escolheu configurar com Jesus toda a
existência não escolhe os próprios locais, mas vai para onde é enviado, pronto
a responder a quem o chama; não escolhe sequer os tempos próprios. A casa onde
habita não lhe pertence, porque a Igreja e o mundo são os espaços abertos da
sua missão.”
O seguidor de
Cristo tem o seu tesouro em “colocar o Senhor no
meio da vida, sem nada mais
procurar para si”, mas fugindo das “situações gratificantes que o colocariam no
centro”, não se erguendo “sobre os trémulos pedestais dos poderes do mundo”,
nem se reclinando “nas comodidades que enfraquecem a evangelização”: “alegra-se
por evangelizar”.
***
Como
é que Tomé facilita a abertura de portas e do livro?
Tomé surge
como o único discípulo chamado pelo nome naquela aparição do Ressuscitado. “Na
sua dúvida e ânsia de querer entender” – diz Bergoglio – “este discípulo
bastante teimoso assemelha-se-nos um pouco e até aparece simpático a nossos
olhos”. Sem o pretender, “dá-nos um grande presente: deixa-nos mais perto de
Deus, porque Deus não Se esconde de quem O procura”. O Senhor mostra-lhe as
suas chagas gloriosas e o lugar dos cravos, convida-o a tocar com os dedos e
com a mão “a ternura infinita de Deus, os sinais vivos de quanto sofreu por
amor”. Também para o discípulo de hoje “é muito importante pôr a nossa
humanidade em contacto com a carne do Senhor”. Jesus “fica contente” por Lhe
falarmos “de tudo, não Se cansa das nossas vidas que já conhece, espera a nossa
partilha, até mesmo a descrição das nossas jornadas”. O coração de Jesus
deixa-Se conquistar na oração transparente, “pela abertura sincera, por
corações que sabem reconhecer e chorar as suas fraquezas, confiantes em que
precisamente nelas agirá a misericórdia divina”.
E que nos
pede Jesus? A escrita vivente e vivenciada das páginas em branco do Evangelho
que enriquecem não apenas a tradição literária, mas sobretudo a tradição viva
da Igreja com letras e palavras da nossa história pessoal e comunitária,
resultante da palpitação: de “corações verdadeiramente consagrados, que vivam
do perdão recebido d’Ele para o derramarem com compaixão sobre os irmãos”; de “corações
abertos e ternos para com os fracos”; de “corações dóceis e transparentes, que
não dissimulam perante quem tem na Igreja a tarefa de orientar o caminho”. Para
tanto, o discípulo fiel “não hesita em questionar-se, tem a coragem de viver a
dúvida e de a levar ao Senhor, aos formadores e aos superiores, sem cálculos
nem reticências”; “realiza um discernimento atento e constante, sabendo que o coração
há de ser educado diariamente, a partir dos afetos, para escapar de toda a
duplicidade nas atitudes e na vida”.
E, como Tomé
– que, ao repto do Senhor: “não sejas incrédulo, mas crente!”, não só acreditou
como “encontrou em Jesus o tudo da vida” – também hoje ao discípulo fará bem que
repita diariamente aquelas palavras esplêndidas “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28), “como que a dizer-Lhe: Sois o
meu único bem, o caminho da minha viagem, o coração da minha vida, o meu tudo”.
***
Neste
contexto da escrita pessoal e vivente do Evangelho, o Pontífice questiona:
“Como
são as páginas do livro de cada um de vós? Estão escritas todos os dias? Estão
escritas a meias? Estão em branco?”
Depois,
solicita a ajuda da Mãe de Deus, aquela que “acolheu plenamente a Palavra de
Deus na vida (cf Lc 8,20-21), a Mãe da Misericórdia que
ensina “a cuidar concretamente das chagas de Jesus nos nossos irmãos e irmãs
que passam necessidade, tanto dos vizinhos como dos distantes, tanto do doente
como do migrante, porque, servindo quem sofre honra-se a carne de Cristo”.
E
pede à Virgem Maria que “ajude a gastarmo-nos completamente pelo bem dos fiéis
que nos estão confiados” e – algo tão próprio de Francisco – “a cuidarmos uns
dos outros como verdadeiros irmãos e irmãs na comunhão da Igreja, a nossa santa
Mãe”.
***
Numa
homilia plena de teologia bíblica e de espiritualidade da Ressurreição, ficam
espelhados os fundamentos do apostolado, os frutos da Páscoa e a missão
evangélico-histórica da Igreja e de cada um dos seus filhos. Também este Papa
assume fundamentada a dimensão materna da Igreja e a fraternidade de todos,
especialmente para com aqueles e aquelas que mostram na carne ou na alma as
chagas do Redentor e necessitam da ternura de Deus e do cuidado da Mãe.
Se
os votos de Francisco forem realizados por todos os que se entregaram incondicionalmente
ao apostolado, será cada vez mais palpável a realidade testemunha e profetizada
pelo Apóstolo Evangelista:
“Este é o discípulo que dá testemunho destas coisas e
que as escreveu. E nós sabemos bem que o seu testemunho é verdadeiro. Há ainda
muitas outras coisas que Jesus fez. Se elas fossem escritas, uma por uma, penso
que o mundo não teria espaço para os livros que se deveriam escrever.” (Jo 21,24-25).
Jesus continua-Se nos seus seguidores nos seus servidores, nos seus missionários,
bem como nos que precisam de beneficiar da missão: os pobres, os excluídos, os
explorados, os que não têm terra, teto e trabalho – o próximo.
2016.07.30 – Louro de Carvalho
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