sábado, 30 de julho de 2016

“Escritores viventes do Evangelho” – postulado dos discípulos de hoje

A expressão vertida em epígrafe foi proferida hoje, dia 30, por Francisco na homilia da Missa a cuja celebração presidiu no Santuário de São João Paulo II, em Łagiewniki (Cracóvia), com sacerdotes, religiosas e religiosos, leigos consagrados e seminaristas da Polónia.
O Bispo de Roma inspirou-se na menção ao livro, a “este livro” que não contém “muitos outros sinais miraculosos” que Jesus realizou na presença dos discípulos (cf Jo 20,30), garantindo o apóstolo evangelista que os sinais que foram registados no livro cumprem a sua finalidade: “para credes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e, crendo, tenhais a vida Nele” (Jo 20,31). E o grande orador homilético pretende que os discípulos de hoje, fiéis à chamada do Senhor para se colocarem em saída porque “enviados”, sejam “escritores viventes do Evangelho”. Não estão em causa as palavras, mesmo que sejam de ouro, mas as obras, as obras de misericórdia que tornam viva a fé (cf Tg 2,14-26).
Diz o Santo Padre que, depois do grande sinal da misericórdia Cristo, poderia supor-se que “já não foi necessário acrescentar mais”. Porém, na sua perspetiva de Igreja, persiste o desafio de preenchermos o espaço reservado para os sinais que nós temos de realizar, porque recebemos o Espírito Santo, como os apóstolos dos primórdios, e somos instados à difusão da misericórdia.
De facto, “o Evangelho, livro vivo da misericórdia de Deus” que devemos reler continuamente, “tem páginas em branco no final”. É, pois, “um livro aberto, que somos chamados a escrever com o mesmo estilo”, no cumprimento das obras de misericórdia, corporais e espirituais.
Tal como a Mãe de Jesus conservava todas aquelas coisas ponderando-as em seu coração (cf Lc 2,19.51), cada um dos presentes “guarda no coração uma página muito pessoal do livro da misericórdia de Deus”, “a história da nossa chamada, a voz do amor que fascinou e transformou a nossa vida, fazendo com que, à sua Palavra, largássemos tudo para O seguir”. E a Celebração Eucarística, centro da nossa vida, remédio para as fadigas e impulso para o afã evangélico, permite agradecer ao Senhor a sua entrada com a sua misericórdia “nas nossas portas fechadas” pois, como a Tomé, Ele “nos chamou pelo nome e nos “dá a graça de continuar a escrever o seu Evangelho de amor”.
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O Senhor, na tarde do primeiro dia da semana, o da Ressurreição, foi encontrar os discípulos num lugar com as portas fechadas. E, apesar da alegria que sentiram ao vê-Lo e de receberem o mandato de saírem, animados pelo Espírito Santo a perdoar os pecados, os discípulos, oito dias depois, ainda estavam na mesma casa, com as portas fechadas. Faltava qualquer coisa. A casa tinha as portas fechadas, porque o livro ainda não estava aberto e não o estava porque faltava integrar Tomé na economia comunitária do apostolado da Ressurreição. E é Tomé, na sua declarada incredulidade, porque queria ver, que faculta a abertura do livro.
Jesus entra novamente, coloca-Se no meio deles, leva misericórdia de Deus manifesta na sua paz, no Espírito Santo e no perdão dos pecados. E frisa o envio: “Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós” (Jo 20,21). Entende o Papa que, “desde o início”, Jesus “deseja que a Igreja esteja em saída, vá pelo mundo”, como sucedeu com Ele, ou seja, “como Ele foi enviado ao mundo pelo Pai: não como o Senhor poderoso mas na condição de servo” (cf Fl 2,7), não “para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45) e para levar a Boa-Nova (cf Lc 4,18). “Assim são enviados os seus em todos os tempos” e com a urgência de hoje, na paciência de Deus.
E, contra “a tentação de permanecer um pouco fechados”, é preciso deixar ressoar o convite de São João Paulo: “Abri as portas”. Com efeito, a direção indicada por Jesus é de sentido único: “sair de nós mesmos”. Por outro lado – adverte Francisco – Jesus não gosta das vias percorridas a metade, das portas entreabertas, das vidas com via dupla. Quer que nos metamos a caminho “renunciando às próprias seguranças, firmes apenas n'Ele” e reescrevendo o Livro da Vida.
É em movimento de saída – e de paragem onde e sempre que for necessário para recarregar baterias ou acudir a quem precisa – que as páginas em branco do livro se escrevem, resultando páginas trabalhadas e suadas em “amor concreto”, feito de “serviço e disponibilidade”. Depois, é preciso considerar que aquele ou aquela que
“Escolheu configurar com Jesus toda a existência não escolhe os próprios locais, mas vai para onde é enviado, pronto a responder a quem o chama; não escolhe sequer os tempos próprios. A casa onde habita não lhe pertence, porque a Igreja e o mundo são os espaços abertos da sua missão.”
O seguidor de Cristo tem o seu tesouro em “colocar o Senhor no meio da vida, sem nada mais procurar para si”, mas fugindo das “situações gratificantes que o colocariam no centro”, não se erguendo “sobre os trémulos pedestais dos poderes do mundo”, nem se reclinando “nas comodidades que enfraquecem a evangelização”: “alegra-se por evangelizar”.
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Como é que Tomé facilita a abertura de portas e do livro?
Tomé surge como o único discípulo chamado pelo nome naquela aparição do Ressuscitado. “Na sua dúvida e ânsia de querer entender” – diz Bergoglio – “este discípulo bastante teimoso assemelha-se-nos um pouco e até aparece simpático a nossos olhos”. Sem o pretender, “dá-nos um grande presente: deixa-nos mais perto de Deus, porque Deus não Se esconde de quem O procura”. O Senhor mostra-lhe as suas chagas gloriosas e o lugar dos cravos, convida-o a tocar com os dedos e com a mão “a ternura infinita de Deus, os sinais vivos de quanto sofreu por amor”. Também para o discípulo de hoje “é muito importante pôr a nossa humanidade em contacto com a carne do Senhor”. Jesus “fica contente” por Lhe falarmos “de tudo, não Se cansa das nossas vidas que já conhece, espera a nossa partilha, até mesmo a descrição das nossas jornadas”. O coração de Jesus deixa-Se conquistar na oração transparente, “pela abertura sincera, por corações que sabem reconhecer e chorar as suas fraquezas, confiantes em que precisamente nelas agirá a misericórdia divina”.
E que nos pede Jesus? A escrita vivente e vivenciada das páginas em branco do Evangelho que enriquecem não apenas a tradição literária, mas sobretudo a tradição viva da Igreja com letras e palavras da nossa história pessoal e comunitária, resultante da palpitação: de “corações verdadeiramente consagrados, que vivam do perdão recebido d’Ele para o derramarem com compaixão sobre os irmãos”; de “corações abertos e ternos para com os fracos”; de “corações dóceis e transparentes, que não dissimulam perante quem tem na Igreja a tarefa de orientar o caminho”. Para tanto, o discípulo fiel “não hesita em questionar-se, tem a coragem de viver a dúvida e de a levar ao Senhor, aos formadores e aos superiores, sem cálculos nem reticências”; “realiza um discernimento atento e constante, sabendo que o coração há de ser educado diariamente, a partir dos afetos, para escapar de toda a duplicidade nas atitudes e na vida”.
E, como Tomé – que, ao repto do Senhor: “não sejas incrédulo, mas crente!”, não só acreditou como “encontrou em Jesus o tudo da vida” – também hoje ao discípulo fará bem que repita diariamente aquelas palavras esplêndidas “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28), “como que a dizer-Lhe: Sois o meu único bem, o caminho da minha viagem, o coração da minha vida, o meu tudo”.
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Neste contexto da escrita pessoal e vivente do Evangelho, o Pontífice questiona:
“Como são as páginas do livro de cada um de vós? Estão escritas todos os dias? Estão escritas a meias? Estão em branco?”
Depois, solicita a ajuda da Mãe de Deus, aquela que “acolheu plenamente a Palavra de Deus na vida (cf Lc 8,20-21), a Mãe da Misericórdia que ensina “a cuidar concretamente das chagas de Jesus nos nossos irmãos e irmãs que passam necessidade, tanto dos vizinhos como dos distantes, tanto do doente como do migrante, porque, servindo quem sofre honra-se a carne de Cristo”.
E pede à Virgem Maria que “ajude a gastarmo-nos completamente pelo bem dos fiéis que nos estão confiados” e – algo tão próprio de Francisco – “a cuidarmos uns dos outros como verdadeiros irmãos e irmãs na comunhão da Igreja, a nossa santa Mãe”.
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Numa homilia plena de teologia bíblica e de espiritualidade da Ressurreição, ficam espelhados os fundamentos do apostolado, os frutos da Páscoa e a missão evangélico-histórica da Igreja e de cada um dos seus filhos. Também este Papa assume fundamentada a dimensão materna da Igreja e a fraternidade de todos, especialmente para com aqueles e aquelas que mostram na carne ou na alma as chagas do Redentor e necessitam da ternura de Deus e do cuidado da Mãe.
Se os votos de Francisco forem realizados por todos os que se entregaram incondicionalmente ao apostolado, será cada vez mais palpável a realidade testemunha e profetizada pelo Apóstolo Evangelista:
“Este é o discípulo que dá testemunho destas coisas e que as escreveu. E nós sabemos bem que o seu testemunho é verdadeiro. Há ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se elas fossem escritas, uma por uma, penso que o mundo não teria espaço para os livros que se deveriam escrever.” (Jo 21,24-25).
Jesus continua-Se nos seus seguidores nos seus servidores, nos seus missionários, bem como nos que precisam de beneficiar da missão: os pobres, os excluídos, os explorados, os que não têm terra, teto e trabalho – o próximo.

2016.07.30 – Louro de Carvalho

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