quarta-feira, 27 de julho de 2016

No 40.º aniversário da tomada de posse do I Governo Constitucional

Por iniciativa do Governo, decorreu, na tarde do passado dia 23 de julho, no jardim da Residência Oficial do Primeiro-Ministro, em Lisboa, uma sessão evocativa do 40.º aniversário da tomada de posse do I Governo Constitucional e, ao mesmo tempo, de homenagem àquele que presidiu ao primeiro governo constituído na sequência das primeiras eleições livres para a Assembleia da República.
Concorde-se ou não com as personalidades que integraram esse Executivo, a evocação da efeméride nacional e a homenagem a Mário Soares fazem todo o sentido na perspetiva republicana adotada pela Constituição da República Portuguesa, bem como no sistema semipresidencialista que emoldura o nosso ordenamento jurídico-constitucional.  
A cerimónia contou com a presença do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, que acompanhou Mário Soares ao seu assento, retirando-se de ao pé dele em seguida. Estiveram igualmente presentes: o Presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues; o ex-Presidente Ramalho Eanes; os ex-Primeiros-Ministros, Pinto Balsemão, Pedro Santana Lopes e Pedro Passos Coelho; os membros do XXI Governo (o atual); ex-ministros de vários Governos; e familiares, amigos e antigos colaboradores de Mário Soares. Em contrapartida, não estiveram presentes os ex-primeiros-ministros ainda vivos Cavaco Silva, António Guterres, Durão Barroso e José Sócrates.
Coube ao ex-Ministro do I Governo Constitucional, Rui Vilar (foi Ministro dos Transportes e Comunicações), fazer um historial do tempo que precedeu a posse do I Governo Constitucional e da sua ação evocando “este primeiro momento fundador do Estado de Direito democrático, nas palavras de António Costa; e coube ao mais antigo dos ex-Primeiros-Ministros, Pinto Balsemão, fazer um retrato de Mário Soares.
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No entanto, a mais relevante em conteúdo foi a intervenção de António Costa, de que se extraem algumas ideias-força.
Com efeito, “o Primeiro-Ministro afirmou que a homenagem a Soares “é a homenagem do resistente, do defensor da democracia, do construtor da integração europeu, do reconstrutor do País”; e que a sua vida “é longa na resistência à ditadura, longa na forma como soube defender a revolução das ameaças à liberdade, longa na capacidade que teve de assegurar o fim do colonialismo e a nossa integração na União Europeia, longa na capacidade que teve de consolidar a nossa democracia, longa  na capacidade que teve de garantir a reconstrução económica do País”.
Costa apontou 1976 como o ano da institucionalização da democracia, referindo a aprovação da Constituição, as primeiras eleições para a Assembleia da República, as primeiras eleições para as Assembleias Regionais dos Açores e da Madeira, as primeiras eleições presidenciais e primeiras as eleições autárquicas. Contudo, na sua ótica, “o momento marcante é a formação do I Governo Constitucional”, “o primeiro Governo saído de eleições livres, o primeiro que entrou em funções após a vigência da Constituição e o primeiro dos três Governos (I, II e IX) presididos por Mário Soares.  
Foi este o primeiro Governo estável que enfrentou os desafios gigantescos que se colocavam ao país: o de assegurar, após 50 anos de ditadura e 2 anos de processo revolucionário, “um período de concórdia nacional”, o “de construir a nova ordem constitucional”, o “de assegurar a reconstrução económica do País”, e o “de reinserir Portugal no mundo após cinco séculos de colonialismo”.
No âmbito da construção do Estado de Direito, Costa destacou a lei das autarquias locais e a efetiva consagração da independência do poder judiciário, bem como “duas iniciativas desse Governo que marcaram profundamente a vida do País, e ainda hoje marcam a vida de todos nós”: a primeira tem a ver com “o reencontro com a Europa”, primeiro, com a adesão ao Conselho da Europa e, depois, com o pedido de adesão à então Comunidade Económica Europeia, hoje União Europeia; e o outro momento foi a revisão do Código Civil, sobretudo no atinente ao direito de família, que seguramente alterou “a vida do dia a dia da generalidade dos portugueses, das nossas famílias, e que corresponde na vida de todos nós ao verdadeiro significado de nova ordem constitucional”.
A predita revisão “introduziu a mais profunda alteração na conceção do que é a igualdade de género nas relações familiares” e gerou “uma verdadeira revolução no direito da família em Portugal, consagrando a igualdade de direitos entre os cônjuges, uma nova visão do poder paternal, o fim dessa ignomínia que era a discriminação dos filhos nascidos fora do casamento” – sendo esta “uma das grandes alterações civilizacionais que o País viveu”.
Tendo o I Governo Constitucional feito muito no pouco tempo de que dispôs, diz o Primeiro-Ministro que “esta homenagem a Mário Soares” é, por isso, também homenagem a todas e todos os que serviram Portugal no I Governo Constitucional.
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Além da referida sessão do dia 23, o Portal do Governo criou um site especial – da iniciativa do próprio Governo, mas com a participação de entidades externas – para assinalar o 40.º aniversário da posse do I Governo Constitucional e da sua ação. O site disponibiliza um acervo de documentos históricos relativos a esse I Governo, entre os quais vídeos da tomada de posse e uma brochura digitalizada com os discursos de Ramalho Eanes e de Mário Soares. Há ainda acesso a uma cronologia para acompanhar estes primeiros tempos do Governo, as biografias dos seus componentes, a enunciação da legislação produzida, recortes de imprensa relativos à ocasião e um texto cujo teor constitui o legado deste I Governo.
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O essencial do legado sintetiza-se nas palavras do então Primeiro-Ministro Dr. Mário Soares:
“O desafio a que responde o Governo Constitucional é extremamente difícil: consolidar a Democracia e partir dessa consolidação para a construção do socialismo democrático, nos termos da Constituição”.
Na verdade, o I Governo Constitucional criara expectativas, em virtude da sua simbólica fundadora, e postulava uma grande criatividade governativa no quadro dos desafios que se colocavam ao país. Mas são algumas das suas opções basilares que definem em concreto o seu legado. Primeiro que tudo, urgia consolidar os alicerces da democracia pluralista de tradição europeia, o que implicou a adoção dos seus modelos económicos e a criação de condições de estabilidade e capacidade para o Estado; e, por outro lado, induziu a opção por modelos de Estado de bem-estar social, com políticas públicas e sociais assumidas, como, aliás, vinha consagrado na própria Constituição.
Nestes termos, a ação do Governo traduziu-se numa intensa produção legislativa e operativa sobre matérias diversas, como a organização de associações sindicais ou o direito à greve, a reestruturação da segurança social (com a criação do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social), a reorganização dos estabelecimentos de ensino, o alargamento da rede de creches e infantários, a criação do Comissariado para os Desalojados. Em paralelo, a sensibilidade social manifesta-se também no aumento da oferta da habitação social, na atenção à educação pré-escolar ou na reformulação das Administrações Distritais dos Serviços de Saúde. E não se descuraram as infraestruturas, iniciando-se a reestruturação da rede ferroviária, o programa de construção de autoestradas, o plano de viação rural e a política de saneamento básico.
No atinente à arquitetura institucional, data desse tempo a preparação e a aprovação de inúmeras propostas de lei na área da justiça, nomeadamente as leis orgânicas dos tribunais judiciais, do Conselho Superior de Magistratura e da Procuradoria-Geral da República, bem como os estatutos dos magistrados judiciais, do Ministério Público e do Provedor da Justiça. Além disso, reveem-se, entre outros, o Código Civil, o Código do Processo Civil, o Código Penal e o Código de Justiça Militar (este, no cumprimento do postulado constitucional, aboliu a pena de morte para os crimes essencialmente militares, a única matéria em que ela persistia). Foi ainda definida a política global de defesa nacional, fortalecendo-se a relação entre o poder político e as Forças Armadas.
É óbvio que as respostas a encontrar para a crise económica e financeira, conexa com a crise mundial de 1973 (sobretudo no setor petrolífero) e com a instabilidade do processo revolucionário, têm uma componente interna a que se alia necessariamente a cooperação com os diversos organismos internacionais, com momentos de tensão de cariz duradouro. Não obstante, a gestão do equilíbrio entre as forças políticas e as associações de interesses tornou-se um tanto difícil com as negociações com vista a um empréstimo que permitisse fazer face aos problemas da Balança de Transações Correntes, tendo o FMI e outros organismos internacionais exigido significativas medidas de contenção. Porém, a grande solução estruturante – de médio e longo prazo – para ultrapassar os problemas foi a aposta na adesão à CEE. Entretanto, a curto prazo, urgia implementar outras medidas também de caráter estruturante, contornando as mudanças estruturais do processo revolucionário, descontinuando a reforma agrária e as nacionalizações e apostando numa economia mista com a valorização da iniciativa privada, pela recuperação das empresas privadas e pela delimitação do setor público. É neste quadro que evolui o plano siderúrgico nacional e o Complexo de Sines, com o envolvimento de infraestruturas portuárias, urbanas e uma reflexão sobre a atividade industrial. O Governo investiu na hidráulica e mecanização agrícola, na política florestal, na introdução da coca-cola  e na área pesqueira, cuidando da formação profissional e da reconversão da respetiva frota. A estas medidas poderiam juntar-se muitas outras, num período marcado pela realização das primeiras eleições autárquicas, para as quais foi determinante o papel de alguns membros do Governo.
O I Governo teve efetivamente, como se viu, uma intensa ação, justificada pela necessidade da produção de legislação estruturante nos vários setores da sociedade. E o trabalho no plano externo, nomeadamente a azáfama determinada e consciente em torno do pedido de adesão à CEE, contribuiu de modo decisivo para “a afirmação e valorização de Portugal”, a nível nacional e internacional, ampliando o seu legado político, económico, social e cultural.
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Apesar de a sua duração não ter ido muito além no tempo – cessou funções em 30 de janeiro de 1978 na sequência da rejeição de uma moção de confiança apresentada por si à Assembleia da República no dia 7 de dezembro de 1977 – o seu legado não pode deixar de permanecer na memória coletiva, quer tenhamos em conta o seu conteúdo, quer nos fixemos nas vicissitudes por que passou a sua ação.
Uma nação vive das suas memórias, positivas ou negativas. Mas dificilmente as memórias nacionais são inteiramente positivas ou inteiramente negativas. O que importa é a capacidade de autossuperação em cada momento que passa e no tempo das grandes opções.

2016.07.27 – Louro de Carvalho

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