Por iniciativa do Governo, decorreu,
na tarde do passado dia 23 de julho, no jardim da Residência Oficial do
Primeiro-Ministro, em Lisboa, uma sessão evocativa do 40.º aniversário da tomada de posse do I Governo Constitucional e, ao
mesmo tempo, de homenagem àquele que presidiu ao primeiro governo constituído
na sequência das primeiras eleições livres para a Assembleia da República.
Concorde-se
ou não com as personalidades que integraram esse Executivo, a evocação da efeméride
nacional e a homenagem a Mário Soares fazem todo o sentido na perspetiva
republicana adotada pela Constituição da República Portuguesa, bem como no
sistema semipresidencialista que emoldura o nosso ordenamento
jurídico-constitucional.
A cerimónia contou com a presença do Presidente
da República Marcelo Rebelo de Sousa, que acompanhou Mário Soares ao seu
assento, retirando-se de ao pé dele em seguida. Estiveram igualmente
presentes: o Presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues; o ex-Presidente
Ramalho Eanes; os ex-Primeiros-Ministros, Pinto Balsemão, Pedro Santana Lopes e
Pedro Passos Coelho; os membros do XXI Governo (o atual); ex-ministros de vários
Governos; e familiares, amigos e antigos colaboradores de Mário Soares. Em contrapartida,
não estiveram presentes os ex-primeiros-ministros ainda vivos Cavaco Silva, António
Guterres, Durão Barroso e José Sócrates.
Coube ao ex-Ministro do I Governo Constitucional,
Rui Vilar (foi Ministro dos Transportes e Comunicações), fazer um historial do tempo
que precedeu a posse do I Governo Constitucional e da sua ação evocando “este primeiro
momento fundador do Estado de Direito democrático, nas palavras de António
Costa; e coube ao mais antigo dos ex-Primeiros-Ministros, Pinto Balsemão, fazer
um retrato de Mário Soares.
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No entanto, a mais relevante em conteúdo foi a
intervenção de António Costa, de que se extraem algumas ideias-força.
Com efeito, “o Primeiro-Ministro afirmou que
a homenagem a Soares “é a homenagem do resistente, do defensor da democracia,
do construtor da integração europeu, do reconstrutor do País”; e que a sua vida
“é longa na resistência à ditadura, longa na forma como soube defender a
revolução das ameaças à liberdade, longa na capacidade que teve de assegurar o
fim do colonialismo e a nossa integração na União Europeia, longa na capacidade
que teve de consolidar a nossa democracia, longa na capacidade que teve
de garantir a reconstrução económica do País”.
Costa apontou 1976 como o ano da
institucionalização da democracia, referindo a aprovação da Constituição, as primeiras
eleições para a Assembleia da República, as primeiras eleições para as
Assembleias Regionais dos Açores e da Madeira, as primeiras eleições
presidenciais e primeiras as eleições autárquicas. Contudo, na sua ótica, “o
momento marcante é a formação do I Governo Constitucional”, “o primeiro Governo
saído de eleições livres, o primeiro que entrou em funções após a vigência da Constituição
e o primeiro dos três Governos (I, II e IX) presididos por Mário Soares.
Foi este o primeiro Governo estável que
enfrentou os desafios gigantescos que se colocavam ao país: o de assegurar, após
50 anos de ditadura e 2 anos de processo revolucionário, “um período de
concórdia nacional”, o “de construir a nova ordem constitucional”, o “de
assegurar a reconstrução económica do País”, e o “de reinserir Portugal no
mundo após cinco séculos de colonialismo”.
No âmbito da construção do Estado de Direito, Costa destacou a lei das
autarquias locais e a efetiva consagração da independência do poder judiciário,
bem como “duas iniciativas desse Governo que marcaram profundamente a vida do
País, e ainda hoje marcam a vida de todos nós”: a primeira tem a ver com “o
reencontro com a Europa”, primeiro, com a adesão ao Conselho da Europa e,
depois, com o pedido de adesão à então Comunidade Económica Europeia, hoje
União Europeia; e o outro momento foi a revisão do Código Civil, sobretudo no atinente
ao direito de família, que seguramente alterou “a vida do dia a dia da
generalidade dos portugueses, das nossas famílias, e que corresponde na vida de
todos nós ao verdadeiro significado de nova ordem constitucional”.
A predita revisão “introduziu a mais profunda
alteração na conceção do que é a igualdade de género nas relações familiares” e
gerou “uma verdadeira revolução no direito da família em Portugal, consagrando
a igualdade de direitos entre os cônjuges, uma nova visão do poder paternal, o
fim dessa ignomínia que era a discriminação dos filhos nascidos fora do
casamento” – sendo esta “uma das grandes alterações civilizacionais que o País
viveu”.
Tendo o I Governo Constitucional feito muito no
pouco tempo de que dispôs, diz o Primeiro-Ministro que “esta homenagem a Mário
Soares” é, por isso, também homenagem a todas e todos os que serviram Portugal no
I Governo Constitucional.
***
Além da referida sessão do dia 23, o Portal do
Governo criou um site especial – da iniciativa
do próprio Governo, mas com
a participação de entidades externas – para
assinalar o 40.º aniversário da posse do I Governo Constitucional e da sua
ação. O site disponibiliza um
acervo de documentos históricos relativos a esse I Governo, entre os quais
vídeos da tomada de posse e uma brochura digitalizada com os discursos de Ramalho
Eanes e de Mário Soares. Há ainda acesso a uma cronologia para acompanhar estes
primeiros tempos do Governo, as biografias dos seus componentes, a enunciação
da legislação produzida, recortes de imprensa relativos à ocasião e um texto
cujo teor constitui o legado deste I Governo.
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O
essencial do legado sintetiza-se nas palavras do então Primeiro-Ministro Dr. Mário
Soares:
“O desafio a que responde o Governo Constitucional é
extremamente difícil: consolidar a Democracia e partir dessa consolidação para
a construção do socialismo democrático, nos termos da Constituição”.
Na
verdade, o I Governo Constitucional criara expectativas, em virtude da sua simbólica
fundadora, e postulava uma grande criatividade governativa no quadro dos
desafios que se colocavam ao país. Mas são algumas das suas opções basilares que
definem em concreto o seu legado. Primeiro que tudo, urgia consolidar os
alicerces da democracia pluralista de tradição europeia, o que implicou a
adoção dos seus modelos económicos e a criação de condições de estabilidade e
capacidade para o Estado; e, por outro lado, induziu a opção por modelos de Estado de
bem-estar social, com políticas públicas e
sociais assumidas, como, aliás, vinha consagrado na própria
Constituição.
Nestes
termos, a ação do Governo traduziu-se numa intensa produção legislativa e
operativa sobre matérias diversas, como a organização de associações sindicais ou o direito à greve, a reestruturação
da segurança social (com a criação do Instituto de Gestão Financeira da Segurança
Social), a reorganização dos estabelecimentos de ensino, o alargamento da rede de creches e infantários,
a criação do Comissariado para os
Desalojados. Em paralelo, a sensibilidade social manifesta-se também no
aumento da oferta da habitação social,
na atenção à educação pré-escolar ou na
reformulação das Administrações Distritais dos Serviços de Saúde. E não
se descuraram as infraestruturas, iniciando-se a reestruturação
da rede ferroviária, o programa de construção de autoestradas,
o plano de viação rural e a política
de saneamento
básico.
No atinente à
arquitetura institucional, data desse tempo a preparação e a aprovação de
inúmeras propostas de lei na área da justiça, nomeadamente as leis orgânicas
dos tribunais judiciais, do Conselho Superior de Magistratura e da Procuradoria-Geral
da República, bem como os estatutos dos magistrados judiciais, do Ministério
Público e do Provedor da Justiça. Além disso, reveem-se, entre outros, o Código
Civil, o Código do Processo Civil, o Código Penal e o Código de Justiça Militar
(este, no cumprimento do
postulado constitucional, aboliu a pena de morte para os crimes essencialmente militares,
a única matéria em que ela persistia). Foi ainda definida a política global de defesa nacional,
fortalecendo-se a relação entre o poder político e as Forças Armadas.
É óbvio que
as respostas a encontrar para a crise económica e financeira, conexa com a
crise mundial de 1973 (sobretudo
no setor petrolífero) e
com a instabilidade do processo revolucionário, têm uma componente interna a que
se alia necessariamente a cooperação com os diversos organismos internacionais,
com momentos de tensão de cariz duradouro. Não obstante, a gestão do equilíbrio
entre as forças políticas e as associações de interesses tornou-se um tanto
difícil com as negociações com vista a um empréstimo que permitisse fazer face
aos problemas da Balança de Transações Correntes, tendo o FMI e outros organismos
internacionais exigido significativas medidas de contenção. Porém, a grande solução
estruturante – de médio e longo prazo – para ultrapassar os problemas foi a
aposta na adesão à CEE. Entretanto, a curto prazo, urgia implementar outras
medidas também de caráter estruturante, contornando as mudanças estruturais do
processo revolucionário, descontinuando a reforma agrária e as nacionalizações
e apostando numa economia mista com
a valorização da iniciativa privada, pela recuperação das empresas privadas e pela
delimitação do setor público. É neste quadro que evolui o plano
siderúrgico nacional e
o Complexo de
Sines, com o envolvimento de infraestruturas portuárias, urbanas
e uma reflexão sobre a atividade industrial. O Governo investiu na hidráulica e
mecanização agrícola, na política florestal, na
introdução da coca-cola e na área pesqueira, cuidando da
formação profissional e da reconversão da respetiva frota. A estas medidas
poderiam juntar-se muitas outras, num período marcado pela realização das primeiras
eleições autárquicas, para as quais foi determinante o
papel de alguns membros do Governo.
O I Governo
teve efetivamente, como se viu, uma intensa ação, justificada pela necessidade
da produção de legislação estruturante nos vários setores da sociedade. E o
trabalho no plano externo, nomeadamente a azáfama determinada e consciente em
torno do pedido de adesão à CEE, contribuiu de modo decisivo
para “a afirmação e valorização de Portugal”, a nível nacional e internacional,
ampliando o seu legado político, económico, social e cultural.
***
Apesar de a
sua duração não ter ido muito além no tempo – cessou funções em 30 de janeiro
de 1978 na sequência da rejeição de uma moção de confiança apresentada por si à
Assembleia da República no dia 7 de dezembro de 1977 – o seu legado não pode
deixar de permanecer na memória coletiva, quer tenhamos em conta o seu conteúdo,
quer nos fixemos nas vicissitudes por que passou a sua ação.
Uma nação
vive das suas memórias, positivas ou negativas. Mas dificilmente as memórias
nacionais são inteiramente positivas ou inteiramente negativas. O que importa é
a capacidade de autossuperação em cada momento que passa e no tempo das grandes
opções.
2016.07.27 – Louro de Carvalho
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