A razão
por que se faz esta reflexão em torno da figura deste presbítero e doutor da
Igreja prende-se sobretudo com o facto de ter falecido em Lisboa em 1619. Se o
país onde um santo chega ao fim dos seus dias pode reivindicar o seu patrocínio
– tal como Pádua fez para António de Lisboa e Portugal fez para Isabel de
Aragão ou Francisco Xavier – também o santo presbítero e doutor cuja memória
litúrgica se celebra hoje, dia 21 de julho, pode bem ser considerado um santo
português.
A Liturgia
é formalmente avara para com este santo, pois, apenas lhe reserva como próprio
da missa a oração coleta que também serve para as horas canónicas do Ofício
Divino, a 2.ª leitura do Ofício de
Leitura e o correspondente responsório. Quanto ao mais, remete para a missa
da liturgia ferial ou para a do comum dos pastores ou para a do comum dos
doutores da Igreja.
Antes de
refletirmos sobre algum do material litúrgico que pode emoldurar a memória
litúrgica de São Lourenço de Brindes, passemos a uma breve resenha biográfica.
***
Lourenço nasceu a
22 de julho de 1559 em Brindes, cidade portuária da Apúlia, no seio duma
família ilustre (Seus pais eram os
comerciantes venezianos Guglielmo
Russi, ou “de Rossi”, e Elisabetta Masella).
Cedo ficou órfão de pai e foi recebido pelos Franciscanos Conventuais, junto
dos quais frequentou os estudos de Humanidades. Perdeu a mãe aos 14 anos de
idade – altura em que deixou a cidade natal, bem como os Conventuais, passando
a viver em Veneza, na casa de um tio paterno. Ali, conheceu os Capuchinhos e
pediu para ser recebido na Ordem. Passou o ano de noviciado em Veneza e foi
admitido à profissão religiosa a 24 de março de 1576.
Começou a estudar
Lógica em Pádua e em Veneza iniciou o estudo da Filosofia e Teologia. Dotado de
excecional inteligência e vontade e levado pela sede insaciável do saber,
aplicou-se em profundidade, sobretudo, aos estudos bíblicos. Dedicou especial
cuidado às línguas bíblicas, e em especial, às línguas semitas, que aprendeu
com tal perfeição que provocava a admiração nos próprios rabinos. A sua memória
era verdadeiramente prodigiosa e pode dizer-se que falava todas as línguas de
então. Ordenado sacerdote em Veneza, a 18 de dezembro de 1582, foi-lhe confiado
o ensino da Teologia. Pelo conhecimento das ciências sagradas, pelos dotes de
orador e pela sua santidade, ganhou a estima de todos os sábios do tempo e de
todos os seus irmãos. E, pelo conhecimento das diversas línguas, teve
possibilidade de percorrer toda a Europa levando a toda a parte, mesmo a
regiões onde proliferavam muitas heresias, uma palavra firme de verdade, de
obediência e de fé.
Foi eleito, por diversas
vezes, Ministro Provincial e Ministro Geral da Ordem. Percorreu novamente (e
a pé) grande parte
da Europa em visita aos seus irmãos, edificando-os com o exemplo de vida e com fervorosa
palavra. O segredo dos seus incontáveis recursos foi a terna devoção a Nossa
Senhora, cujos privilégios e vida soube descrever e enaltecer com palavras de genuíno
entusiasmo. À sua atividade pastoral e apostólica juntou a de escritor duma
vasta obra de exegese bíblica, de oratória e de apologética, sobretudo, contra
os luteranos.
Clemente VIII
chamou-o a Roma para o enviar à Hungria, Boémia, Bélgica, Suíça, Alemanha,
França e Portugal. Foi pregador e embaixador junto de diversos soberanos de
nações cristãs que estimulou para a cruzada contra os turcos a fim de evitar o
seu avanço. E, quando o exército cristão na Hungria fez parar o exército da Meia Lua, Lourenço encontrava-se no meio
dos soldados cristãos, no momento da vitoriosa batalha de Alba Real, incitando
em todas as línguas, à defesa e salvaguarda da cristandade, chegando a entrar
na própria mesquita.
Depois da Guerra,
o Papa Paulo V enviou-o como embaixador de paz entre as potências cristãs
frequentemente em guerra. Conquistou o espírito dos soberanos mais turbulentos
com a sua humildade evidente, mansidão evangélica e eloquência de homem
habituado “à penitência e à oração”. E, com o seu temperamento enérgico e
impulsivo, com habilidade, com oratória e com força persuasiva, trouxe para a
fé católica muitos protestantes e alguns hebreus.
Em 1619,
empreendeu a sua última viagem à Península Ibérica, com uma missão de paz junto
do Rei Filipe III. Foi nesta missão que morreu, em Belém, na cidade de Lisboa,
a 22 de julho de 1619, no mesmo dia em que completava 60 anos de idade.
Canonizado por
Leão XIII em 1881, foi proclamado Doutor da Igreja, em 1959, pelo Papa João
XXIII, com o nome de Doutor Apostólico. Dele se diz que pregou com assiduidade e eficácia em
vários países da Europa e escreveu muitas obras doutrinais.
Além das pregações, Lourenço deixou uma grande
quantidade de obras, inclusive mais de 800 sermões que ocupam 11 dos 15 volumes
da sua obra completa, que são um admirável exemplo da hoje chamada teologia
querigmática e do modo de ensinar a doutrina cristã – o que o situa no mesmo
patamar da atividade pastoral dos Padres da Igreja e dos grandes
santos proclamados doutores da Igreja. Destaca-se a sua mariologia, de
extraordinária clareza conceitual.
Também se reflete na sua obra o intenso trabalho em
prol da conversão dos judeus, dado que, sobretudo, a instâncias do Papa
Clemente VIII, pregou por três anos aos judeus de Roma. Esta tarefa e a missão
de ensinar aos religiosos da sua Ordem, juntamente com o seu conhecimento do
hebraico, do aramaico e do caldeu, permitem apresentá-lo como um excelente exegeta na
sua “Explanatio in Genesim”.
Aliando aos seus profundos e amplos conhecimentos teológicos uma filosofia
sadia, tratou de maneira magistral as questões referentes ao Deus criador, seus
atributos, anjos, natureza e criação do homem, matrimónio e diversos
outros temas que provocavam polémica então.
Aparece ainda na sua obra a crítica ao protestantismo nascente.
Em Praga, disputou com Policarpo Leiser, teólogo, escritor e
pregador da corte do príncipe-eleitor. Desta disputa resultou o “Lutheranismi hypotyposis” (3
vol.), um manual prático de apologia católica.
A proclamação de Lourenço como Doutor da Igreja é
a confirmação do seu sucesso apostólico. Crê-se, porém, que ainda há muitos
outros documentos nos arquivos das bibliotecas europeias que poderão iluminar
melhor a sua atividade doutrinária.
***
A predita oração da Missa e da Liturgia das Horas
destaca a “sabedoria” e a “fortaleza” como dons do Espírito Santo presentes em
Lourenço. Ora, o dom da sabedoria
é a graça de poder ver e apreciar cada coisa com os olhos de Deus – de sentir
com o Seu coração, de falar com as Suas palavras – mercê da intimidade que
vivemos com Deus, como “de filhos com o Pai”. E o dom da fortaleza, pelo qual o Espírito vem apoiar-nos na nossa
fraqueza, deve
constituir o pano de fundo do nosso ser cristão na normalidade da nossa vida
quotidiana para levarmos por diante a nossa vida, a nossa família, a nossa fé.
Quando vêm as dificuldades, devemos considerar que o Senhor não nos dá prova
maior do que aquilo que podemos tolerar. Ele dá-nos força e nunca a deixa
faltar. Podemos, pois, dizer com Paulo, “Tudo
posso naquele que me fortalece” (Fl 4,13).
A predita 2.ª leitura do Ofício de Leitura é um
excerto dos Sermões de São Lourenço de Brindes (Sermão da Quaresma 2: Opera Omnia 5,
1, nn. 48.50.52 - Séc. XVII) em torno
da ideia-força “A pregação é um dever apostólico” – que se condensa a seguir.
Para assegurar a vida espiritual, que possuímos por
termos sido criados “à imagem e semelhança de Deus”, precisamos da Sua graça
e da caridade que postulam a fé. Mas a fé não se alcança sem a pregação da
palavra de Deus – e a pregação é o anúncio da palavra de Cristo – tão
necessária para a vida espiritual, como a sementeira para a vida corporal.
Por aqui se vê como é relevante a parábola do
semeador, que “saiu a semear a sua semente”, ou seja, a anunciar a justiça.
Ora, este arauto da justiça foi às vezes o próprio Deus (vg: no deserto,
quando deu a todo o povo a lei da justiça); por vezes,
foi um anjo, como o que, no ‘lugar do pranto’ repreendeu o povo por causa da
transgressão da lei divina; também Moisés e os profetas pregaram ao povo a lei
do Senhor; e, por fim, veio Cristo, Deus e homem, para pregar a palavra de
Deus. E Cristo enviou os Apóstolos para esse mesmo fim (“Ai de mim
se não evangelizar” – 2Cor 9,16), como
enviara os Profetas. Assim, a pregação é dever divino, angélico,
profético, cristão e apostólico. Manifesta-se pela palavra de Deus a multiforme
riqueza da sua bondade – tesouro onde se encerram todos os bens. Dela procedem
a fé a esperança e a caridade, as virtudes, os dons do Espírito, as
bem-aventuranças evangélicas, as boas obras, os méritos da vida, a glória do
paraíso. É, pois, necessário receber a Palavra que em nós foi semeada para
salvar as nossas almas. Esta palavra é “luz para a inteligência, fogo para
a vontade”. Por ela podemos conhecer e amar a Deus. É “pão e água, mas pão mais
doce que o mel e o favo, e água melhor que o vinho e o leite”. E, porque “é um
tesouro de méritos para a alma espiritual”, é comparável “ao ouro e à pedra
preciosa”. Sendo “o martelo que abranda a dureza do coração obstinado”, é também
“a espada que mata todo o pecado na luta contra a carne, o mundo e o demónio”.
***
Do
Evangelho da Missa do comum dos doutores da Igreja (Mt
5, 13-19) –
selecionou-se este porque os doutores proclamados são apenas 36 – aprendemos
que os que aprofundam e ensinam (discípulos e apóstolos) a palavra revelada por Deus são
verdadeiro “sal da terra” e fulgente “luz do mundo”. E quem praticar e ensinar
os mandamentos que a Palavra de Deus encerra será tido como grande no Reino dos
Céus.
Também
outro Evangelho proposto para a mesma Missa (Mt 7,21-29) nos adverte que não são as
nossas palavras que nos catapultam para o Reino dos Céus, mas a realização da
vontade de Deus. Quem a realiza é como o homem prudente, que edificou a sua
casa sobre a rocha. Por outro lado, segundo uma outra perícopa do Evangelho
para o comum dos doutores (Mt 13, 47-52), o homem sensato (“todo
o escriba avisado”)
sabe que neste mundo crescem os bons e os maus, sendo necessário ter a
paciência de respeitar esta realidade. Só no fim dos tempos é que se fará a
destrinça definitiva. Para já o escriba instruído, sabendo tirar do tesouro
coisas novas e velhas, deve ter a paciência de instruir, mas não a ferros, e
sobretudo não apostar na exclusão.
***
Que
são Lourenço de Brindes ajude a interiorizar o grito profético, “Sobe ao alto dum monte para anunciar a Sião
a Boa Nova e diz às cidades de Judá ‘Eis o vosso Deus’!” (Is
40,9) e a ordem de
Jesus: “Segue-me e vem anunciar o reino de Deus” (cf
Lc 9,59-60) – vd
responsório à 2.ª leitura da hora canónica aludida.
2016.07.21 – Louro de Carvalho
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