sexta-feira, 22 de julho de 2016

São Lourenço de Brindes – um santo europeu


A razão por que se faz esta reflexão em torno da figura deste presbítero e doutor da Igreja prende-se sobretudo com o facto de ter falecido em Lisboa em 1619. Se o país onde um santo chega ao fim dos seus dias pode reivindicar o seu patrocínio – tal como Pádua fez para António de Lisboa e Portugal fez para Isabel de Aragão ou Francisco Xavier – também o santo presbítero e doutor cuja memória litúrgica se celebra hoje, dia 21 de julho, pode bem ser considerado um santo português.
A Liturgia é formalmente avara para com este santo, pois, apenas lhe reserva como próprio da missa a oração coleta que também serve para as horas canónicas do Ofício Divino, a 2.ª leitura do Ofício de Leitura e o correspondente responsório. Quanto ao mais, remete para a missa da liturgia ferial ou para a do comum dos pastores ou para a do comum dos doutores da Igreja.
Antes de refletirmos sobre algum do material litúrgico que pode emoldurar a memória litúrgica de São Lourenço de Brindes, passemos a uma breve resenha biográfica.
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Lourenço nasceu a 22 de julho de 1559 em Brindes, cidade portuária da Apúlia, no seio duma família ilustre (Seus pais eram os comerciantes venezianos Guglielmo Russi, ou “de Rossi”, e Elisabetta Masella). Cedo ficou órfão de pai e foi recebido pelos Franciscanos Conventuais, junto dos quais frequentou os estudos de Humanidades. Perdeu a mãe aos 14 anos de idade – altura em que deixou a cidade natal, bem como os Conventuais, passando a viver em Veneza, na casa de um tio paterno. Ali, conheceu os Capuchinhos e pediu para ser recebido na Ordem. Passou o ano de noviciado em Veneza e foi admitido à profissão religiosa a 24 de março de 1576.
Começou a estudar Lógica em Pádua e em Veneza iniciou o estudo da Filosofia e Teologia. Dotado de excecional inteligência e vontade e levado pela sede insaciável do saber, aplicou-se em profundidade, sobretudo, aos estudos bíblicos. Dedicou especial cuidado às línguas bíblicas, e em especial, às línguas semitas, que aprendeu com tal perfeição que provocava a admiração nos próprios rabinos. A sua memória era verdadeiramente prodigiosa e pode dizer-se que falava todas as línguas de então. Ordenado sacerdote em Veneza, a 18 de dezembro de 1582, foi-lhe confiado o ensino da Teologia. Pelo conhecimento das ciências sagradas, pelos dotes de orador e pela sua santidade, ganhou a estima de todos os sábios do tempo e de todos os seus irmãos. E, pelo conhecimento das diversas línguas, teve possibilidade de percorrer toda a Europa levando a toda a parte, mesmo a regiões onde proliferavam muitas heresias, uma palavra firme de verdade, de obediência e de fé.
Foi eleito, por diversas vezes, Ministro Provincial e Ministro Geral da Ordem. Percorreu novamente (e a pé) grande parte da Europa em visita aos seus irmãos, edificando-os com o exemplo de vida e com fervorosa palavra. O segredo dos seus incontáveis recursos foi a terna devoção a Nossa Senhora, cujos privilégios e vida soube descrever e enaltecer com palavras de genuíno entusiasmo. À sua atividade pastoral e apostólica juntou a de escritor duma vasta obra de exegese bíblica, de oratória e de apologética, sobretudo, contra os luteranos.
Clemente VIII chamou-o a Roma para o enviar à Hungria, Boémia, Bélgica, Suíça, Alemanha, França e Portugal. Foi pregador e embaixador junto de diversos soberanos de nações cristãs que estimulou para a cruzada contra os turcos a fim de evitar o seu avanço. E, quando o exército cristão na Hungria fez parar o exército da Meia Lua, Lourenço encontrava-se no meio dos soldados cristãos, no momento da vitoriosa batalha de Alba Real, incitando em todas as línguas, à defesa e salvaguarda da cristandade, chegando a entrar na própria mesquita.
Depois da Guerra, o Papa Paulo V enviou-o como embaixador de paz entre as potências cristãs frequentemente em guerra. Conquistou o espírito dos soberanos mais turbulentos com a sua humildade evidente, mansidão evangélica e eloquência de homem habituado “à penitência e à oração”. E, com o seu temperamento enérgico e impulsivo, com habilidade, com oratória e com força persuasiva, trouxe para a fé católica muitos protestantes e alguns hebreus.
Em 1619, empreendeu a sua última viagem à Península Ibérica, com uma missão de paz junto do Rei Filipe III. Foi nesta missão que morreu, em Belém, na cidade de Lisboa, a 22 de julho de 1619, no mesmo dia em que completava 60 anos de idade.
Canonizado por Leão XIII em 1881, foi proclamado Doutor da Igreja, em 1959, pelo Papa João XXIII, com o nome de Doutor Apostólico. Dele se diz que pregou com assiduidade e eficácia em vários países da Europa e escreveu muitas obras doutrinais.
Além das pregações, Lourenço deixou uma grande quantidade de obras, inclusive mais de 800 sermões que ocupam 11 dos 15 volumes da sua obra completa, que são um admirável exemplo da hoje chamada teologia querigmática e do modo de ensinar a doutrina cristã – o que o situa no mesmo patamar da atividade pastoral dos Padres da Igreja e dos grandes santos proclamados doutores da Igreja. Destaca-se a sua mariologia, de extraordinária clareza conceitual.
Também se reflete na sua obra o intenso trabalho em prol da conversão dos  judeus, dado que, sobretudo, a instâncias do Papa Clemente VIII, pregou por três anos aos judeus de Roma. Esta tarefa e a missão de ensinar aos religiosos da sua Ordem, juntamente com o seu conhecimento do hebraico, do aramaico e do caldeu, permitem apresentá-lo como um excelente exegeta na sua “Explanatio in Genesim”. Aliando aos seus profundos e amplos conhecimentos teológicos uma filosofia sadia, tratou de maneira magistral as questões referentes ao Deus criador, seus atributos, anjos, natureza e criação do homem, matrimónio e diversos outros temas que provocavam polémica então.
Aparece ainda na sua obra a crítica ao protestantismo nascente. Em Praga, disputou com Policarpo Leiser,  teólogo, escritor e pregador da corte do príncipe-eleitor. Desta disputa resultou o “Lutheranismi hypotyposis” (3 vol.), um manual prático de apologia católica.
A proclamação de Lourenço como Doutor da Igreja é a confirmação do seu sucesso apostólico. Crê-se, porém, que ainda há muitos outros documentos nos arquivos das bibliotecas europeias que poderão iluminar melhor a sua atividade doutrinária.
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A predita oração da Missa e da Liturgia das Horas destaca a “sabedoria” e a “fortaleza” como dons do Espírito Santo presentes em Lourenço. Ora, o dom da sabedoria é a graça de poder ver e apreciar cada coisa com os olhos de Deus – de sentir com o Seu coração, de falar com as Suas palavras – mercê da intimidade que vivemos com Deus, como “de filhos com o Pai”. E o dom da fortaleza, pelo qual o Espírito vem apoiar-nos na nossa fraqueza, deve constituir o pano de fundo do nosso ser cristão na normalidade da nossa vida quotidiana para levarmos por diante a nossa vida, a nossa família, a nossa fé. Quando vêm as dificuldades, devemos considerar que o Senhor não nos dá prova maior do que aquilo que podemos tolerar. Ele dá-nos força e nunca a deixa faltar. Podemos, pois, dizer com Paulo, “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4,13).
A predita 2.ª leitura do Ofício de Leitura é um excerto dos Sermões de São Lourenço de Brindes (Sermão da Quaresma 2: Opera Omnia 5, 1, nn. 48.50.52 - Séc. XVII) em torno da ideia-força “A pregação é um dever apostólico” – que se condensa a seguir.
Para assegurar a vida espiritual, que possuímos por termos sido criados “à imagem e semelhança de Deus”, precisamos da Sua graça e da caridade que postulam a fé. Mas a fé não se alcança sem a pregação da palavra de Deus – e a pregação é o anúncio da palavra de Cristo – tão necessária para a vida espiritual, como a sementeira para a vida corporal.
Por aqui se vê como é relevante a parábola do semeador, que “saiu a semear a sua semente”, ou seja, a anunciar a justiça. Ora, este arauto da justiça foi às vezes o próprio Deus (vg: no deserto, quando deu a todo o povo a lei da justiça); por vezes, foi um anjo, como o que, no ‘lugar do pranto’ repreendeu o povo por causa da transgressão da lei divina; também Moisés e os profetas pregaram ao povo a lei do Senhor; e, por fim, veio Cristo, Deus e homem, para pregar a palavra de Deus. E Cristo enviou os Apóstolos para esse mesmo fim (“Ai de mim se não evangelizar” – 2Cor 9,16), como enviara os Profetas. Assim, a pregação é dever divino, angélico, profético, cristão e apostólico. Manifesta-se pela palavra de Deus a multiforme riqueza da sua bondade – tesouro onde se encerram todos os bens. Dela procedem a fé a esperança e a caridade, as virtudes, os dons do Espírito, as bem-aventuranças evangélicas, as boas obras, os méritos da vida, a glória do paraíso. É, pois, necessário receber a Palavra que em nós foi semeada para salvar as nossas almas. Esta palavra é “luz para a inteligência, fogo para a vontade”. Por ela podemos conhecer e amar a Deus. É “pão e água, mas pão mais doce que o mel e o favo, e água melhor que o vinho e o leite”. E, porque “é um tesouro de méritos para a alma espiritual”, é comparável “ao ouro e à pedra preciosa”. Sendo “o martelo que abranda a dureza do coração obstinado”, é também “a espada que mata todo o pecado na luta contra a carne, o mundo e o demónio”.
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Do Evangelho da Missa do comum dos doutores da Igreja (Mt 5, 13-19) – selecionou-se este porque os doutores proclamados são apenas 36 – aprendemos que os que aprofundam e ensinam (discípulos e apóstolos) a palavra revelada por Deus são verdadeiro “sal da terra” e fulgente “luz do mundo”. E quem praticar e ensinar os mandamentos que a Palavra de Deus encerra será tido como grande no Reino dos Céus. 
Também outro Evangelho proposto para a mesma Missa (Mt 7,21-29) nos adverte que não são as nossas palavras que nos catapultam para o Reino dos Céus, mas a realização da vontade de Deus. Quem a realiza é como o homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha. Por outro lado, segundo uma outra perícopa do Evangelho para o comum dos doutores (Mt 13, 47-52), o homem sensato (“todo o escriba avisado”) sabe que neste mundo crescem os bons e os maus, sendo necessário ter a paciência de respeitar esta realidade. Só no fim dos tempos é que se fará a destrinça definitiva. Para já o escriba instruído, sabendo tirar do tesouro coisas novas e velhas, deve ter a paciência de instruir, mas não a ferros, e sobretudo não apostar na exclusão.
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Que são Lourenço de Brindes ajude a interiorizar o grito profético, “Sobe ao alto dum monte para anunciar a Sião a Boa Nova e diz às cidades de Judá ‘Eis o vosso Deus’!” (Is 40,9) e a ordem de Jesus: “Segue-me e vem anunciar o reino de Deus” (cf Lc 9,59-60) – vd responsório à 2.ª leitura da hora canónica aludida.

2016.07.21 – Louro de Carvalho

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